Tortura sonora é tortura sim e não pode ser relativizada

Por Samuel Sganzerla, no Justificando

Em dezembro de 1989, os Estados Unidos, sob as ordens de George H. W. Bush, invadiram o Panamá, deflagrando a operação “Just Cause”, que visava capturar o general e ditador panamenho Manuel Noriega. Dentre as motivações alegadas, estariam o rompimento do acordo travado entre os países na década anterior sobre o Canal do Panamá por Noriega e o seu envolvimento e colaboração com a rota do narcotráfico colombiano — inclusive, com o grande chefe Pablo Escobar.

No quinto dia da invasão, em plena véspera de Natal e já na iminência de sua captura, graças à dificuldade de se manter escondido, por conta da operação “Nifty Package”, Manuel Noriega procurou o espanhol Monsignor José Laboa, representante do Papa no Panamá, para se asilar na sede da Nunciatura Apostólica da Santa Sé — a embaixada de fato do Vaticano. Evidentemente, o governo republicano de Bush não iria criar um conflite justamente com Sua Santidade.

Por conta disso, desencadeou-se o mais conhecido episódio de “psychological warfare” (guerra psicológica) da história mundial recente. Durante dez dias, Noriega permaneceria na embaixada do Vaticano, até se render. Mas o fato curioso que chamou a atenção do mundo todo para esse episódio foi que, durante três dias, o 4º Grupo de Operações Psicológicas de um dos comandos de subdivisão da CIA (Central Inteligence Agency) isolou o quarteirão em que se localizava o prédio da embaixada e executou uma série de músicas de Rock ‘n’ Roll em níveis sonoros ensurdecedores, esperando que Noriega (um fã de música clássica) não fosse aguentar o desconforto extremo causado pelo som alto, saísse da embaixada e pudesse ser capturado.

Claro, olhando a playlist executada pelos americanos, é fácil entender que essa ação somente não durou apenas três horas porque ainda não existia a banda Calypso. Brincadeiras à parte, é evidente que houve reações. O próprio Papa João Paulo II reclamou das ações dos soldados americanos que cercavam a embaixada do Vaticano ao presidente Bush, o que levou, após mais de 72 horas de muito Rock ‘n’ Roll nada festivo, a pararem a música.

Alguns dias depois, Noriega se entregaria. Anos mais tarde, novamente o mundo tomaria conhecimento de prática da chamada “tortura sonora” por parte de soldados americanos, já na segunda Guerra do Iraque, em 2003, agora com Bush filho na presidência (a música da vez foi Enter Sandman, do Metallica, executada em níveis ensurdecedores aos combatentes iraquianos presos). Por óbvio, não é choque elétrico, pau-de-arara ou qualquer outra forma de agressão que submeta o recluso a dores físicas insuportáveis, mas é, sim, uma forma de tortura.

Volta-se a 2016. Brasil. Cenário de instabilidade política e grande descontentamento com os rumos do país nos últimos tempos, da parte de diversos agrupamentos, pelas mais distintas razões. Em meio a isso, grupos de estudantes secundaristas decidem ocupar escolas, por motivações que eu nem vou entrar no mérito e deixar para cada um fazer o seu juízo de valor. Opiniões divididas (como não poderia deixar de ser diferente), conflito instaurado.

Eis que o Judiciário é provocado. Em Brasília, um juiz da Vara da Infância e da Juventude decide pela reintegração de posse das instituições de ensino, com a retirada dos estudantes. Para tanto, autoriza a Polícia Militar a cortar o suprimento de energia, água e alimentação, e autoriza “ainda, o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono”.

Sim, claro, o magistrado não é George H. W. Bush, os policiais não são soldados americanos ou agentes da CIA, os estudantes não são ditadores militares da América Central. Mas esse é exatamente o problema de técnicas de tortura — ou “equiparadas a”, se você acha forçoso afirmar isso, em que pese eu discordar de você. Independentemente do seu contexto, ela é SEMPRE imoral e antiética. É justificada por um pretenso utilitarismo (isso quando se busca justificá-la). Contudo, ela é uma opção presente no mundo do ser (por mais que constantemente repudiada no do dever-ser).

O que entristece, ao final, é saber que o Poder Judiciário fez essa opção. Há questões que não admitem relativismo. São essencialmente, sim, de distinguir o certo do errado, o moral do imoral, o ético do antiético. A tortura está nesse campo, mais especificamente nessa segunda linha, a da incorreção. E quando é um juiz que aceita e escolhe este caminho, é porque qualquer tentativa de Direito faliu e o Estado nem tem mais a pretensão de fingir não ser o que realmente é: essa “máquina de moer carne”, que afronta especialmente os mais vulneráveis todos os dias.

Samuel Sganzerla é Advogado Criminalista.

Comments (1)

  1. Duas discordâncias:

    1- “…não é choque elétrico, pau-de-arara ou qualquer outra forma de agressão que submeta o recluso a dores físicas insuportáveis…” : Dependendo da intensidade, pode, sim, causar forte dor e até surdez. Nesse trecho, o texto faz exatamente o que o título diz que não pode ser feito, relativiza.

    2- No caso dos alunos não se pode considerar tortura porque os alunos não estão presos. Se fosse assim, a aplicação de gás lacrimogênio seria tortura também.

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