Qual universidade se salvará das bombas?, por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

“I’d like to tell my story, before I turn into gold.”
(Leonard Cohen – A bunch of lonesome heroes)

Cerca de 190 universidades brasileiras foram ocupadas em protesto contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 55) que congela os gastos públicos por vinte anos. A Universidade Federal do Pará (UFPA), tomada pelos alunos desde o dia 7, abriu excepcionalmente suas portas para um megaevento – o 5º  Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) realizado em Belém de 09 a 11 de novembro.

O 5º CIELLA contou com mais de 1.100 pesquisadores do Brasil e do exterior e acolheu quase 800 trabalhos, centrando seu foco no tema “Universidades, Amazonidades, Alteridades”. Apresento aqui síntese da minha fala na mesa de abertura compartilhada com o linguista Masayoshi Shibatani, professor da Rice University de Houston, Texas.

O planeta bombardeado

Comecei citando o reitor da Universidade de Würzburg, na Alemanha, Theodor Berchen, que abriu o IX Congresso Internacional de Universidades, na Finlândia, em 1990, afirmando que a universidade vive uma tensão permanente entre, de um lado, o compromisso com as culturas nas quais estão imersas – que são particulares e, de outro, com a ciência – que aspira a universalidade. Segundo ele, o conhecimento universal só pode ser construído se houver diálogo de saberes.

Para destacar a importância da universidade, o autor imagina que se bombas destruírem o planeta, mas sobrar uma universidade, “a partir dela podemos reconstruir o mundo”, porque no cérebro de seus membros e nos livros de suas bibliotecas estão grande parte do saber que dispõe a humanidade.

Confesso que sinto calafrios ao me perguntar: – E se a instituição poupada for uma universidade amazônica? Os nossos cursos, currículos, bibliotecas, laboratórios e pesquisas nos permitiriam reconstruir a Amazônia com suas experiências milenares? Em que medida reconhecem o saber tradicional e promovem a interlocução com o acadêmico? Qual o lugar que reservam para as línguas e para os conhecimentos que nelas circulam?

Dentro da Amazônia funcionam hoje diversas universidades públicas e algumas privadas, mas até que ponto a Amazônia está dentro delas?  Podemos avaliar essa questão a partir de um olhar histórico sobre a primeira de todas – a Universidade Livre de Manáos – criada no apogeu da economia da borracha, em janeiro de 1909.

Essa universidade nasceu por inspiração do tenente-coronel da Guarda Nacional, Joaquim Eulálio Chaves, que transformou a recém-criada Escola Militar Prática do Amazonas em Escola Universitária Livre de Manáos, logo renomeada como Universidade de Manáos, com a abertura de novos cursos de Odontologia, Farmácia, Obstetrícia, Ciências Jurídicas e Sociais, Letras, Agronomia e Agrimensura, que começaram a funcionar em março de 1910. Em 1914, numa Manaus com 50 mil habitantes, já faziam parte dela 605 alunos de 12 estados do Brasil e 254 professores.

Universidades na Amazônia

Desta forma, o Amazonas reivindica ter sido o primeiro estado do Brasil com universidade, seguido do Paraná (1912) e Rio de Janeiro (1920). Este título de mais antiga do Brasil foi incorporado pela atual Universidade Federal do Amazonas (UFAM) – uma espécie de Universidade de Bolonha dos Trópicos, com ou sem ironia, de acordo com o gosto do leitor.  E isto porque quando foi criada, em 1962, com o nome de Universidade do Amazonas, incorporou o Curso de Direito, o único que sobreviveu.

A Universidade de Manáos não chegou à maioridade. Com a crise da produção da borracha agonizou até morrer, em 1926, aos 17 anos. Considerando que entre a morte de uma e a fundação da outra escoaram quase 40 anos, as más línguas juram que esta universidade é uma espécie de viúva Porcina: foi, sem nunca ter sido.

Mas se a UFAM se intitula  a herdeira da primeira universidade, resta saber qual o conteúdo dessa herança, qual o modelo de universidade que herdou, quais os conhecimentos que a instituição fez circular na área de Química e de Botânica, por exemplo, tão vitais para a economia da borracha.

No ano de fundação da Universidade de Manáos, o químico Fritz Hofmann criava a borracha sintética na Alemanha. Anos antes, 70 mil sementes da seringueira contrabandeadas passaram a ser cultivadas no Sudeste Asiático. Até então, o monopólio da produção se concentrava na Amazônia, que atendia quase 100% da demanda global. Dez anos depois, as plantações na Ásia já respondiam por 95% da demanda. A Universidade de Manáos não teve fôlego para enfrentar essa questão.

É interessante refletir sobre o tratamento dado pela instituição aos saberes populares que circulam nas narrativas orais, nos cantos e na poesia, assim como o lugar que atribui às línguas amazônicas e às taxonomias nelas produzidas, recolhidas por viajantes e naturalistas que percorreram a região no século XIX, entre outros os que foram enquadrados no grupo denominado de tupinólogos.

A Amazônia na universidade

Os tupinólogos do séc. XIX, entre eles Couto de Magalhães, Stradelli e o botânico Barbosa Rodrigues, já haviam articulado o conhecimento científico da época com os saberes tradicionais, estabelecendo um diálogo entre eles e colocando o saber moderno dentro das culturas amazônicas. O que aconteceu com essa produção e qual o tratamento dado a ela pela Universidade? Qual o lugar da Amazônia dentro dessa e de outras universidades posteriormente aqui criadas?

Os Archivos da Universidade de Manaós não registram sequer rastros dessa literatura sobre a Amazônia. Ensinava-se português, francês, inglês, italiano, alemão, latim e grego. Ficavam de fora do currículo o espanhol, que já era a língua dominante de países amazônicos, assim como o Nheengatu, que até a metade do século XIX era língua falada pela maioria dos amazonenses, a tal ponto que em 1861 o poeta Gonçalves Dias, que avaliou as escolas do Solimões e do Rio Negro, concluiu que não funcionavam porque a língua de instrução – o português – não era compreendida pelos alunos.

A exclusão dessas duas línguas pela Universidade indica uma vontade explícita para desvincular a Amazônia brasileira da Panamazônia e da Amazônia indígena, cujos saberes deviam ser apagados. A Universidade de Manáos ignorou a gramática de Nheengatu elaborada por Couto de Magalhães três décadas antes de sua fundação e as narrativas por ele coletadas. Ficaram de fora também dos cursos de medicina os saberes acumulados sobre a flora amazônica coletados por Barbosa Rodrigues.

Na justificativa para criar a Faculdade de Medicina, os arquivos registram ataques aos “medicastros que por ahi fervilham em zoogléas”, referendando os preconceitos contra os pajés e contra a fitoterapia por eles utilizada.

E hoje, o que existe de Amazônia dentro das nossas universidades? O que existe de Brasil? Esse é um bom tema para ser debatido pelos ocupantes das quase 190 universidades brasileiras.

P.S. Leonard Cohen, cantor e poeta canadense, que embalou a minha geração com música e poesia refinadas, nos deu seu último adeus. Em “You want it darker”, ele se despede: “I’m out of the game”, anunciando “I´m ready, my Lord”.

 

Comments (1)

  1. O prof. Bessa – pessoa que estimo e acadêmico que aprecio – faz um chamamento no sentido de que façamos um reflexão sobre nossa estrutura educacional. Para não ser prolixo, alinho as minhas convicções: O sistema educacional público só tomará um rumo saudável após superar dois obstáculos, quais sejam: 1. Melhorar radicalmente o ensino fundamental e médio com os atuais níveis de financiamento público 1.O Estado brasileiro, a comunidade acadêmica e a sociedade deve abrir uma discussão para identificar claramente e sem demagogia como financiar doravante a enorme malha de escolas técnicas e universidade federais considerando que estão esgotadas as possibilidade de aportar recursos além dos atuais níveis de custeio- investimento.
    Penso que esse caminho é um pre-requisito.

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