ONGs comunitárias das favelas preenchem as lacunas do sistema educacional do Rio

Raven Hayes* – RioOnWatch

“Você não é da favela. Você é do mundo”, diz Iara Oliveira, fundadora da ONG Alfazendo, a seus alunos. O Alfazendo é uma ONG educacional sediada na Cidade de Deus, na Zona Oestedo Rio de Janeiro. Frustrada com a situação da educação em sua comunidade, Iara e um pequeno grupo de moradores da Cidade de Deus fundaram o Alfazendo em 1998, a fim de melhorar a alfabetização e orientar estudantes para o vestibular. “Nós éramos jovens que queríamos outras soluções”, afirma. Esforços como o do Alfazendo representam um elemento importante do sistema educacional nas favelas do Rio de Janeiro. As taxas de alfabetização e de frequência aumentaram nos últimos anos, em parte graças às comunidades, que criam soluções para resolver problemas persistentes e lacunas.

A falta de escolas torna a frequência dos alunos um desafio em algumas favelas. Rio das Pedras é a terceira maior favela do Rio, com uma população de mais de 50.000 habitantes. No entanto, a comunidade tem apenas duas escolas públicas de ensino fundamental para atender os estudantes de lá. Em 2016, a conclusão do ensino médio se tornou obrigatória por lei, mas algumas comunidades não possuem escolas de ensino médio. Os estudantes são obrigados a se deslocar para outros lugares para completar o ensino médio. Rio das Pedras tem uma escola pública de ensino médio; Maré, na Zona Norte, não tem nenhuma. Cidade de Deus tinha a mesma falta de escolas de ensino médio até recentemente. “Passamos 40 anos lutando para ter uma escola de ensino médio na Cidade de Deus. Conseguimos a escola. Conseguimos um lugar para ela. Conseguimos que o governo iniciasse as obras”, disse Iara Oliveira. No entanto, de acordo com Iara, as obras foram abandonadas devido à atual situação política no Brasil.

Iara Oliveira expressa preocupações de que o currículo da escola da favela seja desatualizado e nada atraente, e que os métodos de ensino não tenham evoluído. De acordo com ela, os métodos de ensino permanecem os mesmos desde que ela era criança, e são muito “tradicionais”.

Outra preocupação é a qualidade dos professores, especialmente no que concerne à sua preparação. “Eles não estão preparados para enfrentar a realidade”, declara Iara. Outro problema é o fato de que os professores podem estar entrando numa favela pela primeira vez quando vão lecionar nessas escolas. “Temos professores que vêm da comunidade e são mais engajados–eles lutam mais (em favor dos alunos). Também temos professores nessas escolas que são de fora. Eles vêm somente para dar a aula e sair”, conta. “Eles só vêm aqui porque têm um emprego público”.

O Alfazendo procura oferecer soluções a alguns desses desafios. Além dos serviços originais de orientação e alfabetização, oferece cursos “socioambientais” de 50 minutos através de seu programa Eco Rede, que atinge 7.000 estudantes em 28 escolas e instituições educacionais. O programa possui uma filial na favela da Maré, na Zona Norte, administrada pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). Os alunos mais velhos da comunidade atuam como “agentes” e trabalham com a equipe da Eco Rede para oferecer aulas.

Fernanda Müller e Lucas de Sousa cresceram na Cidade de Deus e são coordenadores do projeto. À medida que a Eco Rede explora uma unidade temática por ano acadêmico, eles respondem as questões dos estudantes, conforme vão surgindo. Os tópicos podem incluir sexualidade, crime, violência e assuntos familiares. “É espontâneo”, afirma Lucas de Sousa.

As necessidades especiais apresentam um desafio significativo e uma lacuna no sistema educacional das favelas. Em Rio das Pedras, os alunos com necessidades especiais se envolvem com a comunidade em Jacarepaguá, onde recebem fisioterapia e aconselhamento. A escola Claudio Besserman Vianna Bussunda, em Rio das Pedras, possui 50 estudantes com necessidades especiais e apenas dois assistentes. A falta de psicólogos e de profissionais na equipe da instituição significa que esses alunos frequentam as aulas sem nenhum tipo de apoio especializado, o que representa um desafio adicional para os professores, que podem não se sentirem preparados para lidar com eles.

“Os professores não são educados para serem capazes de trabalhar com uma criança da maneira que ela chega”, declara Iara Oliveira. Há um pequeno número de escolas especializadas em alunos com necessidades especiais, mas cortes na educação tornaram ainda mais difícil trabalhar com esses alunos. Ela explica: “A prefeitura deveria ter especialistas dentro da escola. Antes, havia um conselho interdisciplinar na escola. Havia o assistente social, o psicólogo educacional, o psicólogo e os professores. Agora, não temos mais. Temos apenas os professores”.

Mas não é apenas a equipe profissional que está faltando nas escolas. Elas não têm mais verbas para os funcionários que monitoram a escola e vigiam a entrada. “O governo retirou os funcionários. Agora não temos mais porteiro”, diz Maria Aparecida Rocha de Camargo, coordenadora da escola Claudio Besserman Vianna Bussunda. Isso representa uma questão de segurança, pois os alunos podem sair da escola sem permissão. Em Rio das Pedras, membros da comunidade estão dando um passo à frente se voluntariando para substituir os funcionários, mas Maria Aparecida Rocha de Camargo se preocupa com o que pode vir a acontecer em uma situação de emergência.

Em outra ocasião, membros da comunidade agiram para solucionar o problema dos recursos da escola doando papel higiênico. Para os profissionais da educação, a falta de recursos materiais e de verbas é difícil de aceitar, diante dos investimentos massivos em megaeventos, como as Olimpíadas, ocorridos mesmo depois que o governo do Estado do Rio de Janeiro declarou “estado de calamidade”, em junho.

As favelas não são todas iguais, sobretudo em termos de segurança e violência, que podem afetar a educação. A Cidade de Deus possui uma UPP, assim como a Rocinha, na Zona Sul. Apesar da UPP, a violência continua em ambas a ser um problema agudo na comunidade, como todos viram no noticiário nestas últimas duas semanas. Com isso, é comum as escolas fecharem devido aos conflitos.

A ONG Rocinha Mundo da Arte fornece um espaço para as crianças frequentarem–após às aulas da escola–onde elas possam brincar, desenhar e realizar outros tipos de atividades e estarem seguras. Todos os dias úteis, das 14h às 18h, as portas da ONG estão abertas para qualquer criança, o que significa que tanto os estudantes que frequentam a escola no período da manhã quanto no período da tarde podem participar. “Meu pai iniciou a organização para retirar as crianças das ruas”, declara Iris Santos, que agora coordena a Mundo da Arte. Ela afirma que a expectativa da organização é “tirar as crianças das ruas, de modo que elas possam ter um lugar para aprender e brincar com segurança”. Eles aceitam alunos de qualquer faixa de idade escolar interessados em arte. A arte, de acordo com o grupo, é uma ferramenta para “mostrar outras possibilidades sociais e intelectuais”.

A Rocinha Mundo da Arte também fornece orientação extra para estudantes que têm dificuldades de aprendizagem. Iris diz que os professores podem estar um pouco desmotivados, e que necessitam ser “mais treinados” para lecionarem melhor. Ela culpa a falta de verbas nas escolas públicas por esses problemas. “Eu gostaria que as escolas investissem mais em bibliotecas, esportes e comida saudável para os alunos”, declara. Ela explica que as crianças são o que a mantém em seu trabalho, apesar do deslocamento de 1h30 que tem de realizar diariamente após ter se mudado para Jacarepaguá. “A minha dedicação é para as crianças, para que elas tenham mais criatividade e curiosidade em aprender”, diz.

Os esforços por parte da comunidade a fim de resolver os problemas que persistem no sistema educacional são inúmeros. No entanto, mesmo que um aluno consiga superar os desafios, o resultado pode, por sua vez, se tornar um problema para a própria comunidade, quando estes jovens que conseguiram estudar deixam a comunidade. “Temos um grande movimento de saída da comunidade. Há migração”, de acordo com Iara. Ela descreve o que pensam os estudantes: “Vou me graduar e sair… Vou encontrar um emprego e sair daqui”.

O Alfazendo espera combater esse processo, motivando os estudantes a permanecerem na comunidade e contribuírem para o desenvolvimento da Cidade de Deus. “Eu quero que as crianças da Cidade de Deus, e de qualquer outro lugar, tenham as mesmas oportunidades que tive. Eu tenho uma rede de amigos e de pessoas que me ajudaram a chegar onde estou”, declara.

As falsas percepções e os estigmas em torno das favelas, geralmente, focam no tráfico de drogas, no crime e na violência, ao invés da negligência histórica e a exclusão praticadas pelo governo. A educação representa uma área importante na qual as favelas estão combatendo tal negligência a partir da criação de suas próprias soluções que operam para melhorar suas comunidades.

Contribuições para o Alfazendo e a Eco Rede podem ser realizadas através do e-mail [email protected].

Contribuições para a Rocinha Mundo da Arte podem ser realizadas pelo contato com Iris Santos através do e-mail [email protected].

*Estudante de mestrado no programa de Estudos Latino Americanos, Caribenhos e Ibéricos da Universidade de Wisconsin-Madison, EUA. Sua pesquisa se concentra no desenvolvimento educacional e na intersecção entre a escola, a pobreza e a comunidade.

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