Fico pensando o que deve passar pela cabeça de uma pessoa que mora no interior do país, trabalha até não aguentar mais, recebendo um salário de fome, tendo que depender de programas de renda mínima para comprar o frango do aniversário do filho, quando vê na sua TV empresários culpando a jornada de trabalho pelas desgraças planetárias.
E fica sabendo que o governo estuda tornar legal uma jornada móvel, em que o empregador poderá escalar o sujeito para trabalhar em horários e dias diferentes da semana. A ideia está sendo vendida como algo bom, na qual a pessoa poderá ter ”flexibilidade” para conseguir outro emprego. Na prática, o cabra vai ter que aparecer quando o patrão precisar de sua força de trabalho e será mandado para casa ou ficará perambulando pela rua ou descansando num quartinho do fundo da empresa enquanto espera ser necessário de novo.
Essa proposta, de picotar a jornada e diminuir o custo para o empregador, vai na direção oposta a uma demanda histórica das centrais sindicais comprometidas com o trabalhador: a redução da jornada de 44 para 40 horas semanais sem redução de salário. A última redução ocorreu há 28 anos, na Constituição de 1988, quando caiu de 48 para 44 horas.
Aos catastrofistas de plantão: o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos) calculou que uma jornada de 40 horas com manutenção de salário aumentaria os custos de produção em apenas 1,99%. O aumento na qualidade de vida do trabalhador, por outro lado, seria muito maior: mais tempo com a família, mais tempo para o lazer e o descanso, mais tempo para formação pessoal.
Voltemos ao sujeito que está na frente da TV no interior do país. Após ver analistas dizendo que a ideia de flexibilizar a jornada é ótima, ele vê reportagens sobre bilhões desviados em escândalos de corrupção envolvendo políticos da base do governo e empresários. E notícias de que os mais ricos não querem aumentar os impostos para ajudar o país a sair da crise. E que empresas devem mais de um trilhão em dívida para o governo.
Nesse momento, de frente para a sua TV velha, sente-se um otário, engole o choro da raiva ou da frustração de ganhar como um passarinho, apesar de trabalhar como um camelo, e torce para a novela começar rápido e poder, enfim, ver outra tragédia. Não porque precisa se mostrar forte – ele sabe que é. Mas porque percebe que o país não é dele mesmo.
Então, se ficar decidido que vale a pena passar por cima da dignidade das pessoas para obter o crescimento econômico no curto prazo, podemos – em um esforço da nação – parar de mimimi e revogar de uma vez a Lei Áurea.