Os olhos verdes do Xingu e o silêncio dos cegos, por Guta Assirati

“Sim estou feliz, mas antigamente gente realizava essas festas com multidões, então olhei para a multidão e lembrei dos mentum, os antigos, quando ficávamos nessa região, porque éramos um povo que andava: vi a rere mej tchoba, a grande festa, e tinha muitas pessoas, mas hoje não somos tantos e isso me entristeceu.” (Raoni Metuktire sobre o desfile na Imperatriz Leopoldinense para Rádio Yandê).

No Indigenista

Quem assistiu Cacique Raoni Metuktire em cima de um carro alegórico em plena Sapucaí pode, descuidadamente, ter interpretado seus olhos alheios ao cenário em torno das lideranças Xinguanas em destaque no desfile da Imperatriz Leopoldinense no Rio de Janeiro. Quem conhece um pouco da história das lutas indígenas sabe, entretanto, que aqueles olhos enxergam mais longe do que se pode imaginar… Lideranças dos Povos Kamaiurá, Yawalapiti, Kaiapó e Kalapalo, sabiam muito bem o que faziam ali.

Também o sabiam, quando concordaram com a escolha da Imperatriz para o carnaval deste ano. Cahê Rodrigues, carnavalesco da Escola, fez uma corajosa opção política ao levar para a avenida o enredo Xingu, o Clamor que Vem da Floresta. Bem desenvolvido, o tema contou com um samba que retratou traços de culturas do Xingu, retratando, ainda, a violação dos territórios indígenas e a destruição das florestas e recursos naturais (com alusão estilizada ao caso da hidrelétrica de Belo Monte), a opressão imposta aos povos originários, e a apropriação indevida que leva os indígenas à luta pela sua terra. Com isso, a Imperatriz atiçou a ira anti-indígena. O tema virou polêmica quando representantes do agronegócio reagiram de forma veemente, manifestando publicamente sua contrariedade e repúdio ao enredo e peças publicitárias da Escola. A defesa veio em seguida, com respostas e apoio de indígenas, indigenistas, e outros defensores da pauta, que adereçaram páginas nas redes sociais, com frases e imagens exaltando a iniciativa leopoldinense.

A Escola e o carnavalesco resistiram e permaneceram no caminho que, com maestria, escolheram trilhar. O resultado, para além de um belíssimo desfile, foi a ocupação do carnaval como um espaço de luta contra o agronegócio e o desenvolvimentismo, e em defesa dos povos e terras indígenas. Parabéns a Cahê Rodrigues e à Escola Imperatriz Leopoldinense, pela coragem e arte!

Raoni, desde muito antes, e durante o desfile, tinha olhos bem abertos. Sua visão alcançava longe. Como tantas outras lideranças indígenas, compreendeu cedo a importância de entrar por todas as portas que se abrem, como oportunidade para mostrar a voz e a cara dos conflitos que massacram por séculos os povos indígenas no Brasil. No Carnaval deste ano, não foi diferente; honoráveis lideranças Xinguanas em cima de um carro alegórico, em plena Sapucaí, acompanhados por outras lideranças do movimento, cantaram a dor, a resistência, e a luta dos mais de 300 povos indígenas que vivem no Brasil. Em plena avenida, em ritmo de samba, reivindicaram a demarcação de suas terras, e manifestaram-se contra esse modelo de desenvolvimento predatório e opressor, que investe em empreendimentos altamente prejudiciais a todos os bens e valores socioambientais.

A Rede Globo, por sua vez, pareceu querer que essa glória durasse pouco. Buscou disfarçar o constrangimento de ter que transmitir de forma imparcial, um desfile que confrontou especialmente seus patrocinadores agropops. Optou por comentários supérfluos, como a dispensável explicação do significado de um Tucunaré, ou propositadamente superficiais, como a explicação de Belo Monte, proferida por uma única afirmação de que os indígenas alertam para possíveis desdobramentos negativos do empreendimento. A equipe de comentaristas globais fez menção deliberadamente singela (e mentirosa por omissão), sobre um “risco” de uso de agrotóxicos na produção do agronegócio. Durante a narrativa, não foram pronunciadas expressões como agronegócio, terras indígenas, Kaiowá, ou PEC 215, por exemplo, todas diretamente relacionadas às situações ofensivas aos povos indígenas, denunciadas pelo samba enredo. A principal representante da transmissão Globeleza 2017, sem muita segurança, quis comentar a dificuldade que caracteriza as situações de contato com povos indígenas, mas não demonstrou conhecimento sobre o assunto, e deixou de informar que no Brasil é adotada a política do não contato com povos que vivem em situação de isolamento voluntário. Durante a passagem do carro em que estavam as lideranças Xinguanas, a apresentadora não soube, de pronto, dizer sequer o nome de Raoni…

Ao final do desfile, ao contrário do que ocorreu com outras Escolas, os homenageados Povos do Xingu, não estiveram no estúdio da emissora para comentar a performance do evento, o que inviabilizou a reafirmação em rede nacional por lideranças como Sônia Guajajara, Bel Juruna, e o próprio Raoni, da defesa dos direitos indígenas (com os quais confrontam interesses capitalistas, sobretudo de grupos ligados ao agronegócio). Restou uma enfadonha e despolitizada conversa com o carnavalesco Rodrigues, onde Fátima Bernardes enfatizou a dificuldade logística do deslocamento entre o Rio de Janeiro e o Parque Indígena do Xingu. Finalmente, já em tom de encerramento, uma repórter, de lá da avenida, em tom de êxtase colonial, como a congratular colonizadores, que teriam proporcionado um inédito momento de triunfo a um grupo de alienígenas desinformados, pergunta ao Cacique Raoni sobre a emoção de desfilar no Carnaval… Arrogância cega do lugar da dominação… Há quem não compreenda… Raoni (os povos indígenas) é rei, e seus olhos enxergam mais longe, numa terra onde muita gente já nem olhos tem…

O recado, entretanto, afinal foi dado! Para o Brasil e o mundo. Que o verde do Xingu possa tocar, também em ritmo de carnaval, mentes e corações. Salve o verde do Xingu, a esperança. A semente do amanhã, herança. O clamor da natureza a nossa voz vai ecoar!

Destaque: Raoni e Guta Assirati

Comments (1)

  1. Interessante artigo da Ex-presidente da Funai que saiu do cargo sem assinar a portaria declarando Sawré-Muybu como terra Munduruku e que estava e continua ameaçada pelo complexo hidrelétrico no rio Tapajós!

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