A água é vida, não é um negócio!, por Cândido Grzybowski

No Ibase

Em plena semana de Carnaval, a Assembleia Legislativa aprovou o projeto que autoriza a privatização da Companhia de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – CEDAE. Este processo é revelador do total descalabro político em que nos encontramos. A decisão majoritária na Assembleia pode ser legal, mas totalmente ilegítima, como quase todas as mudanças políticas que estão sendo implementadas no Rio e no país inteiro após o golpe institucional do impeachment. Decidiu-se pela autorização de privatizar a água, sem nenhuma discussão mais profunda, sem participação cidadã, sob proteção de forte esquema policial-militar e sob o comando do Picciani, verdadeiro coronel de clã político familiar, clã que se reproduz no poder prestando favores e sendo muito subserviente no plano político local, estadual e nacional.

Estamos vivendo no país inteiro um sistemático ataque contra as conquistas de direitos e políticas socialmente inclusivas, chegando à destruição das bases materiais próprias para construir um país mais democrático, participativo, justo e sustentável (petróleo, terras, água, infraestrutura em geral, etc.). Além disso, em nome do enfrentamento da crise fiscal, provoca-se uma monumental crise econômica e mergulham os estados e municípios em insolvência. O Rio de Janeiro vive de modo dramático o processo de decomposição, que compromete o futuro. Aqui falta tudo: faltam salários para servidores e pensionistas (sistematicamente atrasados), falta segurança, falta saúde, falta educação, faltam empregos, entre tantas carências. Estamos em meio a uma gigantesca crise do Estado do Rio.

Não vou entrar nos problemas técnicos e financeiros envolvidos na questão da privatização da água, se pode ou não resolver de imediato parte da crise fiscal, mesmo comprometendo todo o nosso futuro. Vou direto ao que importa de um ponto de vista de bem viver, cidadania, democracia e sustentabilidade com justiça social. Privatizar a água é privatizar um bem comum fundamental, a fonte da vida, é transformar um bem indispensável para se viver em um produto comercial, em negócio para a acumulação privada. É claro que a água para chegar potável à nossa torneira precisa de muito trabalho e de complexos sistemas da captação, reservatórios, tratamento, rede de distribuição. Mas uma coisa é fazer isto como um trabalho responsável de gestão do bem comum água e com participação, considerando a água um direito humano básico. Outra coisa, radicalmente diferente, é fazer isto para gerar lucros, não importando em nada ser a água um bem comum para todas e todos. O pior é que nos planos do governo federal, subserviente dos interesses do grande capital, entre as muitas medidas entreguistas está o plano de privatizar os sistemas de abastecimento de água na maioria dos estados brasileiros, valendo-se da própria crise para isto.

Parece que a crise hídrica na Região Sudeste, de dois anos atrás, não foi suficiente para nos alertar sobre os riscos e a necessidade de cuidado com a água, bem comum. Isto que o abastecimento de água boa não está universalizado em nossas cidades. Ao invés de levar a um engajamento público mais responsável e previdente na gestão da água, estamos indo na direção contrária, entregando os sistemas para quem considera o recurso natural água um investimento que pode gerar lucros, onde quem paga tem e todos os demais que se virem. Este, aliás, é um dogma do neoliberalismo globalizado.

O fato é que a água é fonte de vida e de muita lutas cidadãs pelo mundo, de guerras até. Não sei quando e nem como, mas o nosso governo está simplesmente construindo uma bomba que pode explodir no seu colo, mais dia, menos dia. Os exemplos pelo mundo são muitos e já ocorreram reversões das privatizações, onde as tais parcerias público-privadas foram postas em questão. É o caso de Paris (em 2010), Berlim (em 2013), Buenos Aires e em aproximadamente 100 grandes cidades no mundo. Aqui na nossa América do Sul, entre janeiro e abril de 2000, a população de Cochabamba provocou um reação de tal monta contra a privatização e o imediato aumento de tarifas da água – conhecida como a “Guerra da Água”- que obrigou o Governo de Banzer a decretar estado de sítio e assim mesmo ter que voltar atrás na concessão de 40 anos do sistema municipal de água feita a uma filial do Grupo Bechtel dos EUA.

O exemplo mais notável em termos de cidadania ativa contra a privatização da água ocorreu na Itália. O truculento e corrupto Sílvio Berlusconi impôs por lei as parcerias público-privadas na gestão da água, estabelecendo um imposto entre 7% e 15% sobre as tarifas praticadas para remunerar o investimento das empresas. A cidadania reagiu. Foi constituindo o Fórum Italiano do Movimento pelas Águas, ainda em 2006, que organizou um comitê em cada cidade e conseguiu 1,4 milhão de assinaturas pedindo um referendo contra a privatização da água. O referendo foi realizado em 12 e 13 de junho de 2011 com vitória da cidadania com 95,7 % votando contra a privatização. Participaram 57% dos eleitores, mais do que os 50% exigidos pela Constituição italiana. Hoje a Itália está livre deste ataque privatizante do bem comum água.

Devido ao Fórum Social Mundial (FSM), em contato com ativistas indianos, italianos e bolivianos, comecei a dar maior atenção à água como bem comum e a importância das lutas pela água no enfrentamento do neoliberalismo, a motivação central do Fórum. O bem comum água acabou muito central na agenda de debates e articulações do FSM nos primeiros anos. O caso da Índia envolveu empresas que vivem do hidronegócio em escala global, como Coca Cola e Nestlé. A água é um bem relativamente escasso na Índia e a expansão econômica recente está provocando um estresse hídrico alarmante, afetando especialmente zonas de agricultura familiar e povos tradicionais. Os protestos são constantes, obrigando, inclusive, a Coca Cola a fechar algumas unidades. Aprendi com os indianos que a Coca Cola usa três litros de água para um litro de refrigerante (talvez após as lutas tenha melhorado seu desempenho, ao menos já vi propaganda da própria Coca Cola a respeito). As e os indianos foram contrários até a se vender Coca Cola no espaço do FSM, por ser um símbolo de agressão ao bem comum água.

A água como fonte de vida e a luta contra as ameaças do hidronegócio, no abastecimento, engarrafamento,  energia, mineração, indústria, irrigação do grande agronegócio, o uso de córregos e rios como canais de esgoto não tratado, está virando um consenso. O estoque da água é dado, mas a água potável é uma mínima fração da água disponível no planeta, já que uns 97% são mares e oceanos.  Já vi e ouvi uma palestra pela internet da TED em que se dizia que estamos salvos pela tecnologia, pois a Coca-Cola vai instalar aparelhos de dessalinização da água e resolver o problema da escassez. Só faltou dizer que isto ela fará como negócio e terá água quem pagar o preço que ela pedir. Não é por aí que a humanidade se sentirá melhor e mais segura! A integridade e a reprodução do ciclo da água é parte dos sistemas ecológicos essenciais para a sustentabilidade e o bem viver. Sem água não há vida, nenhuma vida. Precisamos assumir como tarefa de cidadania o cuidado e o compartilhamento da água.

Diante da ameaça do plano de privatização em massa, cabe lembrar exemplos que poderiam fortalecer nossa luta. A prática de prover água grátis nas cidades é algo que tem história e, hoje, volta a ser valorizada. Nos EUA, em qualquer restaurante, a água de torneira é servida automaticamente, de graça. Mas é em Roma que existe um sistema de abastecimento de muitos anos: as “fontanas”. Trata-se de água limpa de fontes em lugares públicos. Muitas “fontanas” são abastecidas pelos famosos e antigos aquedutos romanos. O que seria se ao invés de privatizar a CEDAE os nossos gestores da água fossem obrigados a instalar uma torneira pública em cada praça de nossa cidade, para a gente encher nosso copo ou garrafa de água grátis? E como seria bom se fosse refrigerada, como na fonte na saída do metrô do Coliseu, em Roma! É um absurdo a privatização de todo o sistema e é uma agressão, uma violação de direito, muita gente passar sede neste calorão do Rio por não ter dinheiro para comprar a cara água engarrafada. Isto vai na contramão do que necessitamos para um mundo mais justo e sustentável.

Temos no nosso Brasil um movimento notável que luta em torno ao modo como usamos a água.  É o Movimento dos Atingidos pelas Barragens – MAB, hoje movimento nacional. Sua origem e ainda principal luta é contra a expulsão dos que vivem no entorno dos rios – indígenas, pescadores e ribeirinhos, posseiros e agricultores familiares, quilombolas, populações de cidades ribeirinhas – devido à construção das grandes barragens, em geral para hidrelétricas. Mas seu olhar e sua motivação o torna, hoje, a principal referência da cidadania ativa brasileira na luta pela água bem comum. Para enfrentar o descalabro da privatização é hora de resistir e ir mais além. O MAB tem muito a nos ensinar o que é uma luta de cidadania pela água.

Nossos comuns não estão à venda! Não ao negócio da água!

Foto: Caroline Rodrigues / FASE.

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