Transposição, a hora da verdade, por Roberto Malvezzi (Gogó)

Roberto Malvezzi (Gogó), em seu blog

Há uma certa euforia a respeito da reta final da Transposição de águas do São Francisco para o chamado Nordeste Setentrional. Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, disse que a “Transposição de Lula é um sucesso”. É compreensível também a euforia da população receptora. Nós aqui às margens do São Francisco, que somos obrigados a olhar a floresta e não só a árvore, mantemos nosso olhar crítico sobre essa obra.

Em primeiro, a água ainda não transpôs o divisor e não chegou aos estados do Setentrional, mas permanece nas barragens do Pernambuco. Houve vazamento na barragem de Sertânia e o município foi obrigado a remover 60 famílias atingidas pelo vazamento. Houve morte de pequenos animais e destruição de bens familiares.

Segundo, permanecem as encruzilhadas da obra que sempre chamamos a atenção: essa água transposta será para o povo necessitado dos estados receptores ou para o agro-hidronegócio e indústria? Dilma já disse que para cada real posto nos grandes canais, serão necessários dois reais para fazer as adutoras que, de fato, levarão a água aos municípios.

Essa é a primeira diferença entre o projeto de várias adutoras – que defendíamos – e a mega obra da Transposição. Se a opção fosse pelas primeiras, a água já teria ido direto – por tubulação simples – para os serviços municipais de água e estariam dispensados os grandes canais. A opção foi pela grande obra. Talvez hoje, depois da Lava-Jato, fique mais claro o porquê.

Acontece que o cenário político mudou. Se Lula-Dilma tinham interesse em fazer as adutoras a partir dos grandes canais, o atual governo pretende criar o maior mercado de águas do mundo, privatizar as águas da Transposição – que significa também privatizar a água de chuva já acumulada nos reservatórios do Setentrional – e não demonstra interesse algum em fazer sua distribuição.

Por último, a revitalização do São Francisco. Lula-Dilma diziam que iriam fazer a revitalização do São Francisco simultaneamente à grande obra da Transposição. O único investimento que deu resultado foi o saneamento, embora ainda inconcluso e desperdiçando obras iniciadas como as estações de tratamento de Pilão Arcado e as adutoras em Remanso. Aqui em Juazeiro o saneamento avançou.

Essa iniciativa é positiva, mas insuficiente. Sem atacar as causas de destruição do São Francisco, que abrange toda sua bacia, mas principalmente a devastação do Cerrado, não haverá São Francisco em breve tempo.

Hoje, o São Francisco está com uma vazão de 750 m3/s, quando nos garantiam que a partir de Sobradinho sempre seria de 1800 m3/s. Portanto, hoje o volume de água é 1/3 do que os técnicos previam para garantir a água da Transposição. Sobradinho – a caixa d’água que garante o fluxo abaixo – está com 11% de sua capacidade. O período chuvoso está terminando e todos os usos na bacia, a não ser por um milagre da natureza, estarão comprometidos.

Hoje o mar avança de 30 a 50 km São Francisco adentro, salgando as águas que abastecem a população ribeirinha de Sergipe e Alagoas. Se continuar nesse ritmo, em breve comprometerá a adutora que abastece Aracaju. O rio perdeu força, o mar avança.

O que tem salvado a população nordestina nesses 6 anos de seca foi a malha de pequenas obras hídricas, como as cisternas. Com essas tecnologias e outras políticas sociais vencemos a fome, a sede, a miséria, a migração, os saques e a mortalidade infantil. O IDH subiu em toda a região e o crescimento foi visível em relação a outras regiões do Brasil. Logo, não foi a grande obra. O paradigma da convivência com o Semiárido mostrou-se eficaz, enquanto o paradigma do combate à seca só encheu as burras dos coronéis.

Portanto, olhando a árvore o sucesso da Transposição está garantido, olhando a floresta os problemas continuam e se acumulam.

Comments (1)

  1. Gogó enxerga o óbvio: os habitantes do Nordeste Setentrional estão eufóricos com a transposição de águas do São Francisco. No entanto, diz que nós, os habitantes da bacia do São Francisco, mantemos nosso olhar crítico sobre essa obra.
    Essa critica é normal. Ninguém concorda em dividir aquilo que considera seu. Embora as águas do rio não pertençam aos habitantes de sua bacia, é comum que estes não queiram dividi-la. Isso, a meu ver, é mero egoísmo.
    Não classifico Gogó, no entanto, de egoísta, pois ele apresenta argumentos contrários à transposição. Vamos, portanto, analisá-los.
    Ele diz que a água ainda não transpôs o divisor e não chegou aos estados do Setentrional. Escrevo hoje, dia 1º de julho, e isso já vem ocorrendo. A água chegou à Paraíba, tirou o açude Boqueirão do volume morto e evitou o colapso hídrico que se anunciava para Campina Grande. Tudo isso, apesar do vazamento na barragem de Sertânia, já solucionado.
    Ele questiona, com muita propriedade, se a água transposta será para o povo necessitado ou para o agronegócio e a indústria. Será para todos. As águas do Rio São Francisco tanto abastecem o caboclo que vive às margens do Velho Chico como o fazendeiro que possui uma grande fazenda de exportação de frutas. No Nordeste Setentrional, ocorrerá o mesmo. As águas transpostas do Velho Chico servirão para evitar a falta de água que leva a população a comprar o precioso líquido de carros pipa. Mas servirão também para irrigar as fazendas do Nordeste, promovendo a dignidade que o povo do semiárido merece.
    Gogó tinha opinião diferente: para ele, ao invés de se transpor águas do Velho Chico, seria melhor criar várias adutoras para levar água dos açudes para o povo necessitado.
    Essa opinião foi bastante analisada e, depois, descartada. Afinal, os açudes do semiárido se localizam na parte baixa da bacia e as adutoras teriam, necessariamente, que ser acionadas por meio de bombeamento. E não seria apenas o consumo de energia o principal problema. A maior dificuldade seria manter as adutoras funcionando durante todo o ano, já que as chuvas do Nordeste se concentram nos três meses do chamado “inverno”.
    Ele lembra que a revitalização do São Francisco deveria ser feita simultaneamente à transposição. Essa é a cobrança que se faz em todo o mundo quando se realiza uma obra de transposição. Se for ser retirada água da bacia, que compensação vai haver? No caso da bacia do São Francisco, a proposta seria a revitalização do rio.
    Acontece que a revitalização do Rio São Francisco não pode e não deve ser uma simples moeda de troca. O que temos que exigir – nós que habitamos a bacia do Velho Chico – é um programa permanente de revitalização do rio e que não deve se restringir às obras de saneamento.
    Gogó diz que, em Juazeiro, o saneamento avançou. Digo o mesmo a respeito de Belo Horizonte, pois estamos com duas grandes estações de tratamento de esgoto. Mas isso não basta. O Rio São Francisco foi castigado desde a época do Brasil Colônia e precisamos recuperar sua mata ciliar e proteger as nascentes de seus afluentes.
    Isso, no entanto, nada tem a ver com a transposição.
    Gogó lembra a destruição do cerrado e diz que isso acabará com o rio.
    Trata-se de uma posição questionável. A destruição do cerrado diminuiu o volume de infiltração na bacia e fez com que o rio tivesse enchentes periódicas e vazões mínimas menores. O barramento, entre outras coisas, procurou corrigir essas diferenças de vazão, mas criou uma grande perda de água devido à evaporação.
    Se o Rio São Francisco sobreviveu aos barramentos que lhe causaram perdas acentuadas de vazão nos últimos 50 anos, vai continuar existindo, queiram ou não os desmatadores.
    Gogó questiona a vazão atual do Rio São Francisco: 750 m3/s. Segundo ele, foi garantido que, a partir da barragem de Sobradinho, o rio não teria menos que 1800 m3/s.
    Acontece que ninguém pode garantir tal coisa. A vazão de um rio depende do volume de chuvas e se essas faltam, a vazão necessariamente diminui. Os culpados não são os técnicos que fizeram essa previsão, mas São Pedro (ou São José, como acreditam os nordestinos) que vem permitindo a maior seca já enfrentada pelo Nordeste.
    Gogó diz que o período chuvoso está terminando e todos os usos na bacia, a não ser por um milagre da natureza, estarão comprometidos. O único consolo que podemos ter é que, se vier a faltar água para os multiusos da bacia, vamos ter que priorizar o abastecimento humano e o abastecimento animal, como está na lei. Aliás, isso já vem ocorrendo: às quartas-feiras, está proibido o uso da água do Rio São Francisco tanto para a indústria como para a irrigação.
    Gogó lembra que o mar avança de 30 a 50 km São Francisco adentro. Acontece, Gogó, que isso não é culpa minha nem culpa sua e nem mesmo de São Pedro ou de São José. A responsabilidade (não digo culpa) é da represa de Xingó, situada próxima à foz do rio e que faz com que o material dissolvido decante, diminuindo a densidade da água, e tornando-a frágil na disputa com a água do mar.
    Gogó faz uma previsão sombria: “Se continuar nesse ritmo, em breve comprometerá a adutora que abastece Aracaju”.
    Amigo Gogó, o Velho Chico não permitirá que a primeira transposição feita em seu leito seja comprometida. Aracaju somente conseguiu progredir com maior intensidade depois que foi feita a transposição das águas do Rio São Francisco para a bacia do Rio Sergipe. Pode ficar tranquilo: essa obra foi um sucesso, como um sucesso também será a transposição de águas para o Nordeste Setentrional. Não será um avanço da água do mar que irá comprometê-la.
    Gogó lembra os efeitos benéficos das cisternas. Ninguém jamais questionou isso, como também ninguém desmerece a influência do bolsa-família e da aposentadoria rural no combate ao que já foi o maior bolsão de miséria no país. Mas isso não basta. O nordestino precisa recuperar sua dignidade e esta se liga, basicamente, à água.
    Portanto, meu caro Gogó, permita-me usar sua metáfora. Se formos olhar apenas a diminuição da água do rio devido à transposição, estaremos olhando apenas a árvore. Precisamos olhar para a floresta e esta engloba não apenas o acanhado território da bacia do Velho Chico, mas também o semiárido nordestino.

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