Por Roni Pereira, Voyager
Você provavelmente deve ter escutado a frase “direitos humanos só protegem vagabundos” (ou algo semelhante) mais de uma vez e em mais de um local. Seja na internet, na fila do banco, na fila do mercado, na escola, na universidade etc. Esse é, talvez, o senso comum mais propagado e que atravessa todas as diferenças e barreiras sociais da sociedade. O rico, o pobre, o da classe média, o negro, o branco, o heterossexual, o homossexual, a mulher, o homem, a criança etc., todo o tipo de gente já repetiu essa frase.
Por que isso acontece? Há várias teses e discorrer sobre cada uma delas aqui certamente excederia o espaço. Mas a falta de ensino humanístico em escolas e universidades é uma das causas. Evidência disto é que quem repete essa frase não sabe a definição de direitos humanos, o contexto de sua criação e sobre o monopólio da violência exercido pelo Estado. Talvez não tenha nem ouvido falar da Declaração Universal de Direitos Humanos.
Os programas policialescos de baixa qualidade que pululam na TV aberta e na rádio também ajudam a propagar esse senso comum. Uma das principais características desses programas pseudo-jornalísticos é atacar os direitos humanos. Coletam casos de violência e fazem sensacionalismo, induzindo uma visão maniqueísta no telespectador em que o “bandido” é um mal a ser extirpado.
Não é por acaso que inúmeras leis e direitos civis são violados nesses “telejornais” e programas radiofônicos. Há até mesmo a prática criminosa de incitação ao crime. Fica subentendido que suspeitos não devem ter direitos.
É desse jeito que conseguem colocar a população contra o “pessoal dos direitos humanos”. A superficialidade dos programas televisivos evita que o telespectador faça reflexão e assim nasce a confusão entre justiça e vingança.
Com o sensacionalismo dos casos violentos, a TV e a rádio despertam no indivíduo que a assiste ou escuta uma maior sensação de insegurança e, com a crença de que realmente estamos em uma “guerra”, passa a achar e a defender que a tortura e o extermínio de “bandidos” (os pobres) são as soluções para lidar com a criminalidade. Como os direitos humanos são contra essas práticas, são colocados como os “vilões” e “defensores de bandidos” e repudiados por parte da população.
Este ensaio pretende derrubar esse senso comum, esclarecer o que são direitos humanos e por que não faz nenhum sentido ser contrário a eles.
O monopólio do uso da força física
O Estado é uma das instituições mais estudadas das ciências sociais. A sua realidade é tão complexa que ainda não há uma definição consensual. O sociólogo alemão Max Weber, porém, conseguiu elaborar um conceito que é amplamente utilizado por cientistas sociais e políticos: o Estado é uma instituição política comandada por um governo soberano e que detém o monopólio do uso da força física no território onde vive a sociedade subordinada [1].
Atente para o termo “monopólio do uso da força física”. Isso significa que o Estado é a única autoridade legítima a exercer a violência sobre determinado território. Ou seja, por exemplo, para manter a “ordem” o Estado pode prender e manter um indivíduo preso e os seus agentes são os únicos que podem empregar coerção contra o cidadão deste território.
Essa definição de Estado dialoga com a teoria liberal do que o Estado “deve fazer”: mediar conflitos entre grupos sociais e as disputas inevitáveis entre os homens (vide a famosa frase “o homem é lobo do próprio homem”); e impedir a desagregação da sociedade através dos embates entre divergentes. Pode se usar da força física para realizar tudo isso, se for preciso.
Para explicar como se deu essa “legitimação” do Estado, teríamos que ir até as teorias contratualistas, o que certamente excederia o espaço aqui e o assunto abordado neste ensaio não é este. O que podemos dizer é que todo Estado moderno está fundamentado no uso da força física. Deixemos Weber explicar:
“Se não existisse uma instituição social que conhecesse o uso da violência, então o conceito de Estado seria eliminado, e surgiria uma condição que poderia ser designada como ”anarquia”, no sentido específico dessa palavra. É claro que a força não é, certamente, o meio normal ou o único meio do Estado – ninguém diz isso – mas a força é um meio específico para o Estado. Hoje, a relação entre o Estado e a violência é particularmente íntima. No passado, as instituições mais variadas – começando com o clã – conheciam o uso da força física como algo normal. Hoje, no entanto, temos de dizer que um Estado é uma comunidade humana que (com êxito) reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. […] Especificamente, no presente momento, o direito de usar a força física é atribuído a outras instituições ou a indivíduos apenas na medida em que o estado o permite. O argumento é considerado a única fonte do “direito” de usar a violência”. [2]
O leitor que teve paciência de ler até aqui deve estar se perguntando: o que os “direitos humanos” têm a ver com isso?
Apesar de o Estado exercer o monopólio da violência, há limites que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, não se pode fazer prisões arbitrárias ou injustas e os agentes estatais (a policia, por exemplo) não podem torturar e/ou matar o cidadão (exceção em países onde há pena de morte, mas só ocorre depois do devido processo legal). Os direitos humanos existem para fiscalizar o Estado e impedir este tipo de acontecimento.
Em outras palavras, os direitos humanos existem para proteger o indivíduo dos crimes do Estado. É uma proposta oriunda do liberalismo político.
Então, respondendo a pergunta: os direitos humanos defendem “vagabundos”? Sim, e não apenas os “vagabundos” ou “bandidos”, como todo cidadão que for vítima das arbitrariedades estatais. Se você for preso injustamente, pode ser salvo pelos direitos humanos. Ou acredita cegamente que a justiça nunca erra e que por isso um “cidadão de bem” não corre o risco de ir para a cadeia?
O que o “pessoal dos direitos humanos” quer é que os “bandidos” sejam punidos dentro do devido processo legal e sem violação de seus direitos. Isso não é defender bandidagem, mas defender a lei.
Ao contrário do que prega apresentadores raivosos na TV e no rádio, todo individuo deve ter julgamento justo e direito a defesa. Aquele homem ou aquela mulher que está sendo acusada pela polícia de algum ato criminoso não são “bandidos” ou “vagabundos” a serem exterminados, mas suspeitos. A investigação dirá se são ou não bandidos.
O que são os direitos humanos?
Pessoas que afirmam que direitos humanos são “esterco da vagabundagem” ou “coisa de comunista” não sabem do que estão falando. Direitos humanos são direitos sociais, políticos, econômicos, civis e coletivos que todo ser humano deve ter. Exemplos: direito à propriedade, direito à vida, liberdade de pensamento, liberdade de expressão, de culto e de imprensa etc.
Ao dizer que direitos humanos são “para vagabundos”, ironicamente você se vale de um direito humano que é a liberdade de expressão.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um dos maiores documentos da história da humanidade. O seu contexto histórico é logo após a barbárie da Segunda Guerra Mundial que chocou o mundo. Surgiu da necessidade de pensar em novas formas para evitar novas guerras e proteger a democracia e os direitos humanos.
Esse documento não tem obrigatoriedade legal, mas inspirou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
O artigo 5º da Declaração diz: Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. [3]
Conclusões
Não faz sentido afirmar que os Direitos Humanos defendem a “bandidagem”. Este é um equívoco que precisa ser superado. A justiça não é perfeita, tampouco a polícia. Cometem erros e arbitrariedades que podem destruir a vida de qualquer pessoa. Programas policialescos – com superficialidade, falta de reflexão e apresentadores “justiceiros”- ajudam a agravar tudo ainda mais. Por isso precisamos de pessoas preocupadas em garantir os direitos básicos dos suspeitos, que podem até ser inocentes.
A direita e a esquerda precisam se unir em prol do fortalecimento destes direitos, abandonar os extremismos antiliberais e autoritários e superar o senso comum.
Atualização às 16h17: a conclusão do texto foi modificada para se alinhar à linha editorial do site.
Notas
[1] WEBER, Max. A política como vocação, p.1 e 2. Disponível em PDF aqui.
[2] Idem
[3] Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em PDF aqui.
Referências:
WEBER, Max. A política como vocação