Juca Ferreira: O Agro produz, o Agro destrói

Leite com cal, carne apodrecida, químicos e agrotóxicos. A comida que vai para a mesa de brasileiras e brasileiros está temperada com corrupção e caixa 2, além da má qualidade dos alimentos

No Ninja/De Oho nos Ruralistas

O povo brasileiro está com nojo, escandalizado e inseguro diante das revelações de que carne podre vem sendo vendida para o consumo interno e exportada para outros países.

E, o que é pior, a Polícia Federal constatou que parte desta carne imprópria para consumo passa por um processamento com produtos químicos cancerígenos para disfarçar seu estado de putrefação para não ter a cor e o cheiro característicos. Constatou ainda que a carne deteriorada é processada e misturada até com papelão e com partes não indicadas para consumo humano de carcaças de boi, porco e frango, na produção de linguiças, salsichas e outros produtos.

A percepção é de insegurança alimentar. E o povo brasileiro está se sentindo enganado e desrespeitado. Não é para menos. A imagem de uma agricultura moderna, orgulho nacional, construída por um marketing pesado, foi para o ralo.

INSUSTENTÁVEL

Os empresários, o governo e a imprensa estão dedicados a minimizar o escândalo e abafar a repercussão da Operação Carne Fraca. Mas não será fácil. A queda nas vendas já é sensível aqui e além fronteiras. Os países compradores estão se protegendo. Muitos suspenderam a importação desses produtos brasileiros.

A imagem de grandeza e de qualidade do agronegócio brasileiro está arranhada. A recente campanha milionária nos meios de comunicação “O agro é pop! O agro é tudo” perdeu todo o sentido. A verdade é que a maior economia do país, pela falta de seriedade e pela flagrante desonestidade de grandes empresas do setor, está ameaçada. Não será com “versões” e desculpas, nem passando a responsabilidade para a espetacularização da ação da Polícia Federal ou para os funcionários públicos que se deixaram corromper, que a situação será resolvida. O imediatismo não é capaz de solucionar em definitivo essa crise.

Quais as lições que podemos extrair desta crise? O conceito ampliado de sustentabilidade nos ajuda a entender a profundidade do desastre e a solução possível para além do imediato.

Sustentabilidade é um conceito que se popularizou a partir da luta por um meio ambiente saudável e por uma relação equilibrada do ser humano com a natureza. Esse conceito se transformou em um valor universal desde a última década do século passado. A sustentabilidade passou a ser um indicador de qualidade e um ponto de partida para analisar a vida em sociedade e não só para as relações com a natureza. Se espalhou para quase todas as dimensões da vida humana, inclusive para a atividade empresarial. Hoje, espertezas e malandragens empresariais podem funcionar durante um tempo, porém, cedo ou tarde, a casa cai.

E as avaliações de sustentabilidade não ficam só na qualidade dos alimentos produzidos. Todo o processo produtivo e as repercussões externas no meio são avaliadas. A julgar por essa crise, a usura e o desprezo pela dimensão pública causam estragos generalizados e de longo prazo, mesmo quando praticados apenas por algumas empresas. Por exemplo: é inadmissível que uma potência altamente lucrativa, como o frigorífico JBS, seja o segundo maior devedor da Previdência Social. Até ano passado o rombo na Previdência causado pela inadimplência do JBS era de R$ 2 bilhões reais. Existem outras caloteiras no setor.

A Operação Carne Fraca evidencia que, com as fragilidades do setor, podem até chegar ocasionalmente a ser o maior exportador do mundo de produtos animais e alimentos em geral, mas terão dificuldades enormes para atuar de forma estável e duradoura no mundo globalizado.

Se o governo e a mídia conseguirem estancar essa sangria e recuperar a credibilidade internacional e no próprio país, ainda existem outras fragilidades e bombas-relógio na mega atividade do agronegócio. Outras áreas importantes e todos os elos das suas cadeias produtivas precisam passar por uma rigorosa fiscalização por parte da sociedade e por uma revisão de seus padrões de qualidade e sustentabilidade. Sem falar na relação que o setor tem com o país.

TUDO DOMINADO

As empresas brasileiras, com honrosas exceções, se acostumaram mal, tratando o consumidor interno sem o devido respeito, tratando o meio ambiente de forma predatória, não respeitando a dimensão pública, embaralhando o público com o privado, corrompendo e desrespeitando o Estado brasileiro. Ou os empresários se modernizam, ou sofrerão sempre essas crises destruidoras.

É só assistir dez minutos do noticiário de TV para perceber que o setor, as autoridades brasileiras e os meios de comunicação estão compreensivelmente muito preocupados com o mercado externo e com a perda econômica e, inaceitavelmente, bem menos atentos à segurança alimentar do cidadão e da cidadã brasileira. Parecem acreditar que aqui aceitamos tudo.

A soja brasileira é primordialmente transgênica, o milho e outros alimentos também. Estas culturas usam abusivamente agrotóxicos, que também estão em quantidades intoleráveis nas frutas, verduras e nos legumes. Alguns desses venenos estão proibidos no resto do mundo. E quem não se lembra do leite batizado com soda cáustica?

A atividade agrícola, sem a necessária regulação e sem fiscalização rigorosa, como inevitavelmente aconteceria com qualquer outra atividade econômica, vem provocando impactos ambientais e sociais desnecessários. A atividade agrícola vem comprometendo as reservas de água do país, contaminando e secando mananciais através do uso indiscriminado dos recursos naturais e da aplicação de técnicas agrícolas inadequadas. Sem falar nos danos causados pelas grandes extensões de monocultura.

O agronegócio brasileiro tem sido a síntese do arcaico com o contemporâneo. O agro produz e o agro destrói. O agronegócio consegue ser uma dádiva e um castigo para o país. O maior produtor de alimentos do planeta é responsável por desmatamento, poluição, desertificação de terras férteis, grilagem de terra, trabalho escravo, ataques violentos aos povos indígenas, envenenamento, entre outras mazelas. Não adianta ressaltar a sua importância para a economia brasileira e as divisas que angariam. Nem mesmo que as responsabilidades das empresas do setor por essas mazelas são muito desiguais. Na média, o setor fica devendo ao país.

O agro pode tudo. Sua força econômica e política é tanta, que se dão ao luxo de conspirar abertamente contra a democracia brasileira e contra os direitos sociais. A atuação da “bancada do boi” no Congresso Nacional é vergonhosa, escandalosamente reacionária, reflexo de uma postura historicamente antidemocrática. Se comportam como se fossem donos da país.

MAIS DEMOCRACIA, MAIS CIDADANIA

Tudo isso é só parte de uma crise maior vivida pela sociedade brasileira. O Brasil está em uma encruzilhada entre o passado e o futuro, entre o século XIX e o século XXI. Ainda vivemos submetidos à lógica tirânica da sociedade de mercado sem limites e sem contrapontos. Vivemos um capitalismo sem a devida regulação civilizatória por parte da sociedade, através das instituições do Estado e através de organizações sociais fortes. A única força realmente determinante no Brasil é a força da grana.

Para manter esse sistema brasileiro voltado para a produção de mercadorias e para a obtenção do lucro a qualquer custo e pouco afeito às necessidades e direitos dos seres humanos, é preciso que tudo esteja dominado. É preciso domesticar o parlamento, os partidos, as instituições. Por isso, a comunicação é monopolizada e a crítica é sistematicamente rechaçada. A ferro e fogo.

Por isso, a democracia não é benquista; esta necessidade de controle absoluto da sociedade para manter o Brasil sem evolução nas suas relações sociais e sem consolidar uma democracia moderna tem assim, permitido que o autoritarismo permaneça tão presente ao longo da nossa história.

Para uma boa parte das nossas classes dominantes, o Brasil não é uma nação. É um entreposto comercial ou uma grande fazenda. O Brasil justo, sustentável e democrático passa pela consciência, pela atitude, pelo comportamento e pela organização política coletiva da sociedade.

Fora da democracia não há saída. A sociedade mobilizada e participativa possibilita que o Estado seja eficiente e eficaz; a cidadania é o que garante os direitos e a proteção dos interesses das pessoas, do povo brasileiro. Só na democracia é possível desenvolver mecanismos de controle e contenção da sanha de lucro desenfreado. Só na democracia venceremos a batalha contra a corrupção. Capitalismo sem uma democracia forte é a barbárie.

Fora da democracia, não há saída.

** Juca Ferreira foi duas vezes Ministro da Cultura, Secretário de Cultura de SP, duas vezes vereador e Secretário de Meio Ambiente em Salvador. Embaixador especial da Secretaria Geral Ibero-Americana. Trabalhou em organizações sociais e ações como OndAzul e SOS Chapada Diamantina.

Charge de Martirena.

 

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