Povos indígenas ameaçados: a violência do Estado e dos grupos econômicos

Na esteira do maior encontro nacional dos povos indígenas em Brasília, os poderes de Estado desprotegem e endossam as violações de direitos humanos desta população.

Por Lizely Borges, da Página do MST

O ataque aos indígenas da etnia Gamela, ocorrido no Povoado de Bahias, município maranhense de Viana, no último domingo (30), e a apresentação do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), na manhã desta terça-feira (3) são, na avaliação de movimentos campesinos e organizações que atuam na defesa dos povos indígenas e quilombolas, ações conectadas e apontam como os poderes executivo, legislativo e judiciário atuam, não apenas de forma a fragilizar progressivamente a política destinada aos povos indígenas, como também não se reconhecem no papel de protetor da vida desta população.

Área de interesse de fazendeiros criadores de gado e búfalo, a região de Viana, localizada a cerca de 214 quilômetros da capital São Luís, é reivindicada pelos Gamela como retomada da terra pelos povos originários. O ataque por pistoleiros armados e de posse de facões que resultou em ao menos 13 indígenas feridos, sendo dois com as mãos decepadas e cinco baleados, não é fato isolado. Nos últimos três anos houve outros ataques registrados na Polícia Civil do município e denunciado pelos organismos de defesa dos povos indígenas.

“O povo Gamela já vinha denunciando os planos de fazendeiros para matar lideranças de seu povo. No entanto, mais uma vez as autoridades competentes se omitiram diante das graves violações praticadas contra os povos indígenas, seja por agentes estatais, seja por entes privados com o aval do Estado”, relata a nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) sobre a reincidência dos ataques, com conhecimento pelo Estado. As lideranças indígenas relataram ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que o ataque deste domingo foi previamente organizado e a polícia local, ainda que tendo conhecimento da ação, não interveio.

Diante do progressivo aumento de atentados contra a vida de indígenas – 137 mortes em 2015, de acordo com o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – CIMI/2016, a reivindicação pela retomada das demarcações de terras indígenas, questão central aos povos, divide espaço na fala de lideranças com a súplica pelo direito à vida. Nesse quadro, se inserem ameaças por grileiros, fazendeiros, grandes latifundiários e empreendimentos, como construção de rodovias e hidrelétricas.

“Todos os dias nascem nossas crianças e não sabemos como vão viver porque não já cabem nos mapas que o governo, dono do dinheiro, quer desenhar, e leis que quer reescrever. Acordamos todo o dia com alerta de morte. O governo e as empresas dizem que essas hidrelétricas serão de energia limpa, mas limpa elas nunca serão porque só podem ser construídas com o sangue do povo Mundurucku e de nossos vizinhos”, relata a liderança indígena, Alessandra Munduruku. Ameaçados por cerca de quarenta projetos de hidrelétricas na região, o povo Munduruku ocupou no dia 26 de abril a rodovia Transamazônica (BR-230), na altura do km 25, em Itaítuba-PA, como forma de pressionar o governo para dar sequência à demarcação da terra indígena Sawré Maybu.

Além das ameaças que também partem dos caminheiros e de setores econômicos locais, os cerca de 150 indígenas acampados veem a demarcação da terra em risco pela criação de uma Área de Preservação Ambiental (APA) do Tapajós, reivindicada pelos Munduruku. A Medida Provisória (MP) 758, de autoria do presidente Michel Temer (PMDB) e sob análise por uma Comissão Mista do Congresso Nacional, desconsidera o processo de demarcação da terra indígena. “O que a gente sabe é que na APA, madeireiro, palmiteiro pode entrar sem nenhuma fiscalização. Mudou totalmente a forma de viver porque a gente faz denuncia o dia todo. Agora é só resistência, só que a gente não vai se curvar perante o governo e vai lutar até o último minuto. O que a gente quer é a nossa terra em paz”, complementa Emerson Sawré Munduruku, também da região.

De acordo com as lideranças, a área apresenta grandes reservas de minério e é objeto de interesse de grupos econômicos e parlamentares ligados ao agronegócio.

Criminalização dos defensores dos direitos dos povos indígenas

A atuação de expoentes ligados ao agronegócio não ocorre apenas na ponta, na relação direta com os povos indígenas. Nesta terça, o relator da CPI Funai/Incra 2, Nilson Leitão (PSDB-MT), apresentou em sessão da comissão o volumoso relatório da CPI, com 3.385 páginas. No relatório, lideranças de organizações de defesa dos direitos dos povos indígenas, antropólogos e ex-procuradores da República, entre outros, são indiciados por ações como improbidade administrativa e elaboração de laudos antropológicos.

Tanto os trabalhos da primeira edição da CPI Funai/Incra, operante entre os meses de outubro de 2015 a agosto de 2016, quanto sua segunda versão – instituída no mês seguinte do último ano – são objetos de crítica pela bancada de oposição composta por deputados do PT, PCdoB, PDT e PSOL. Recaem sobre a mesa condutora dos trabalhos a crítica de condução parcial dos trabalhos e orientação da CPI, desde sua criação, para atender aos interesses dos ruralistas.

“Com o controle interno na aprovação dos requerimentos, nenhum requerimento da oposição foi aprovado, demonstrando um claro objetivo da CPI apenas de atender aos interesses do agronegócio e da bancada ruralista”, aponta o membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Alexandre Conceição.

Por determinação do regimento interno da Câmara dos Deputados, a composição de uma comissão responde à proporcionalidade partidária da casa legislativa e demais critérios para representação das bancadas. Como os deputados da bancada ruralista representam maioria na casa legislativa, este maior número também se apresenta no delineamento da CPI. A mesa diretora da CPI, por exemplo, é composta exclusivamente por parlamentares vinculados à Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA). O presidente da CPI, o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), os deputados Luis Carlos Heinze (PP-RS), Mandetta (DEM-MS) e Nelson Marquezelli (PTB-SP), 1º, 2º e 3º vice-presidência da Comissão, respectivamente assim como o relator Nilson Leitão integram a FPA.

“Consideramos que a CPI Funai Incra é um ato preparatório da bancada ruralista para criar em clima político com o objetivo de colocar em pauta a PEC 215 e outros instrumentos legislativos que afetam os direitos fundiários e povos indígenas no Brasil. Essa CPI se estende desde 2015 e não há qualquer elemento por parte da bancada que justifique qualquer ação para criminalizar as organizações e lideranças, mas este tem sido o foco de atuação deles. A bancada ruralista tem uma série de medidas para facilitar a ação de grupos econômicos multinacionais, de titulação do território nacional”, revela o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto.

O coordenador do Cimi afirma ainda que a ação dos parlamentares visa criar as condições para mercantilização progressiva das terras brasileiras, como expressa no Projeto de Lei 4059/2012, em tramitação no Congresso, que versa sobre a não mais restrições a compra de terras por estrangeiros. “A CPI é uma cortina de fumaça para esconder as ações que estão realizando na perspectiva de desnacionalização do território brasileiro”, afirma.

A reescrita das leis

Os povos indígenas têm denunciado a edição de projetos de lei que alteram os dispositivos constitucionais sobre a demarcação de terras. No centro da denúncia, classificam como gravíssima a ameaça ao direito ao território, materializada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, de autoria de Almir Moraes de Sá (PR-RR), que transfere do Poder Executivo para o Legislativo a atribuição da demarcação de terras indígenas, a titulação de terras quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental.

Mesmo já declarada inconstitucional em 2004 pelo parecer do deputado Luiz Couto (PT- PE), então relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), a PEC foi reapresentada em 2012 pelo então deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), atual ministro da Justiça, e aprovada na CCJC. Dois anos depois, em 2014, o mesmo deputado apresentou um substitutivo à PEC 215, com novas emendas e a inclusão da possibilidade de reabertura de processos administrativos já finalizados.  “Enquanto dormimos, eles prepararam novas leis para paralisar de vez a demarcação de terras, entregando tudo nas mãos de empresários, grileiros, garimpeiros, madeireiros, e nos intimidam com ameadas dentro de nossas próprias casas”, relata Alessandra Munduruku. A PEC 215 está sujeita à apreciação do plenário a qualquer momento.

“Essas leis são contra nós, indígenas, que não pensamos como capitalista. A gente não pensa em explorar nosso território pra ganhar dinheiro. É de pouquinho em pouquinho [o uso do território], não tirando raiz. A nossa cultura é de preservação. O agronegócio só explora nosso território, planta soja e milho… isso vai ser transportado para outro país pra enriquecer ainda mais algumas pessoas usando nosso território”, relata o presidente da Associação Terra Indígena do Xingu, Yakami Kuikuro, em resposta à declaração do presidente da Funai, Antônio Costa, em entrevista recente à BBC. Costa, pastor evangélico e no cargo há pouco mais de dois meses por indicação do Partido Social Cristão (PSC), defendeu que os povos indígenas “parados no tempo” devem ser inseridos à uma lógica de mercado como estratégia para manutenção de sustentabilidade, a exemplo dos indígenas americanos que “são produtivos, tem cassinos”, disse.

No Parque Nacional do Xingu a lógica de mercado se impõe com força. Yakami denuncia o alto uso de agrotóxicos nas plantações de commodities, em especial a soja, nas fazendas próximas. “O grande problema que estamos enfrentando é o desmatamento em torno do território e a poluição causada pelo uso de agrotóxicos. Dos três leitos de rio, um já está careca. A associação luta para assegurar cultura e patrimônio genético do território”, relata. Ele denuncia ainda a construção da BR-242 para escoamento de soja transgênica, a dois quilômetros do Parque Nacional. O Parque reúne 16 etnias indígenas em uma área de 26.420 quilômetros quadrados.

A fala de relativização do papel do Estado na demarcação de terras indígenas pelo presidente da Funai, ao tratar os povos não operam como mercado produtivo, dialoga com a posição do ministro da Justiça e Cidadania, Osmar Serraglio. Coordenador jurídico da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), logo após assumir a pasta, o parlamentar declarou que é necessário “parar com essa discussão sobre demarcação de terras indígenas, porque terra não enche barriga de ninguém”.

Desmonte da Funai

O Orçamento Geral da União para 2017 aponta que, de fato, a demarcação de terras não está no horizonte de prioridades do Executivo. Do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA), aprovado sem vetos pela Câmara no início do ano, cerca de 70% do orçamento destinado à Funai, órgão alojado no MJ e responsável pela política indígena, está comprometido com a manutenção da estrutura do órgão, como pagamento de salários, infraestrutura, aluguéis. A demarcação de terras responde por apenas cerca de 2,7% do orçamento aprovado para o ano.

Para o assistente técnico da Funai, Gustavo Cruz, o cenário é de desmonte do quadro institucional. “Nosso quadro está em 20% da capacidade de execução. São [necessários] 6 mil servidores e estamos com 2.100. É um sinal claro de que a instituição está caminhando para fechamento e isto é muito ruim para povos indígenas”, problematiza. Para ele, este contexto que leva à “inviabilização da existência” da função do servidor, somado ao orçamento insuficiente e ao vínculo dos cargos de direção do governo com os setores ruralistas, exige a organização e resistência pelo servidor.
“As madeireiras, as mineradoras, os empreendimentos têm prioridade [para o governo] e os indígenas não são ouvidos. Isso é triste e os servidores da Funai, que devem cumprir sua missão institucional, precisam estar unidos para se rebelar contra isso. Não é mais aceitável que se defenda publicamente o não cumprimento da Constituição por figuras de comando, e que isso passe batido pelos servidores. Não há nesse momento aceitação dos servidores que esse tipo de pensamento lidere a Funai, por isso os servidores estão se manifestando e vão aumentar”, relata. Com apoio de sindicatos, associações regionais e indígenas, os servidores têm se manifestado contra o desmonte do órgão e da política voltada aos povos indígenas.

Através do decreto 9.010/17, publicado em 24 de abril, com o suposto objetivo de reestruturar a Funai e o quadro funcional da autarquia, foram extintos 347 cargos. Desses, 326 referem-se aos DAS nível 1, o mais básico dos cargos comissionados. Muitas dessas posições eram ocupadas por indígenas em diversas regiões do país, no trato direto com as comunidades.

*Editado por Leonardo Fernandes.

Imagem: Policial impede passagem de manifestante durante ATL. Foto: Mídia Ninja / MNI

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