Löwy: História, razões e ética do Ecossocialismo

Por que reorganizar a produção e o consumo, em bases não-mercantis. As divergências em relação ao “capitalismo verde” e ao “socialismo” burocrático. A luta para superar o sistema não precisa esperar pela conquista do poder. Marx, um produtivista?

Por Michel Lowy, em entrevista a Miguel Fuentes* – Outras Palavras 

O sociólogo e filósofo Michael Lowy, uma das referências mais importantes do pensamento anticapitalista, concedeu há poucos dias entrevista sobre o perigo crescente da crise ecológica e sua importância como problema estratégico central para o marxismo.

Refletindo sobre uma série de questões tais como as mudanças climáticas, o ecossocialismo e os desafios do movimento revolucionário durante as próximas décadas, as ideias deste intelectual constituem um claro chamado de advertência. Segundo ele, dependerá da capacidade que tenham as organizações de esquerda para integrar esses debates em seus seus respectivos eixos estratégicos, a possibilidade (ou não) de enfrentar o último desafio programático da revolução socialista: o perigo do colapso da civilização e da extinção humana, ou melhor, nas palavras de Lowy… a ameaça de um ecossuicídio planetário.

O que é o Ecossocialismo e quais suas referências?

O ecossocialismo é uma alternativa radical ao capitalismo que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista (marxista). Sua premissa fundamental é que a preservação de um ambiente natural favorável à vida no planeta é incompatível com a lógica expansiva e destrutiva do sistema capitalista. Não se podem salvar os equilíbrios ecológicos fundamentais do planeta sem atacar o sistema, não se pode separar a luta pela defesa da natureza do combate pela transformação revolucionária da sociedade.

Existe hoje uma corrente ecossocialista internacional que, por ocasião do Foŕum Mundial de Belém (janeiro de 2009), publicou uma declaração sobre as mudanças climáticas, assinada por centenas de pessoas de 45 países. Entre seus precursores se encontram figurais tais como Manuel Sacristán (Espanha), Raymond Williams (Inglaterra), André Gorz (França), James O’Connor (Estados Unidos), e entre seus representantes atuais estão o coautor do “Manifesto Ecossocialista Internacional” (2001) [1] Joel Kovel (Estados Unidos), o marxista ecológico John Bellamy Foster (ibidem), o indigenista peruano Hugo Blanco, a ecofeminista canadense Terisa Turner, o marxista belga Daniel Tanuro, e muitos outros.

O ecossocialismo dissocia-se de dois modelos inoperantes: 1) A ecologia conformista, que adapta suas propostas ao mercado e busca desenvolver um “capitalismo verde” — quer dizer, uma ilusão nefasta ou, em muitos casos, uma mistificação. 2) O pretendido “socialismo real” (da falida URSS, China etc.), o qual não foi mais que uma caricatura burocrática do socialismo baseada numa imitação servil do aparato técnico capitalista e num produtivismo antiecológico tão destruidor da natureza como seu equivalente ocidental.

O ecossocialismo propõe uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo baseado em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isso significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população – e não as “leis de mercado” ou um Birô Político autoritário – decidam, num processo de planejamento, as prioridades e os investimentos.

Esta transição poderá conduzir não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mais também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização ecossocialista para além do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de mercadorias inúteis. O “Bem Viver” da tradição indígena das Américas é uma importante fonte de inspiração para esta alternativa.

Quais são os principais aportes do Ecossocialismo à teoria marxista e à prática das organizações de esquerda?

Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo produtivista. Tal crítica nos parece completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, a ideia de qua a produção de mais e mais mercadorias é o objeto fundamental da economia e da sociedade.

O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, brincar, amar. Para tanto, Marx proporciona as armas para uma crítica radical do produtivismo e, particularmente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as forças do trabalhador, como também as próprias forças da terra, esgotando as riquezas naturais. Assim, essa perspectiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx. No entanto, não foi suficientemente desenvolvida.

É verdade, entretanto, que alguns escritos de Marx, e sobretudo de Engels (o Anti-Dühring, por exemplo) propõem que a tarefa de uma revolução seria unicamente mudar as relações de produção, que se converteram em travas ao livre desenvolvimento das forças produtivas. Cremos que, desde uma perspectiva ecossocialista, necessita-se de uma visão muito mais radical e profunda do que deve ser uma revolução socialista. Trata-se de transformar não só as relações de produção e as relações de propriedade, como a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparato produtivo. É preciso que aplicar ao aparato produtivo a mesma lógica que Marx pensava para o aparato de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris quando ele dizia o seguinte: “os trabalhadores não podem apropriar-se do aparato do Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado, não é possível, porque o aparato do Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores. Então, trata-se de destruir esse aparato de Estado e criar outro tipo de poder”.

Essa lógica tem de ser aplicada ao aparato produtivo que deve ser, se não destruído, ao menos radicalmente transformado. Este não pode ser simplesmente apropriado pelas classes subalternas, e posto a trabalhar a seu serviço, pois necessita ser estruturalmente transformado. Por exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona com base em fontes de energia fósseis, responsáveis pelo aquecimento global – o carbono e o petróleo. Um processo de transição ao socialismo só seria possível quando se der a substituição dessas formas de energia por energias renováveis — por exemplo a água, o vento e, sobretudo a energia solar.

Por isso, o ecossocialismo implica uma revolução do processo de produção, das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de socialismo, quer dizer, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, particularmente do calor – alguns ecossocialistas falam já de um “comunismo solar”, pois entre o calor, a energia do Sol, o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.

Mas não basta transformar o aparato produtivo e os modelos de propriedade, é necessário transformar também o padrão de consumo, todo o modo de vida em torno do consumo, que é o padrão de capitalismo baseado na produção maciça de objetos artificiais, inúteis e perigosos. Por isso trata-se de criar um novo modo de consumo e um novo modo de vida, baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, algo completamente diferente das supostas e falsas necessidades produzidas artificialmente pela publicidade capitalista. Dele se depreende pensar a revolução ecossocialista como uma revolução da vida cotidiana, como uma revolução pela abolição da cultura do dinheiro e da mercadoria imposta pelo capitalismo.

O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra, solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, é também uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Não se trata de esperar até o dia em que o mundo se transforme, mas de começar desde já, agora, a lutar por esses objetivos. Trata-se de promover a convergência, a articulação entre lutas sociais e lutas ecológicas, as quais têm o mesmo inimigo: o sistema capitalista, as classes dominantes, o neoliberalismo, as multinacionais, o FMI, a OMC. Os indígenas da América Latina, desde as comunidades andinas do Peru até as montanhas de Chiapas, estão na primeira linha de combate em defesa da Mãe Terra, da Pachamama, contra o sistema.

Noam Chomsky tem afirmado nos últimos anos que a crise ecológica é mais importante que a crise econômica [2]. Qual sua opinião sobre essa frase?

Estou inteiramente de acordo com Chomsky! A crise econômica é grave, porque serve às classes dominantes, ao capital financeiro, para aplicar suas receitas neoliberais, agravando o desemprego, destruindo conquistas sociais, privatizando os serviços públicos etc. Mas a crise ecológica é algo muito mais importante e muito perigoso, porque ameaça as condições de vida da humanidade no planeta.

A que se você refere quando fala de um possível ecossuicídio planetário?

A civilização capitalista industrial moderna é um trem suicida que avança, com rapidez crescente, em direção a um abismo: as mudanças climáticas, o aquecimento global. Trata-se de um processo dramático que já começou, e que poderá levar nas próximas décadas a uma catástrofe ecológica sem precedentes na história humana: elevação da temperatura, desertificação das terras, desaparecimento da água potável e da maioria das espécies vivas, multiplicação dos furacões, elevação do nível do mar – até que Londres, Amsterdã, Veneza, Xangai, Rio de Janeiro e demais cidades costeiras fiquem debaixo d’água. A partir de um certo nível de elevação da temperatura, será ainda possível a vida humana neste planeta? Ninguém pode responder com segurança a esta pergunta.

O dito ecossuicídio planetário é uma situação hipotética, ou uma possibilidade concreta para as próximas décadas?

Cientistas como James Hansen – durante muitos anos o climatólogo da NASA, nos EUA – explicam-nos que as mudanças climáticas não se desenvolvem de forma gradual, mas sim com saltos qualitativos. A partir de um certo nível de aquecimento – 2 graus centígrados além das temperaturas pré-industriais – o processo se tornará irreversível e imprevisível. Isso pode acontecer nas próximas décadas, sobretudo se se confirmam uma série de evidências científicas recentes: derretimento do gelo dos polos mais rápida do que o prevista; maciças emissões de metano (um gás com muito maior efeito de aquecimento do que o CO2) pelo derretimento do permafrost na Sibéria, Canadá etc. Ninguém pode prever quando se dará a inversão, e portanto não têm sentido as previsões que se referem ao ano 2.100.

Uma série de cientistas começaram a alertar sobre uma grande crise planetária no caso de que o aquecimento global supere os 2 graus centígrados, produzindo com ela uma importante quebra nos sistemas agrícolas. Ideias semelhantes têm sido discutidas no âmbito dos estudos energéticos, projetando-se a possibilidade de uma crise estrutural próxima do capitalismo como produto do esgotamento do petróleo e dos combustíveis fósseis (fenômeno conhecido como Peak Oil). [3] Como se relacionaria a ideia do perigo de um ecossuicidio planetário com a possibilidade de um fenômeno de colapso capitalista, aquele como consequência do avanço da crise ecológica no futuro próximo?

Em primeiro lugar, não tem sentido discutir o Peak Oil como se fazia ainda há alguns anos. O problema não é o esgotamento do petróleo, mas que há muitas reservas de petróleo e carvão. Se elas forem queimadas, o aquecimento global será inevitável e catastrófico.

Pois bem, a crise ecológica, por si mesma, não leva a um colapso do capitalismo. O capitalismo pode sobreviver nas piores condições energéticas e agrícolas. Não há menhum mecanismo automático que leve a um colapso capitalista. Haverá crises terríveis, mas o sistema encontrará alguma saída, em forma de guerras, ditaduras, movimentos fascistas etc. Assim foi nos anos 1930 e assim pode ocorrer no futuro. Como dizia Walter Benjamin: “o capitalismo nunca vai morrer de morte natural”. Se queremos por um fim no sistema capitalista, isso só será possível por um processo revolucionário, uma ação histórica coletiva anticapitalista. O capitalismo só desaparecerá quando suas vítimas se levantarem contra ele e o eliminarem.

Marx afirmou no Manifesto Comunista que a história da humanidade foi até hoje a história da luta de classes, e que esta luta terminou sempre com a vitória de uma classe sobre outra… ou então “na destruição das classes em conflito”. Em nossos dias, mais de um século e meio após aquela afirmação, uma equipe de pesquisadores financiados parcialmente pela NASA divulgou um estudo no qual se sugere, entre outras coisas, que a combinação dos efeitos das mudanças climáticas e dos níveis de concentração extrema de riqueza, assim como também de uma futura escassez de recursos em nível mundial estariam a ponto de produzir a ruína da civilização contemporânea. [4] Poderíamos hoje dizer que a sincronia entre as crises ecológica, econômica e social constituiria a materialização histórica daquela possibilidade prevista por Marx em torno de uma possível autodestruição das classes fundamentais do capitalismo?

Creio que se trata de realidades distintas. A concentração extrema de riquezas não conduz à “destruição das duas classes de luta”: é simplesmente a vitória de uma das classes, a burguesia financeira parasitária contra as classes subalternas…

Pois bem, a crise ecológica pode, sim, ter como resultado a ruína da civilização atual e a autodestruição das classes da sociedade moderna, segundo a previsão de Marx. Se se permite ao capitalismo destruir o planeta, todos os seres humanos serão vítimas. Mas a mentalidade dos capitalistas, em particular a oligarquia fóssil – os interesses da indústria do carbono, do petróleo e suas associadas da eletricidade, do transporte, da indústria química etc – poderia ser resumida com a famosa frase do rei francês Luís XIV: “Depois de mim, que venha o dilúvio”.

Durante as primeiras décadas do século XX, algumas importantes figuras do marxismo tais como Lenin, Trotsky ou Gramsci tiveram de enfrentar os horrores das Guerras Mundiais e do Fascismo. Em nosso caso, em troca, pareceria que temos diante de nós um horizonte destrutivo muito superior ao que ditos revolucionários poderiam ter sequer imaginado. Um exemplo disso pode ser visto nos efeitos hipercatastróficos que podem chegar a ter as mudanças climáticas, assim como também no começo do que algumas importantes referências científicas denominaram como a sexta extinção maciça de espécies. Outra denominação em voga deste fenômeno é a do Antropoceno e sua possível relação com um fenômeno de extinção iminente da própria espécie humana. [5] É correto, para você, afirmar que nos encontraríamos às portas de um salto destrutivo inédito da dinâmica capitalista?

Há um consenso crescente entre os cientistas de que entramos numa nova era geológica, o Antropoceno, uma era na qual a ação humana – na verdade, a civilização capitalista industrial moderna – determina os equilíbrios do planeta, inicialmente o clima. Uma das características do Antropoceno é o processo da sexta extinção maciça das espécies, que já começou.

A elevação da temperatura global acima de 2 graus centígrados terá sem dúvida efeitos “hipercatastróficos”, que não se podem comparar com outros eventos históricos (guerras etc.), mas somente com eventos de outras eras geológicas quando, por exemplo, a maioria das costas dos continentes atuais estava sob o mar.

Não creio que se possa afirmar que a extinção da espécie humana seja “iminente”. É um perigo real, uma ameaça, mas para as próximas décadas.

Há mais de um século Rosa Luxemburgo lançou uma das talvez mais obscuras advertências da tradição marxista: isto é, sua famosa frase “Socialismo ou Barbárie”. No caso de Walter Benjamin é igualmente conhecida sua advertência em torno da necessidade de “cortar o pavio antes que a fagulha chegue à dinamite”, em alusão à possibilidade de um “fim catastrófico” (negativo) do desenvolvimento capitalista. Hoje, já passado mais de um século no qual o capitalismo seguiu impondo sua vontade às expensas de toda a humanidade… é possível dizer que a barbárie triunfou… ou então que se encontraria perto disso?

A barbárie ainda não triunfou. Tampouco sabemos se se encontra perto de fazê-lo. Tudo depende da capacidade de resistência das vítimas do sistema: quer dizer, também de nós. O fatalismo é um erro político. Como dizia Gramsci, precisamos de pessimismo na razão e de otimismo na vontade.

Nas últimas décadas, algumas das ideias-força mais importantes que a intelectualidade capitalista integrou em seu programa ideológico foram aquelas em torno dos conceitos de “fim da história”, “fim da luta de classes” e “fim da classe trabalhadora”. Deixando de lado o evidente triunfalismo capitalista que acompanhou o desenvolvimento de tais ideias, estes conceitos podem hoje ser considerados, diante do possível ecossuicídio planetário? O “fim da história” é hoje um perigo real?

O possível econssuicídio planetário é um perigo real, mas nada tem a ver com os discursos ideológicos do “fim da história” ou da luta de classes, que proclamavam a eternidade do capitalismo neoliberal. Ao contrário, a luta de classes é o método para por fim à dinâmica autodestrutiva do capital.

Como podemos pensar essa situação a partir do marxismo e nos preparar para um cenário de crise com uma dimensão possivelmente muito superior à que o campo das lutas sociais enfrentou nos últimos séculos?

O marxismo nos permite compreender a natureza destrutiva do capitalismo, sua tendência inexorável à expansão perpétua, e portanto sua contradição com os limites naturais do planeta. O marxismo nos permite colocar nas vítimas do sistema, nas classes e grupos oprimidos e explorados o sujeito possível de uma transformação anticapitalista. Finalmente, o marxismo nos propõe, com o programa socialista, os fundamentos de uma alternativa radical ao sistema. Mas, sem dúvida, como expusemos acima, necessitamos de uma reformulação ecossocialista das concepções marxistas.

A Revolução Social é uma política anticapitalista que coloque a expropriação da burguesia e a tomada do poder pelos trabalhadores como um passo necessário para deter o desastre que se avizinha, ou para nos preparar para resistir ao colapso?

Deter o desastre é uma tarefa imediata. Cada tubulação de petróleo que se interrompe, cada central elétrica de carbono que se fecha, cada mata que se protege contra a voracidade destruidora do capital, detém o desastre. Mas só será possível impedir a ruína da civilização humana destruindo o sistema com uma revolução socioecológica.

É necessário adaptar o programa e a política da Revolução Socialista diante dos novos perigos que supõe a combinação entre crise ecológica, econômica e social durante o século atual? Que elementos o Manifesto Ecossocialista nos oferece para esta tarefa?

O Manifesto Ecossocialista não tem a resposta a todas estas perguntas. Simplesmente expõe que o socialismo do século 21 tem que ser um socialismo ecológico, e vice-versa: de pouco nos serve uma ecologia que não seja socialista. Sua principal tese é que o sistema capitalista é incompatível com a preservação da vida em nosso planeta. O programa socialista tem que transformar-se em programa ecossocialista, integrando de maneira muito mais central a questão da relação com a natureza do que na tradição socialista ou comunista do século 20.

Um dos princípios fundamentais do marxismo revolucionário foi o de defender o papel da classe trabalhadora como sujeito social da Revolução Socialista. Agora, se considerarmos que um possível colapso civilizatório iminente se associaria à ruína da sociedade industrial e, consequentemente, à desintegração do próprio sujeito trabalhador em vastas regiões do planeta… é possível continuar defendendo a centralidade do movimento trabalhador na luta de classes e do projeto socialista?

A combinação das crises “tradicionais” do capitalismo e da crise ecológica cria as condições para uma ampla aliança de forças sociais contra o sistema. Potencialmente, como expunha o “Occupy Wall Street”, os 99% que não têm um interesse fundamental na manutenção do sistema, são atores possíveis para sua superação. Desde a Conferência Intergalática dos Zapatistas em Chiapas em 1996, e os eventos de Seattle em 1999, até os movimentos recentes de Indignados, vemos os primeiros elementos desta coalisão antissistêmica. Participam dela sindicalistas, ecologistas, movimentos indígenas, camponeses, movimentos de mulheres, associações cristãs, correntes revolucionárias, movimentos da juventude, associações de bairro, militantes socialistas, comunistas e anarquistas. Hoje em dia na América Latina as comunidades indígenas e camponeas estão na vanguarda das lutas socioecológicas, antineoliberais, anti-imperialistas e anticapitalistas. Mas, em última análise, a principal força desta coalizão são os trabalhadores, no sentido amplo: os que vivem da venda de sua força de trabalho, ou do seu próprio trabalho individual ou comunitário. Esta ampla classe de trabalhadores, que não deve ser confundida somente com os operários industriais, constitui a maioria da população, e sem sua ação coletiva nenhuma revolução será possível.

Outro princípio tradicional do marxismo durante o século 20 foi defender a necessidade do controle operário da produção, do planejamento mundial da economia e da distribuição socialista das riquezas como meios possíveis para satisfazer, entre outras coisas, as necessidades materiais do conjunto da humanidade. Agora, se considerarmos que a crise ecológica que se avizinha (e o tipo de quebra alimentar global que trará consigo) poderia implicar que inclusive tais medidas sejam já insuficientes (ineficazes) para dar resposta às necessidades da população mundial, isso devido à própria gravidade da crise que se avizinha e à inexistência de tecnologias capazes de assegurar uma adequada produção agrícola ante um cenário hipercatastrófico de mudanças climáticas… O que fazer? Como resolver esse aparente paradoxo no qual um setor da humanidade pareceria já estar perdido (morto) para o projeto socialista? Mas ainda… é possível resolvê-lo?

Penso ser prematuro discutir o que fazer quando o aquecimento global superar os 2 graus centígrados… Nossa tarefa nas próximas décadas é tratar de impedir isso, promovendo as lutas socioecológicas, as várias resistências anticapitalistas e a consciência ecossocialista. O objetivo é a abolição do capitalismo, o planejamento ecossocialista – em escala local, nacional, continental e, em algum momento, mundial – a distribuição da riqueza e o controle democrático (não apenas “operário”) da população sobre a produção e o consumo.

Evidentemente, é possível que sejamos derrotados e que a humanidade seja levada pelo capitalismo a uma catástrofe. Mas, no momento histórico atual, temos de levar adiante, com todas as nossas forças, este combate decisivo para evitar o desastre.

Tendo em conta a gravidade das ameaças implicadas na crise ecológica atual… por que elas têm sido tão escassamente tratadas no âmbito das organizações de esquerda?

Há várias explicações possível para a demora da tomada de consciência ecológica da esquerda:
1) O dogmatismo, a repetição do tradicional, a resistência a aceitar mudanças na teoria e na prática.
2) O economicismo, a redução da política a interesses corporativos imediatos: por exemplo “salvar o emprego”, isso sem questionar as consequências humanas, sociais ou ecológicas desses “empregos”.
3) A influência da ideologia burguesa do “progresso”, identificado com a expansão, o “crescimento” da economia, a produção de mais e mais mercadorias, e o consumismo.
4) O caráter futuro das ameaças ecológicas – colapso da civilização – em comparação com os problemas econômicos imediatos: a crise, o desemprego etc.

Notas:

[1]Nota sobre o Manifesto Ecosocialista: https://www.rebelion.org/hemeroteca/sociales/lowy090602.htm.
[2] Entrevista a Noam Chomsky: http://www.jornada.unam.mx/2015/09/12/cultura/a36n1cul.
[3] Notas complementares sobre esses temas nos siguintes links:
(1) http://www.eldesconcierto.cl/2017/03/15/manuel-casal-lodeiro-y-su-libro-sobre-la-izquierda-ante-el-colapso/
(2) http://www.eldesconcierto.cl/2017/02/24/entrevista-a-peter-wadhams-el-artico-esta-en-peligro/.
[4] Estudo cofinanciado pela NASA sobre um possível colapso capitalista iminente: https://www.theguardian.com/environment/earth-insight/2014/mar/14/nasa-civilisation-irreversible-collapse-study-scientists.
[5]Link:http://elpais.com/elpais/2015/06/19/ciencia/1434727661_836295.ht

*Licenciado em Arqueología, Historiador e Pesquisador de Doutorado no Instituto de Arqueologia da University College London (Reino Unido).

Tradução: Inês Castilho | Imagem: Marc Chagall

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