Por Fernanda Couzemenco, Século Diário
“Primeiro, o pó preto faz mal e isso não se discute mais, isso está resolvido. Faz mal e faz muito mal”, afirma, categoricamente, o médico alergista José Carlos Perini, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia, em entrevista ao jornal Século Diário.
“Quando um indivíduo pula de um prédio, até o primeiro andar ele está vivo. Até ali você não pode provar que pular de prédio é perigoso, mas quando ele bate no chão e morre, fica comprovado. Então nós estamos na mesma situação com relação ao pó preto”, metaforiza.
Com os últimos parâmetros da Organização Mundial da Saúde (OMS) em mãos, Perini demonstra a defasagem da legislação brasileira, cujos valores, estabelecidos em 1998, estão até sete vezes mais permissivos do que a orientação internacional.
E acrescenta que a própria OMS considera que aqueles índices que ela estabelece como normais, que são sete vezes menores do que aqueles praticados pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) no Brasil, ainda assim são passíveis de causar dano à população.
“Isso é uma verdade já até comprovada cientificamente”, informa, relatando um “estudo controlado” feito em Belo Horizonte, que tem áreas industriais com a nossa. No estudo, conta o médico, ficou comprovado que as pessoas que moram na área industrial têm uma prevalência de complicações, principalmente respiratórias, muito mais graves do que quem mora em outras regiões. “O número de crises por ano não muda de quem mora na área rural e de quem mora na área industrial. Só que a crise da criança que mora na área industrial é muito mais grave”, ressalta.
Tanto quanto o sistema respiratório, também o coração é gravemente afetado pelo pó preto. “Essa partícula é tão pequena que ela passa para a corrente sanguínea e ela forma como uma adjuvante na corrente sanguínea, agregando células e formando trombos, formando coágulos, que podem causar infartos. Tanto que há um aumento do infarto do miocárdio na região de Vitória que é acima da média de outras cidades brasileiras”, explica.
Incógnita
Sobre os efeitos que a exposição a longo prazo ao pó preto pode provocar na saúde da população, o médico explica que haverá uma população mais doente, porque as doenças pulmonares são cumulativas, provocam um remodelamento do pulmão e, com isso, um aumento das chamadas doenças pulmonares obstrutivas crônicas e um maior número de cardiopatias. “Se o pó preto vai trazer consequências para o futuro, vai! O quanto exatamente e quais ainda é uma incógnita”, afirma.
O motivo da falta de exatidão, apesar da abundância de casos para estudos, é que, aqui, o assunto não é devidamente estudado. E “não há nenhum lugar no mundo em que haja um complexo que gera 600 milhões de toneladas de manejo dentro de uma microcomunidade como a nossa! Não existe nenhum parâmetro no mundo”, insiste.
Novamente, a leniência dos órgãos públicos. No ano passado, por exemplo, lembra o especialista, o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) não mediu as emissões das indústrias no segundo semestre.
Apesar da justificativa oficial ter sido de ordem burocrática, que geraram atraso na contratação de uma nova empresa para fazer o serviço, o ex-presidente da Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia não titubeia em expor a causa mais provável: “Houve uma certa conivência”, afirma. Porque o período de agosto, setembro e outubro do ano passado foi extremamente seco, e, portanto, a poluição deve ter sido muito alta. Além disso, “a oitava usina de pelotização da Vale entrou em operação mais ou menos nessa fase e, nesse período de adaptação dos equipamentos, com certeza as emissões foram maiores”, desmascara.
Perini faz questão de dizer ter consciência de que a Vale e a ArcelorMittal não são as únicas geradas de poluição atmosférica, que na Grande Vitória é conhecida como pó preto. Aos inúmeros poluentes industriais gerados na Ponta de Tubarão – diversos em qualidade, tamanho e gravidade –, somam-se as emissões veiculares, da construção civil e mesmo as queimas de lixo e cigarros. Mas, “embora a gente tenha todas essas variáveis, que a gente não pode esquecê-las, você tem um modelo central, que é esse parque industrial dentro da área urbana!”, enfatiza.
A absoluta falta de visão de sustentabilidade dos governantes da década de 1960, que permitiram o enorme erro da invasão industrial na Ponta de Tubarão, somada ao comodismo dos empreendedores internacionais e à total falta de informação e capacidade de reivindicação da população resultou nesse monstruoso equívoco. O que fazer agora? Retirar as duas gigantes parece pouco provável, tamanho seu poderio econômico e político.
Enclausuramento
A silagem, o enclausuramento de todos os processos, parece ser o mais sensato, na opinião do médico, citando o que já acontece, por exemplo, com a unidade da ArcelorMittal em Luxemburgo e também com unidades nos Estados Unidos e Coreia. “Em Tóquio, no Japão, tem uma usina dentro da cidade. O pessoal da CST já esteve lá e diz que eles usam gansos brancos pra controlar as emissões. O ganso tem que estar branco o dia inteiro”, ilustra.
Para o médico, questões como quanto custa o enclausuramento dos processos em Tubarão ou qual o percentual do lucro bilionários dessas corporações multinacionais deverá ser aplicado para isso, não importam. O argumento da impossibilidade financeira, segundo o alergista, não pode mais ser aceito pela população. Perini cita uma reunião com moradores de Vitória em que os técnicos da Vale anunciaram, majestosos, que iriam investir um milhão de reais por mês com controle de poluição naquele ano. “Eu falei: rapaz, eu tô sensibilizado com duas coisas: você é o primeiro cidadão da Vale que admite que a Vale polui. Nunca vi ninguém da Vale dizer que polui. E o segundo é que eu fiquei tão tocado que eu vou contribuir com o mesmo valor, proporcional ao meu orçamento. Tá aqui: um centavo!”, e gargalha o médico, tentando suavizar o drama.
“É preciso cobrar sim”, encoraja o médico. “O que aconteceu foi que todos esses processos vieram pra cá, exportados do primeiro mundo, mas com padrões de terceiro. As indústrias são fabricadas lá fora e são colocadas aqui dentro sem a preocupação de como que isso vai impactar”, reclama. “Porque, nesses países, as indústrias são muito setorizadas, as pessoas não moram onde têm indústrias. Então o problema industrial não existe pra esses povos. Existe pra nós. Aqui é que mistura tudo. Afinal, aqui é o terceiro mundo, as exigências são outras”.
”O que é saúde pra você?”
E os empresários, seguem impunes em sua letargia, com a certeza de que nós, sulamericanos, africanos, asiáticos, devemos “dar graças a Deus porque recebemos uma indústria do primeiro mundo, vamos ter emprego. Isso é hipócrita!”, protesta. “Porque na realidade as pessoas não querem só isso. Elas querem viver!”, brada.
Um dos conceitos que se confunde muito, adverte o médico, é que saúde é ausência de doença. “Não é”, contesta. “Saúde é ausência de doença, mas também é bem-estar físico e emocional, bem-estar financeiro, habitação adequada, segurança, conforto físico e emocional”, lista.
“Portanto quando você chega na sua casa e encontra a sua casa suja, seu filho doente, a sua casa contaminada por poluição, isso tudo afeta a sua saúde mesmo que você não dê um espirro! É muito importante entender”, reafirma. “Quando alguém disser que pó preto não causa dano à saúde, você pergunte: o que que o senhor entende por saúde? É essa a pergunta”, sugere.