A austeridade, na prática, legitima a violência contra você

Em todo país em que as políticas de austeridade foram aplicadas, os efeitos práticos são claros: destruição de direitos e sucateamento/privatização dos serviços públicos tornando os mais pobres ainda mais vulneráveis.

Por Nilton Chagas, no Voyager

Sabe-se que não há nada mais atual – dentro de um contexto jurídico-político do Brasil – do que tratar sobre medidas austeras diante de uma crise financeira profunda e quais são suas implicações e previsões sociais; ora, e a intenção deste texto é justamente abordar de que forma a austeridade contribui para a ampliação das mais diversas formas de violência no campo do trabalho, seja de forma direta ou indireta, física ou psicológica. E, para isso, se faz necessário contextualizar sobre a austeridade em si e sua presença no campo de análise nacional.

Inicialmente, façamos uma breve definição do que vem a ser a austeridade: “É uma palavra-ação significando o processo de implementação de políticas (…) econômicas que conduzem à disciplina, ao rigor e à contenção econômica, social e cultural.” (FERREIRA, 2011) Observando de forma isolada tal conceituação, não é possível perceber grandes adversidades, já que dentro de um contexto de crise econômica é sumária alguma espécie de contenção/retração para reativação da “normalidade” econômica em um futuro contexto; contudo, o problema reside na aplicabilidade fática de tais políticas, direcionadas no contexto neoliberal à privação subjetiva e objetiva social das classes menos favorecidas em detrimento da proteção da integridade dos mercados financeiros. Ou seja, em meio a uma crise não ocasionada pela massa popular, quem deve pagar é a própria massa popular. A contenção de despesas com o Estado-social e a supressão de garantias subjetivas referidas ao trabalho corresponde a uma forma de naturalização e ampliação das desigualdades, onde obscenamente atuam poderes não-eleitos de financiamento pecuniário que buscam a legitimação de tais ações por meio do medo (FERREIRA, 2011). Uma imputação psicológica de naturalização dos valores morais do neoliberalismo extremado.

Passa-se a ideia de que não há alternativa senão a aplicação das políticas de austeridade sobre as garantias populares e a transferência da culpa de uma crise à sociedade, embutindo a concepção natural do ato de mercantilização das relações sociais e de trabalho. “Face à crise que a todos afeta torna-se necessário recorrer a medidas que violam os direitos fundamentais de alguns” (FERREIRA, 2011). Por trás de tudo isso e do próprio sistema político, é evidente a atuação de forças financeiras não-eleitas para a garantia de tais princípios austeros, nascendo assim uma influência suprapolítica que se estende aos campos judiciais, criando consigo dentro do mundo laboral (que é o interessante a se afetar dentro de políticas austeras) mecanismos de um direito do trabalho de exceção inclinado sobre os interesses mercadológicos e legitimando legalmente formas de exploração da força de trabalho, ao emergir um direito a serviço do capitalismo financeiro que elimina a proteção legal das relações verticais e desiguais entre empregador e empregado.

O mercado e as leis do trabalho

E a revelação dessa intervenção financeira direta nas políticas de Estado, trazendo para o campo analítico brasileiro, é obscena. Não se trata unicamente de uma espécie de flexibilização e adequação às novas formas conjunturais e estruturais do mercado (que, por si só, ferem preceitos da dignidade humana) mas sim de uma desregulamentação do próprio Direito do Trabalho enquanto instituição jurídica existente e necessária para a garantia de uma proporcionalidade jurídico-social entre partes e relações de trabalho.

A austeridade por parte do Estado e, por conseguinte, do mercado, recai diretamente sobre as garantias legislativas do trabalho que, no caso brasileiro, atenta sem pudores contra tais direitos fundamentais na regulação das relações empregatícias. Dentro da atual proposta de reforma trabalhista (Lei 6.787/2016) propõe-se algo que, dentro da nossa conjuntura, é mais do que indigno e violador: o negociado sobre legislado. Ora, pensando de forma simples, dar autonomia às partes, minorando intervenção e concedendo liberdade para transacionarem seus interesses, aparenta ser bem atrativo e produtivo para um mercado. Aos ingênuos (ou desonestos). Não se pode fingir que há paridade e horizontalidade entre empregador e empregado; essa orientação é evidentemente vertical e hierarquizada, principalmente em um país de terceiro mundo como o Brasil: “A legislação trabalhista se presta à proteção do trabalhador, que sendo parte hipossuficiente da relação contratual e detentor de um baixo nível de instrução, não possui representatividade para discutir seus direitos com o empregador.” (CUNICO; OLIVEIRA, 2011, p. 24)

Além de que, ou por esse motivo, a violação indigna da garantia protecionista por parte da Justiça do Trabalho se mostra como violadora da Constituição Federal, por haver um rendimento à valorização mercadológica de sua conotação e o esquecimento da valorização social sumária para a manutenção de uma relação humanística. Ora, o texto fundamental nos é bem claro quando reconhece a dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho e a justiça social. Ao instituir uma norma que retira, na prática, a proteção necessária do trabalhador, viola-se garantias da dignidade e igualdade humanas, não reconhecendo a função laborial enquanto função humana, mas mercantilista.

A busca pela minoração das garantias socio-laboriais, que dizem os defensores da desregulamentação serem excessivas, deve-se ao desequilíbrio entre as forças do capital e do trabalho, já que os direitos não interferem no custo total da produção de forma considerável (CUNICO; OLIVEIRA, 2011, p. 32). Ou seja, o verdadeiro problema empregatício encontra-se no sistema econômico, não nas condições de trabalho legalmente instituídas e protegidas de forma legítima: “A experiência de alguns países demonstrou que o custo da mão-de-obra pouco interfere no custo total da produção, e o nível de emprego tem uma relação muito mais próxima com as grandes variáveis macroeconômicas – taxa de juros, taxa de câmbio, investimento, poupança – do que com a rigidez ou fraqueza na legislação do trabalho.” (CUNICO; OLIVEIRA, 2011, p. 33).

A violação da dignidade enquanto preceito constitucional

Retomando a perspectiva normativa e principiológica, os doutores e especialistas em Direito Constitucional, Dayane Cunico e Lourival Oliveira, são categóricos ao afirmar a violação da norma fundamental ao desregulamentar garantias específicas da legislação: “A elevação do nível de vida do trabalhador está afiançada pelo artigo 7° da CF que apregoa (…) a melhoria da condição social do trabalhador e não a instituição de autorizações que visem baratear a mão-de-obra para atender crises econômicas”.

Não se pode de maneira alguma preferenciar direitos econômicos aos sociais e, principalmente, tornar da dedicação laboral uma composição característica de mercadoria; o trabalho e suas correlações envolventes é aspecto existencial do homem em sociedade e não pode ser diminuído a mera transação monetária. O artigo 7° da CF é bem claro em seus incisos acerca da proteção humanística do trabalhador, reiterando a dignidade da pessoa humana como princípio pétreo que deve estar presente em todo o corpo normativo. A austeridade e a preferencialidade ao aspecto econômico em relação ao social, ou seja, uma maior valorização do Capital em virtude do Ser, é uma violação à dignidade de forma explícita: “A busca pela mínima proteção daquele que vende sua força produtiva visa preservar a dignidade da pessoa humana trabalhadora; objetivando compensar a diferença socioeconômica existente no âmbito das relações capitalistas de trabalho.” E mais: “Não há como dissociar o trabalho como condição de existência do homem de premissas mínimas que lhe assegurem a dignidade.” (CUNICO; OLIVEIRA, 2011, p. 37).

Deve-se destituir a ideia de que o trabalho – enquanto pressuposto da atividade humana em sociedade e pilar de tal relação – é meramente produtor material; a função pétrea do trabalho é a sua produção de bens sociais. E é obsceno pensar em uma culpabilização do Direito do Trabalho como obstrutor do desenvolvimento econômico, sendo ele um garantidor da atenuação exploratória da força de trabalho humana e uma limitação da transformação do conceito de trabalho enquanto mera mercadoria. (CUNICO; OLIVEIRA, 2011, p. 38)

Conclusão

Tudo o que foi dito em defesa da proteção jurídico-política das garantias sociais frente às medidas de austeridade, mais precisamente sobre as garantias laborais, visam a mostrar a legitimidade legal, ética e principiológica dos direitos trabalhistas; ou melhor, demonstrar a ilegitimidade, ilegalidade e transposição ética de quem pretende violar por meio de políticas austeras e reformas anti-populares sem qualquer respaldo científico que as explique enquanto eficácia para a superação de crises (e sem diálogo). Como foi evidenciado no início do tópico, as forças não-eleitas trabalham para naturalizar tais reformas e apresentá-las como única alternativa possível; e, sendo sucinto, são formas de não diminuição do lucro em períodos de baixa movimentação monetária, transferindo o pagamento de crises à sociedade. E é nisso que reside a forma de violência psico-social das medidas de austeridade; são transposições materiais sobre a integridade humana, que perpassam os valores e princípios em detrimento dessa materialidade.

Quando se suprime as condições de vida de parte majoritária da população, atenta-se contra os maiores princípios que o Homem deve carregar consigo: igualdade, liberdade e dignidade. É violência ética, social, psicológica, direta e indireta às vitalidades humanas.

Referências

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076

Os limites de uma flexibilização do Direito do trabalho sob uma perspectiva constitucional – Dayane Cunico e Lourival oliveira; http://revistas.unipar.br/index.php/juridica/article/view/4128

A sociedade da austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção – Antônio Casimiro Ferreira; Revista de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra https://rccs.revues.org/4417

Desenvolvimento econômico e igual liberdade de trabalho no contexto dos direitos humanos – Marco Antônio Villatorre e Dinaura Gomes; http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/iuris/article/view/18652

Greve geral de 28 de abril de 2017, no Rio de Janeiro. Foto: Marcelo Valle (reprodução Facebook)

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