Governador veta projeto que “tortura” vítimas de estupro que buscam aborto, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

O governador do Distrito Federal Rodrigo Rollemberg (PSB) declarou, nesta terça (4), que vai vetar um projeto de lei aprovado pela Câmara Legislativa que prevê que imagens de fetos sejam mostradas a gestantes vítimas de estupro que desejam abortar.

O PL 1465/2013 foi alvo da ação ”Me Poupe”, através da qual organizações que atuam na defesa dos direitos das mulheres convocaram a população a pressionar o governador pelo veto. Diante da repercussão negativa, a própria autora do projeto, deputada Celina Leão (PPS) havia pedido que o governador o vetasse.

”O projeto da deputada distrital é uma barbárie, algo macabro para uma mulher que já foi vítima de um crime. Vetarei integralmente porque respeito os direitos das mulheres e sou solidário às suas lutas e ao combate a qualquer tipo de violência, inclusive aquela que vem em forma de proposta de lei”, afirma Rollemberg em nota enviada à imprensa através de sua assessoria.

A tentativa dos deputados distritais de formalizar técnicas de tortura de mulheres estupradas não é isolada. As bancadas fundamentalistas no Congresso Nacional, em Assembleias Estaduais e nas Câmaras Municipais têm atuado para passar projetos polêmicos que são apontadas por movimentos sociais como retrocessos à dignidade humana.

”A entrada de Marco Feliciano (PSC-SP) na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados marcou o início de uma ofensiva conservadora contra os direitos das mulheres, das populações LGBT, negra e indígena – ofensiva reforçada depois por Eduardo Cunha”, explica Joluzia Batista, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), uma das organizações à frente da campanha, e militante da Articulação de Mulheres Brasileiras.

Segundo ela, os debates nos parlamentos sobre leis que garantiriam o direito das mulheres a terem poder para decidir os rumos de seu corpo e sua vida foram sendo substituídas por aqueles que as destituem como sujeitos, reservando a elas apenas um papel dentro de um contexto familiar.

O projeto de Celina Leão é decorrência do enraizamento dessas pautas que tramitavam no Congresso Nacional a outros níveis da administração pública, segundo Joluzia. ”Esses projetos também cumprem uma pauta eleitoral, voltada ao eleitorado cristão fundamentalista. É uma prestação de serviços, uma formação de currículo eleitoral”, explica a assessora do Cfemea.

Vale lembrar que os protestos contra o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) ganharam as ruas, em outubro de 2015, não pelas mãos de ativistas anticorrupção (que ainda o abraçavam efusivamente em nome do impeachment), mas por meninas e mulheres marchando contra o projeto de lei 5069/2013, de sua autoria. O PL criminaliza a orientação sobre o aborto, com penas maiores se quem ajudar for agente de saúde.

O relator do projeto, Evandro Gussi (PV-SP), acrescentou barreiras para o aborto em caso de gravidez resultante de estupro. Se ele for aprovado, a vítima terá que registrar boletim de ocorrência e fazer exame de corpo de delito. Ou seja, sofrerá uma segunda violência, agora sob chancela do poder público. O PL está pronto para votação no plenário.

Um caso brasileiro a respeito desse tema ganhou repercussão internacional, em 2009, quando o então arcebispo de Olinda e Recife José Cardoso Sobrinho afirmou publicamente que os médicos envolvidos no aborto legal feito por uma menina de nove anos, 1,36 m e 33 quilos, grávida de gêmeos do padrasto que a estuprava desde os seis, incorriam em excomunhão.

O rapaz de 23 anos, que também violentava a outra enteada de 14 anos, foi preso ao tentar fugir. “A lei de Deus está acima de qualquer lei humana. Então, quando uma lei humana, quer dizer, uma lei promulgada pelos legisladores humanos, é contrária à lei de Deus, essa lei humana não tem nenhum valor”, disse o bispo na época.  “Os adultos, quem aprovou, quem realizou esse aborto, incorreu na excomunhão. A Igreja não costuma comunicar isso. Agora, a gente espera que essa pessoa, em momentos de reflexão, não espere a hora da morte para se arrepender”, disse. Isso influencia nas decisões dos envolvidos, inclusive de médicos e hospitais que se negam a realizar o procedimento, como já aconteceu diversas vezes, mesmo com decisão judicial.

”A sociedade brasileira precisa se questionar sobre a importância do que significa o Estado Laico”, lembra Joluzia Batista. Para ela, é necessário aprofundar a reflexão sobre a separação entre políticas públicas e crenças religiosas, pois os fundamentalistas não estão autorizados a legislar em nome do restante da população brasileira.

Militantes dos direitos das mulheres e organizações feministas repetem algo que deveria ser claro, mas parece não ser absorvido por parte da sociedade. Há uma diferença entre a defesa do direito ao aborto e do aborto em si. Não há alguém, em sã consciência, que goste do aborto. Ele é um ato traumático para o corpo e a cabeça da mulher, tomada após uma reflexão sobre uma gravidez indesejada ou de risco. Ninguém fica feliz ao fazê-lo, mas faz quando não vê outra saída.

Defender o direito ao aborto não é defender que toda gestação deva ser interrompida. E sim que as mulheres tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se fizerem essa opção. Porque o aborto, na maioria das vezes, vai ocorrer. Quer nós homens, políticos, religiosos, cidadãos comuns, concordemos ou não.

 

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