Reformas do governo Temer deixam claro o divórcio entre capitalismo e democracia

Por Gustavo Henrique Freire Barbosa , no Justificando

Em palestra sobre os 100 anos da Revolução Russa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Valter Pomar, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, narrou a reação de um colega estrangeiro diante das afirmações de que o governo Temer estaria destruindo o Estado de bem-estar brasileiro.

Para ele, não há sentido nas declarações de que o Estado Social que nós temos está sendo desconstruído diante do fato de que, se compararmos a rede de proteção social dos países do centro do capitalismo com a nossa, as conclusões serão de que jamais chegamos a ter uma.

Matheus Felipe de Castro e Orides Mezzaroba, no excelente História Ideológica e Econômica das Constituições Brasileiras (Arraes Editores, 2015), explicam como a Constituição Federal de 1988 surgiu com o objetivo de promover o acerto de contas do país com seu passado e assim dar novos rumos ao desenvolvimento e à reprodução da forma valor características do modo de produção capitalista, que passariam a ser racionalizados segundo os imperativos escolhidos pela comunidade política, ao invés das forças predatórias do mercado, azeitadas com a rapina colonial do lucro a curto prazo e alheias a qualquer projeto de desenvolvimento nacional em escala macro.

De uma maneira geral, as cartas constitucionais costumam ser qualificadas como o marco inicial de um novo Estado. Segundo os autores, esta perspectiva é parcialmente verdadeira na medida em que as constituições redefinem um Estado por meio da criação de parâmetros teóricos e práticos para a sua transformação. Assim, o Estado definido em uma Constituição é sempre uma meta ou um fim, não uma análise.

A Constituição de 1988, nascida após vinte anos de ditadura militar e num momento histórico de refluxo do nacional-desenvolvimentismo, sofreu forte influência da narrativa das democracias liberais e socialdemocratas, instituindo entre seus objetivos o incentivo à participação popular na formulação das políticas econômicas ao delinear a construção de uma nação política e economicamente soberana, tecnologicamente desenvolvida e socialmente justa através de um mercado interno capaz de ser propulsor do desenvolvimento nacional e da coesão do povo e das regiões brasileiras enquanto nação.

A Carta de 1988, assim, “não é uma carta liberal clássica, a despeito de ser burguesa”, tendo em vista que “constitui um Estado democrático de Direito, fundado na legalidade e detendo instrumentos de intervenção no domínio econômico que possibilitariam ao Estado continuar exercendo as tarefas de Capitalista Coletivo Ideal, para o qual foi idealizado desde 1930”.

A chamada Constituição Cidadã veio, portanto, para fazer frente aos automatismos econômicos sob os quais se amparou historicamente a economia brasileira, alinhada com a dinâmica da relação centro/periferia do capitalismo e caudatária do subdesenvolvimento, no qual nações de industrialização tardia como a nossa têm o papel de exportadoras de commodities, matérias-primas e bens de baixo valor agregado.

Tanto é que seu artigo 219 declara que o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a soberania tecnológica do País.

Tal enunciado demonstra a percepção do legislador constituinte acerca da necessidade de desenvolver o mercado interno, estruturá-lo e amoldá-lo à concretização destes valores éticos. Se a racionalidade do mercado se conjuga na lógica da maximização dos lucros/minimização dos custos, dando terreno à rapina predatória que ignora o papel fundamental dos mercados internos no desenvolvimento da nação e a empurra para a especialização produtiva primário-exportadora, a subordinação da economia a tais interesses políticos objetiva primordialmente confrontar o aprofundamento dos laços pós-coloniais de dominação, hoje sob a roupagem da globalização, dando ênfase à economia voltada ao atendimento dos interesses internos ao invés dos mercados externos caracterizados por uma dinâmica própria das relações entre colônia e metrópole.

Foi nessa esteira que a Constituição instituiu os potenciais de realização de um regime externo de afirmação da soberania política e econômica do Brasil perante a comunidade internacional, em especial dos países do centro do capitalismo (art. 1º, I), com independência nacional (art. 4º, I), autodeterminação dos povos (art. 4º, III), igualdade entre os Estados (art. 4º, V) e cooperação entre os povos para o progresso (art. 4º, IX), pressupondo a diminuição das assimetrias internacionais que ensejam a incompatibilidade de interesses entre as nações, industrializadas e as da periferia.

Trouxe ainda a previsão da realização de uma ordem política, social e econômica interna com efetiva participação popular e representatividade de interesses perante o poder do Estado (art. 1º, V e parágrafo único, além dos artigos 10, 14, 17 e 45), com desenvolvimento nacional (art. 3º, II) e proteção e incentivo dos mercados internos (art. 219), fundamentos para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) que tem como norte a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III e art. 170, VII) via o incentivo do desenvolvimento científico e tecnológico nacional (art. 218).

Com efeito, para que o Estado possa atingir estes objetivos e dar guarida a direitos tais quais os previstos no art. 6º, no Título VIII (“Da Ordem Social”) e no Capítulo III (“De educação, da cultura e do desporto”), é necessário que a alocação da riqueza produzida se dê em conformidade com os mencionados princípios, mecanismos e valores, o que é possível somente por intermédio da intervenção nos termos fixados pela própria Constituição. E esta intervenção significa exatamente preencher um espaço que, se deixado vazio, será (como já vem sendo) inevitavelmente ocupado pela “razão econômica” das forças do mercado oligopolista global, as mesmas que sufocam indústrias nacionais e minam a autossuficiência e a soberania de países nos quais não encontram nenhum obstáculo para imporem livremente seus desígnios nada republicanos.

De 1988 até os dias atuais, o grande desafio vem sendo o de conferir normatividade e eficácia social a disposições como as acima enumeradas, principalmente no que se refere à estruturação da rede de proteção social inspirada nas experiências da socialdemocracia europeia.

Ainda que bastante aquém das aspirações constitucionais, muito conseguiu ser feito, como a aprovação de marcos normativos como os do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), os estatutos da Cidade, do Idoso e da Igualdade Racial, etc. Tais marcos são importantes enquanto instrumentos que subsidiam e conferem, na via institucional,  legitimidade à luta pela implementação e concretização dos serviços e direitos neles previstos.

Mesmo o fato de virem sendo realizados de forma insuficiente, sua concretização, ainda que parcial, é fruto da constante vigilância e pressão da comunidade política, sem a qual dificilmente sairiam do papel bem como atingirão uma eficácia social minimamente correspondente às expectativas da sociedade.

Ao propor reformas como a trabalhista e a previdenciária, cortar substancialmente os recursos do ensino superior, pesquisa e tecnologia e aprovar a PEC 241/55, que impõe um teto de investimentos nas áreas sociais para as próximas duas décadas, o governo Temer suspendeu a aplicação do art. 6º da Constituição e de todos os demais dispositivos constitucionais e infraconstitucionais consectários à construção de um Estado Social, ao passo que a dívida pública permanece drenando quase metade do orçamento geral da União ainda que a Constituição Federal traga, no artigo 26 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, a previsão da realização de uma auditoria que certamente diminuiria drasticamente estes valores, conforme se viu na experiência equatoriana.

Seguindo declaradamente a agenda do mercado, as profundas modificações que o governo Temer vêm promovendo no pacto de 1988 mostram como eram legítimas as expectativas do legislador constituinte do que poderia acontecer caso os rumos da economia nacional fossem pautados pela selva onde os credores internacionais estão no topo da cadeia alimentar.

Embora a apologia vulgar liberal procure incutir o pensamento raso de que democracia se limita ao exercício do voto, uma verdadeira democracia, entretanto, compreende o respeito aos direitos, ritos, diretrizes e programas constitucionais previamente estabelecidos, além de ser aquela em que o povo dispõe de condições de participar de maneira significativa na condução de assuntos que lhe são do interesse.

Castro e Mezzaroba concluem que a realização histórica do avançado programa representado pela Constituição de 1988 coloca um desafio para a sociedade brasileira: realizar os direitos nela previstos para que se torne obsoleta e assim coloque a necessidade mesma de sua superação, ou não realizá-los, dela se desviando para caminhos diversos dos que foram democraticamente escolhidos pela comunidade política, amargando a derrota e o retrocesso nas conquistas obtidas de forma democrática.

É certo que a sociedade não escolheu a segunda alternativa, a mesma que o governo vem executando não apenas como se não houvesse amanhã, mas como se este mesmo amanhã devesse ser soterrado sob os melancólicos escombros de nossa Constituição e de nossa democracia.

Gustavo Henrique Freire Barbosa é professor e advogado. 

Foto: Promulgação da Constituição em 1988. Fonte: internet

 

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