Por Pablo Uchoa*, especial para o blog do Sakamoto
Veio do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU a crítica mais tarimbada até o momento ao governo de Nicolás Maduro na Venezuela.
“Indícios de uso sistemático e abrangente de força desproporcional e às vezes fatal” contra manifestantes; “prisões arbitrárias” de pessoas que participam dos protestos antigoverno; diversos relatos de tortura e até de violência sexual contra pessoas que fazem oposição ao líder venezuelano.
As críticas estão no relatório divulgado, nesta terça (8), pela organização, a partir de investigações feitas por pesquisadores em campo. O documento põe 46 mortes diretamente na conta das forças de segurança e outras 27 na conta de grupos armados a favor do governo.
Acusações assim deveriam preocupar a todos e merecer uma investigação oficial decente. Porém, com exceção de declarações esparsas de Maduro, prometendo investigar alguns incidentes, até agora o governo tem feito pouco para esclarecer os fatos.
Enquanto a situação política, social e econômica venezuelana se deteriora, espectadores no resto do mundo parecem continuar divididos entre os pró e anti-Maduro, seguindo as linhas estabelecidas de duas narrativas que procuram rejeitar uma a outra.
O tema merece uma reflexão mais profunda e honesta. Tenho viajado frequentemente à Venezuela desde 2000, acompanhando o chavismo desde o seu nascimento e a evolução da oposição ao longo desses anos.
Pude constatar que, em um país que atravessou dois golpes fracassados e um número desconhecido de tentativas frustradas só no último quarto de século, a quebra institucional nunca esteve muito distante.
Agora, porém, há fatores que estão empurrando rapidamente o país para o abismo. Entre eles, a banalização do radicalismo político e uma aparente disposição dos Estados Unidos de influenciar mais abertamente os eventos no vizinho sul-americano.
O primeiro fator explica como chegamos aonde chegamos e às vezes ainda me deixa perplexo.
Houve um tempo, ali por meados da década passada, em que o discurso radical parecia estar se diluindo. Fonte de radicalismo, a ala extrema da oposição definhava após promover um fracassado um golpe em 2002 e um locaute patronal em 2003.
Anos depois, a oposição ganhava até um semblante de moderação nas declarações públicas de Henrique Capriles Radonski.
Caro leitor, peço que faça aqui uma pausa para reflexão. Um indivíduo que hibernasse naquela época e acordasse agora se surpreenderia com a dramática mudança na situação de instabilidade política e social do país.
Hoje, os radicais substituíram os moderados; perdeu-se a vergonha de advogar-se abertamente pelas causas mais extremas. Líderes da oposição radical que parecia fadada ao esquecimento voltaram a formar o eixo central do discurso opositor.
Entre esses estão Antonio Ledezma, Leopoldo López, Maria Corina Machado e Ramos Allup. Sua única proposta nesses últimos 20 anos tem sido exigir a saída do presidente, sem um plano para atender à camada mais pobre que genuinamente se beneficiou das políticas chavistas.
O que explica essa mudança dramática? Muitos fatores.
Os permanentes ataques de uma elite que nunca aceitou o chavismo, sim. Mas também uma série de ineficiências por parte do governo, a percepção popular de que o comando chavista se transformou ele mesmo em uma elite, a deterioração econômica e as dificuldades do chavismo de sobreviver sem o seu fundador.
Esse último ponto não é apenas uma conclusão lógica a partir da morte de Chávez, mas um fato determinante porque, sem ele, Maduro precisa desenhar um sistema que lhe garanta a permanência no poder sem precisar se equivaler a seu mentor.
E o faz sem sutilezas. Quando a oposição conquistou a Assembleia Nacional, em 2015, com a proposta única de conclamar um referendo para revogar o mandato de Maduro, a resposta do governo foi manobrar para evitar o referendo e inabilitar, na prática, o Poder Legislativo do país.
Teria Chávez feito o mesmo, ou aceitado se medir com a oposição nas urnas? Ou antes: se Chávez estivesse vivo, teria a oposição vencido as eleições de 2015 em primeiro lugar? Impossível responder a essas especulações.
Ao avanço da oposição, o governo alegou a necessidade de uma Assembleia Constituinte que, convocada inteiramente sob as asas do governo, recebeu carta branca para reescrever o país à sua maneira.
Os relatos arrepiantes de violência, intimidação e outras coisas escabrosas são uma escalada preocupante da lógica do conflito venezuelano.
Os anos recentes foram uma sucessão de batalhas em que a oposição falou com inflexibilidade e Maduro respondeu com autoritarismo. Usar as forças do Estado para cometer abusos, porém, criam uma nova dimensão para a crise venezuelana.
Sem que se volte a um mínimo de regras acordadas por ambos os lados, é difícil ver a saída. Deixada à sua própria sorte, a solução para a Venezuela pode vir de forma caótica e inconstitucional.
De dentro: É cedo para avaliar se o incidente na base militar de Valencia, no fim de semana (em que o governo venezuelano afirma ter contido um motim), reflete um maior descontentamento entre as camadas mais baixas ou se o incidente foi isolado – ou mesmo plantado.
De fora: O governo Donald Trump deu na semana passada a declaração mais clara até então de que poderá influir na situação hemisférica.
Palavras do secretário norte-americano de Estado, Rex Tillerson: “Estamos avaliando todas as nossas opção de políticas que podemos adotar para criar uma mudança de condições, na qual ou Maduro decide que não tem futuro, e decide sair por conta própria, ou podemos retornar os processos governamentais de volta à sua Constituição”.
“É uma discussão de políticas que está atualmente em desenvolvimento através de um processo [de coordenação] entre as agências [de governo] esta semana.”
Abstenho-me de tentar interpretar as palavras do secretário norte-americano. Algo me diz que se ações vierem, não serão na forma de diálogo – nem moderação.
*Mestre em Política Latino-Americana pela Universidade de Londres, autor do livro Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez e jornalista da BBC em Londres.
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Manifestantes e forças policiais na Venezuela. Foto: EPA/Miguel Gutierrez