Roberto Tardelli* – Justificando
Estava tudo pronto em minha cabeça. Seria um texto sem maiores dificuldades e agradando gregos e baianos: o distritão. O maldito distritão, que não deu certo onde foi implantado, mas que traz em seu baú delícias eleitorais que fazem aleluias a todos os que se elegeram, seja no Caixa 1, Caixa 2, etc. Estava pronto, ia começar a escrever, quando uma foto trazida nas redes sociais me paralisou.
Crianças com menos de dez anos eram submetidas a busca pessoal por soldados do Exército Brasileiro, força de ocupação territorial nos bairros pretos cariocas. Uma cena comum, matinal, crianças ingenuamente se deixando revistar por soldados adultos, que as tinham e as tomaram como inimigas, um desses absurdos existenciais completos, uma dessas cenas que sequer o mais crítico dos cineastas imaginaria. A vida imitou a arte no que possuía de mais perverso.
Pouco adiante, nas mesmas redes sociais, leio que a foto pode não ser verdadeira, uma vez que seria uma cópia de uma outra, publicada no jornal O Globo de anos atrás. É dizer, a cena existiu, mas teria sido no passado. Nessa última incursão estatal, nesta semana que passa, nada menos que vinte e sete mil crianças foram impedidas de ir à escola, porque a força de ocupação fez um arraso. Só por isso, crianças não foram revistadas, mão na cabeça, abre a perna, olha pra baixo, não encara, moleque, estuda onde, mostra o caderno da aula de hoje, safado, cala a boca, me respeita. Na reportagem daqueles dias, um garoto disse preferir ser revistado pelo exército, porque a polícia dava croques na cabeça deles. O fim da civilização.
A Constituição Federal, essa uma que vai, de pouco em pouco, inexistindo, tem na educação um momento de glória e utopia:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Foi glorioso dizer que a educação se tornou direito de todos e dever do Estado. Seria o início de uma jornada em busca do conhecimento, das letras, do raciocínio abstrato, da possibilidade de ter em cada criança brasileira o sonho da construção da cidadania, o sonho do projeto de felicidade, a dignidade do trabalho, que promovesse a dignidade de homens e mulheres, o sonho do fim das diferenças.
Na Guerra Contra As Drogas, porém, tudo parece estar na linha de tiro do Estado, que, se antes matava pretos periféricos, passou também a matar seus próprios soldados, sim, muitos deles tão pretos quanto os pretos que sempre matou.
O que era um massacre fácil e impiedoso, começou a ganhar ares de resistência, que se iniciou por responsabilidade única de burocratas estúpidos que tentaram resolver a criminalidade, oriunda de uma desigualdade econômica insuperável nos padrões mundiais de concentração de riqueza, à bala, a tiros, com caveirões e tropas de elite de ocupação e matança.
Como nas cidades conflagradas pelas guerras convencionais ou não, fecharam-se as escolas, porque as crianças estavam morrendo de balas disparadas pela fúria e pela ignorância. Para que crianças não fossem mortas pelos tiros dos fuzis, suspenderam-se as aulas, em um claro recado: não há mais limites à Guerra e até mesmo as crianças nas escolas dos morros cariocas serão tratadas como se estivessem no front da batalha. A escola passou a ser um local de risco de perder-se a vida.
As crianças que foram apartadas das escolas porque se tornaram praças de massacre e de guerra. Além disso, as crianças estarão para sempre marcadas e sabem, desde muito cedo, que são indesejadas e que podem ser mortas no pátio ou na sala de aula.
O maldito burocrata que traçou essa operação, certamente, não pensou que tornando as escolas um lugar de morte, ele mata a educação; quando ele atira às cegas, ele iguala crianças aos traficantes que pretende matar ou, não sendo possível, prender.
Essa é uma guerra suja. Esse sangue que corre nas favelas cariocas é sangue preto, pobre, sub-remunerado. O terror, o medo, o pânico, o sentimento de se viver sob pressão de forças terríveis, só atinge as comunidades pretas, pobres e sub-remuneradas.
O resultado dessa operação de terror estatal deve ter sido grandioso, pouco importando que quase nada se tenha apreendido; valeu mostrar que, a partir de agora, nem as crianças do morro estão protegidas. A criança de hoje será o traficante inimigo de amanhã. É a lógica do terror.
O Leblon continua lindo e cada vez mais branco
Não tenho dúvidas de que milhares de tipificações de improbidade se ergueriam contra quem fechou as escolas, em virtude de um ataque, pedagogicamente demonstrando aos meninos e meninas que, sim, se forem à escola, serão mortos. Tenho certeza que o Ministério Público carioca nada fará, porque sucumbiu, suicidou-se diante das missões nada militares que lhe trazia o moço-velho art. 127, da Constituição Federal.
Em São Paulo, crianças são marcadas nas escolas, proibidas de repetir um prato, um pão, uma fruta. Crianças de periferia são apartadas feito bichos que já comeram. Crianças de periferia têm direito a uma laranja, uma banana, não a duas. Crianças na periferia de São Paulo são tocadas da fila da merenda, se já comeram aquela pasta informe que lhes foi servida. O burocrata, mauricinho, prefeito de papel e marketing, disse que combateria a obesidade infantil, como uma justificativa cínica e debochada de cortar a verba da comida nas escolas da periferia. Os filhos brancos gordinhos de nuggets teriam suas mamães gratas, já antenadas nos males do glúten e da lactose.
Nossas crianças pretas e pobres, que vivem na periferia já abandonada e sem inclusão cultural alguma, vão aprender que a escola é lugar de fome e de humilhações, vão aprender que a comida, até a comida, lhes é pouca, como pouca é a casa e como pouquíssimas serão as suas oportunidades na vida. Sairão da escola e irão para casa com fome, algo de uma crueldade que nunca imaginaríamos. Mas a escola, essa uma, deixou de ser até o local onde ela, a criança, poderia comer duas bananas.
Os neoliberais de merda vão dizer que, sim, é correto, porque alguém precisa pagar essa conta, uma vez que não existe almoço de graça. Que conta? A conta de comida para crianças que moram na periferia, responderão. A das crianças que morrem de tiros, essa conta, bem, essa conta é paga sem reclamações.
O que está acontecendo conosco?
*Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.
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Foto: Apu Gomes/AFP.