A chaga da miséria volta a rondar o Brasil. Hoje, a situação brasileira é dramática. Entrevista especial com Nathalie Beghin

Patricia Fachin – IHU On-Line

Depois de dois anos de recessão, aumento do desemprego e queda real dos salários, “a chaga da miséria se torna novamente uma questão no nosso país”, diz a economista Nathalie Beghin à IHU On-Line. Segundo ela, em 2015 “9,2% de famílias tinham o rendimento per capita inferior a um quarto de salário mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano”. Ela informa ainda que a redução no salário real dos brasileiros “foi da ordem de 3,7% em 2015, e a situação só vem se agravando de lá para cá”. A tendência, afirma, é que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema aumente “entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a economista também comenta o compromisso do Brasil com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS em relação à erradicação da pobreza, segurança alimentar, e outras temáticas, e afirma que no “âmbito federal” “tudo tem sido feito para descumprir os ODS”. Como exemplo, ela menciona a emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos. A medida, diz, “irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros”. Os cortes orçamentários, afirma, afetarão “proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis”.

Nathalie Beghin é economista formada pela Université Libre de Bruxelles – ULB, mestra e doutora em Políticas Sociais pela Universidade de Brasília – UnB. Atuou como assessora do presidente do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição – Inan e foi pesquisadora do Programa de Estudos da Fome, do Núcleo de Estudos em Saúde Pública – Nesp, da UnB, e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea nas áreas de combate à fome e à pobreza, alimentação e nutrição, segurança alimentar e nutricional, desigualdade racial e ação social das empresas. Atualmente é pesquisadora do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais – GR-RI.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que medidas o Brasil tem desenvolvido desde que assinou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS?

Nathalie Beghin – Em setembro de 2015, foram concluídas as negociações que culminaram na adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS [1] , por ocasião da Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em Nova York. O processo foi iniciado em 2013, seguindo mandato emanado da Conferência Rio+20: neste marco, os ODS deverão orientar as políticas nacionais e as atividades de cooperação internacional até 2030, sucedendo e atualizando os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM.

Chegou-se a um acordo que contempla 17 Objetivos e 169 metas, envolvendo temáticas diversas, como erradicação da pobreza, segurança alimentar e agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero, redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, mudança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres, crescimento econômico inclusivo, infraestrutura e industrialização, governança, e meios de implementação.

Brasil vinha tendo papel de destaque na construção dos ODS: sediou a primeiraConferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), bem como a Conferência Rio+20, em 2012. Ademais, apresentou resultados em geral satisfatórios no cumprimento dos ODM [2] . Neste contexto, almejava-se que assumiria liderança na promoção da Agenda 2030. No entanto, não é o que está acontecendo. A despeito de algumas medidas formais e pontuais, como a criação, em outubro de 2016, de uma Comissão Nacional para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [3] — que ainda não se reuniu — e de associação entre o Plano Plurianual (PPA 2015-2018) e os ODS — trabalho inconcluso —, até agora nada de substantivo foi feito. Ao contrário, tudo tem sido feito para descumprir os ODS, pelo menos em âmbito federal.

Inesc vem mostrando, por meio de uma série de notas e textos [4] , que todas as medidas implementadas nos últimos meses pelo poder público irão resultar, única e exclusivamente, na violação de direitos dos que menos têm e, consequentemente, no não cumprimento dos ODS. A emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros; os cortes orçamentários que afetam proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis; a reforma trabalhista que irá resultar na precarização das relações de trabalho e na diminuição da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras; a reforma da Previdência que penalizará a base da pirâmide e, especialmente, mulheres e negros.

Especialistas, dentre os quais Luciana Jaccoud, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, mostram que a reforma da Previdência irá excluir da aposentadoria 44% das mulheres urbanas ocupadas, além de aumentar as desigualdades entre homens e mulheres e de elevar a desproteção no campo. Estima-se a exclusão de 60% a 80% dos que se aposentariam [5] .

As medidas de flexibilização das leis ambientais que impactarão os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais; a reforma ministerial que ceifou a institucionalidade voltada para os excluídos (dos agricultores familiares com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; das mulheres com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres; dos negros com a extinção da Secretaria de Igualdade Racial; e dos povos indígenas com o esvaziamento da Funai); e o aumento de impostos indiretos (PIS e Cofins nos combustíveis) que agrava a regressividade da carga tributária fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais, são alguns exemplos dos retrocessos que inviabilizam o cumprimento dos ODS.

À extorsão dos mais vulneráveis somam-se as benesses concedidas aos mais ricos: juros elevados para os rentistas, o direito de invadir terras indígenas e florestas para expansão do agronegócio e das mineradoras; o perdão de dívidas de grandes empresas; a privatização de serviços públicos que abre novos mercados para o setor privado; e a implementação de parcerias público-privadas que transformam a infraestrutura, em todos os níveis federativos, na nova fronteira de acumulação e lucratividade para investidores nacionais e estrangeiros. Enfim, eliminam-se os obstáculos (institucionais, sociais, ambientais, culturais e trabalhistas) que possam postergar ou afetar a rentabilidade esperada pelo setor empresarial.

Vê-se, pois, de maneira irônica e trágica, que o governo brasileiro está inaugurando uma nova agenda, a agenda dos “Objetivos das Desigualdades Sustentáveis”… Trata-se de aumentar a pobreza, promover a insegurança alimentar e nutricional, piorar as condições de saúde e de educação, agravar a discriminação contra as mulheres, piorar as condições de acesso à água e saneamento, desproteger os trabalhadores por meio do trabalho indecente, enfraquecer a indústria nacional, aumentar as desigualdades, tornar as cidades insustentáveis, promover padrões de produção e consumo predadores, aumentar o aquecimento global, destruir o meio ambiente, aumentar a violência e tudo isso graças a parcerias com o setor privado e meios de implementação que reduzem despesas públicas!

IHU On-Line – Quais são as evidências que mostram que o Brasil está retrocedendo em relação à erradicação da fome?

Nathalie Beghin – Organizações, nacionais e internacionais, públicas e da sociedade civil, vêm revelando que a pobreza e a fome estão recrudescendo no Brasil. Essas informações nos entristecem, e muito, pois o nosso país já foi referência internacional na eliminação da fome. Tal feito foi atestado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, em 2014.

Segundo o IBGE, 9,2% de famílias tinham em 2015 o rendimento per capita inferior a um quarto de salário mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano [6] . Como a redução da pobreza no Brasil nos últimos anos esteve fortemente atrelada à melhora real dos rendimentos, e que estes vêm caindo desde 2014 [7] , a chaga da miséria se torna novamente uma questão no nosso país. O Banco Mundial diz a mesma coisa. Em estudo publicado recentemente, o Banco calcula que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema deverá aumentar entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017 [8] .

Organizações da sociedade civil vêm produzindo dados na mesma direção. A Fundação Abrinq lançou relatório que evidencia que cerca de 6 milhões de crianças vivem atualmente na pobreza extrema [9] , o que equivale a toda a população da cidade do Rio de Janeiro! Já a Oxfam Brasil nos informa que apenas seis homens brancos detêm renda equivalente à metade mais pobre da população brasileira, isto é, a de 100 milhões de pessoas [10] !

IHU On-Line – Quais diria que são os principais fatores que têm contribuído para o agravamento desse cenário? Recentemente algumas organizações divulgaram um relatório chamando atenção para a possibilidade de o Brasil retornar ao Mapa da Fome. Quais são os riscos, na sua avaliação?

Nathalie Beghin – A crise econômica que se abateu sobre o país sem dúvida não ajuda. Foram dois anos de recessão, da ordem de 4% ao ano, acompanhados do aumento do desemprego e da queda real dos salários. Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT, o trabalhador brasileiro sofreu em 2015 a maior queda de salários em termos reais entre os países do G20 e entre os países das Américas [11] . Ainda de acordo com a OIT, a redução no salário real dos brasileiros foi da ordem de 3,7% em 2015, e a situação só vem se agravando de lá para cá [12] .

Somam-se a essa situação já dramática as medidas de austeridade implementadas pelo governo Temer com o aval do Congresso Nacional. Tais medidas, listadas anteriormente, não somente agravam a crise, pois contribuem para desinvestimentos na economia e para retração do consumo, como tornam a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras cada dia mais vulneráveis. O encolhimento do nosso Estado de bem-estar social, associado a uma população que cresce, irá resultar em anomia social. O descrédito crescente em um sistema político que beneficia poucos, o aumento da violência, da pobreza, da fome e a piora das condições de vida de grande parte da população podem nos levar a uma situação extrema, na qual pode-se acabar elegendo para presidente da República um fascista ou um aventureiro. A situação na qual está mergulhada o Brasil hoje é extremamente dramática.

IHU On-Line – Nos últimos anos o Brasil se orgulhava de ter reduzido os índices de miséria e pobreza, e chegou a ser visto como um exemplo de êxito na aplicação de políticas públicas de combate à fome e de segurança alimentar e nutricional. Hoje, menos de uma década depois, a preocupação em relação à fome e à insegurança alimentar volta a rondar o país. Que balanço a senhora faz em relação a essas questões, considerando as políticas que foram tomadas na direção de erradicar a miséria, a pobreza e a fome, e a situação que o país vive hoje? Quais foram os erros e acertos ao lidar com essas questões?

Nathalie Beghin – É verdade que, de uma maneira geral, o Brasil tinha posto em marcha uma série de medidas que resultaram na diminuição da fome, da pobreza extrema e da insegurança alimentar e nutricional. Foi um conjunto abrangente e articulado de ações que funcionou virtuosamente, podendo-se destacar o aumento real do salário mínimo; o crescimento da formalização do mercado de trabalho; a maior disponibilidade de crédito subsidiado; o aumento de programas de transferência de renda, como o Benefício de Prestação Continuada – BPC e o Programa Bolsa Família; a expansão da cobertura e o aumento do valor dos benefícios da previdência privada; e as políticas de cotas — sociais e raciais — no ensino superior, fator importante para a mobilidade social, entre outras medidas. Como mencionado anteriormente, tudo isso resultou em 2014 no anúncio pelas Nações Unidas de que o Brasil tinha saído do Mapa da Fome global.

Contudo, apesar desses indiscutíveis avanços, ainda tínhamos e temos muitas chagas. A desnutrição e a fome atingem expressivos contingentes dos povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais. Por exemplo, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, mais da metade (55,6%) dos adultos quilombolas estão em situação de insegurança alimentar no Brasil, e o percentual fica em 41,1% incluídos as crianças e os adolescentes [13] . Em relação aos povos indígenas, os dados mais recentes, resultantes do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, realizado pela ENSP/Fiocruz em 2009 [14] , revelam que a desnutrição é um dos principais problemas de saúde pública das crianças indígenas menores de cinco anos: cerca de um em cada três sofre de desnutrição. São números que envergonham o Brasil.

Além disso, se por um lado estávamos melhorando os indicadores de fome, por outro nos descuidamos e deixamos crescer, de maneira assustadora, outras formas de insegurança alimentar e nutricional que são extremamente perversas: o sobrepeso e a obesidade. No Brasil dos dias de hoje, mais da metade da população tem sobrepeso e 20% é obesa [15] . Estamos entre os países mais obesos do mundo, atrás de Estados UnidosMéxicoChinaÍndia e Rússia. São males que afligem todos e todas, mas também os mais pobres. Essas manifestações de uma alimentação inadequada estão na origem de doenças como diabetes, alguns cânceres e problemas do coração que matam milhares de pessoas por ano.

sobrepeso e a obesidade são decorrentes de modelos de produção e consumo de alimentos insustentáveis, baseados na agricultura patronal, no consumo de alimentos ultraprocessados, no empobrecimento da dieta, pois a população que acaba se alimentando de calorias baratas e nocivas (açúcares e gordura, especialmente), no sedentarismo decorrente de longas jornadas de trabalho que incluem horas no trânsito, e na expulsão de camponeses, indígenas e povos e comunidades tradicionais de suas terras, entre outras causas.

O desafio agora é combater, ao mesmo tempo, a falta de alimentos, a fome e o excesso de alimentos de má qualidade, o sobrepeso e a obesidade.

IHU On-Line – O que seria uma política adequada para enfrentar a pobreza e garantir uma melhor distribuição de renda no país?

Nathalie Beghin – É uma pergunta complexa que não possui resposta simples, pois na realidade trata-se de um projeto de país, de nação. Podemos aqui alinhavar alguns grandes eixos, sem os quais avaliamos que não haverá mudanças substantivas. É preciso reformar o sistema político [16], para que o povo brasileiro, na sua diversidade, de classe, raça/etnia, gênero, orientação sexual, região e cultura se sinta efetivamente representado, o que não é o caso hoje com um Congresso majoritariamente integrado por homens brancos e ricos que defendem interesses específicos, como os do agronegócio, da mineração, da saúde privada e de fundamentalistas religiosos, entre outros.

Este novo Congresso, mais representativo e diverso, junto com um Executivo também mais representativo e diverso, deveriam aprovar uma reforma tributária que fosse justa e progressiva, bem diferente do modelo tributário que está aí, privilegiando os muito ricos e penalizando os mais pobres. Deveria, ainda, expandir o Estado de bem-estar social, com redistribuição e reconhecimento das diferentes identidades, de modo a assegurar a realização progressiva dos direitos humanos consagrados na nossa Constituição. Concomitantemente seria implementada uma reforma agrária que desconcentrasse a propriedade da terra e dos territórios. Urge formatar um modelo de produção e consumo que não somente empregue decentemente como proteja a natureza e enfrente as causas e consequências do aquecimento global. Os sistemas de Justiça (Judiciário, Ministério Público, Procuradorias) e de comunicação também precisam ser democratizados, abertos ao público e responsáveis.

Bons projetos e boas ideias não faltam. Existem diversas iniciativas na sociedade com propostas alvissareiras (Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo, Vamos e Projeto Brasil, para citar algumas). O que não temos no momento é força suficiente para alterar as relações de poder que aí estão.

Por isso, é preciso, mais do que nunca, resistir e lutar para impedir tamanhos retrocessos, porque a grande maioria da população brasileira só tem a perder com esse arranjo político em exercício. Nós, ONG, movimentos sociais e ativistas do campo democrático e popular, temos a obrigação legal e moral de denunciar diuturnamente as violações de direitos humanos que estão sendo perpetuadas por esse governo temerário. Temos um longo caminho pela frente, mas a causa é justa e é isso que mantém nossa chama viva!

Notas:

[1] Para maiores informações sobre os ODS, acessar aqui. (Nota da entrevistada)

[2] A esse respeito, acessar aqui. (Nota da entrevistada)

[3] Para maiores informações sobre a Comissão, acessar aqui. (Nota da entrevistada)

[4] Para acessar as informações, ver especialmente os anos de 2016 e 2017. (Nota da entrevistada)

[5] Para acessar as informações, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[6] A esse respeito, acessar aqui, p. 38. (Nota da entrevistada)

[7] Ibge, ibid, p. 92. (Nota da entrevistada)

[8] Ver mais informações aqui. (Nota da entrevistada)

[9] Para acessar as informações, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[10] Ver: https://actions.oxfam.org/brasil/pt/actions/davos2017/ (Nota da entrevistada)

[11] Para maiores informações, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[12] Ver site do DIEESE. (Nota da entrevistada)

[13] A esse respeito, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[14] A esse respeito, ver o Relatório Final, Análise dos Dados, pp. 240-241. (Nota da entrevistada)

[15] A esse respeito, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[16] A esse respeito, ver artigo do Inesc. (Nota da entrevistada)

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