Apontar o racismo, indicar o racismo e dar nome aos atos: confrontemos!

Por Kauan Almeida*, no Justificando

Quando encaramos o problema racial que atravessa nossas relações, no Brasil, de uma forma sincera e honesta, percebemos que o racismo tece uma trama que estrutura historicamente um modelo de Estado que confere permissibilidade a mortes física e simbólica de sujeitos minorizados.

É neste sentido, como coloca Carlos Moore, que o racismo se constitui como uma consciência/estrutura que executa “funções multiformes, totalmente benéficas para o grupo, que, por meio dela, constrói e mantém um poder hegemônico em relação ao restante da sociedade”.

É sempre importante frisar que a partir da instrumentalização do racismo, uma série de tecnologias/mecanismos são criadas e reificadas para subalternizar a população negra brasileira. Assim como são montados um arsenal de ideários que, institucionalizados, organizam nossas relações a partir de táticas silenciosas (ou não) de exclusão e segregação.

Neste sentido, Sueli Carneiro, apropria-se do conceito de dispositivo, cunhado por Foucault, para analisar o tema racial em sua tese “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”, elaborando assim, o conceito de dispositivo de racialidade.

A grosso modo, tal dispositivo em conjunto ao biopoder age por meio de tecnologias de poder, a saber: o epistemicídio, questionando, portanto, o “lugar da educação na reprodução de poderes, saberes e subjetividades” produzidos pelo dispositivo de racialidade.

No entanto, temos uma mídia a exaltar com fervor o clima de democracia racial em que vivemos. Este discurso de democracia racial é tão entusiasmadamente repetido que, mesmo em frente a inúmeras produções e testemunhos de quão falso é, uma grande parte dos brasileiros o exalta num clima de cegueira racial.

E é esta cegueira racial que nega as diferenças humanas, o que fortalece a estratégia de silenciamento, afinal “somos todos humanos”.

Cegar-se racialmente é ser condescendente às hierarquias construídas a partir das diferenças, pois além de “não ver raça” também não enxerga a história do país, porém, sobretudo, há, nas palavras de Glass e Sales, “um medo branco, do qual ‘perceber a raça’ é sinal de ‘ser racista’. Portanto, os brancos fingem que ‘não percebem’ a raça para demonstrar sua bondade e escapar do problema”, negando, desta forma, os aspectos individuais de cada pessoa.

Não é preciso ir longe para enxergar as diferenças no tratamento de brancos e não-brancos neste país tropical construído por pessoas não-brancas, basta observar qualquer estatística ou assistir meia-hora de um desses tantos jornais sensacionalistas para notarmos que o corpo negro ainda é exposto às mais terríveis mazelas, do nascimento à morte, visto que:

A supremacia branca não é somente simbólica, mas concretiza-se em séculos de dominação violenta.

E é esta colonização que organiza e dispõe o complexo dispositivo racial que é estruturador de nossas relações tanto a nível individual quanto coletivo. Encontramos no discurso proferido por Carmichael (militante do Partido dos Panteras Negras) no Congresso Dialética da Libertação, uma chave de entendimento para o racismo individual e o racismo coletivo ou institucional. Segundo ele “o primeiro tipo consiste em atos abertos por parte dos indivíduos, com o resultado normalmente imediato”.

Já “o segundo tipo é menos aberto, mais sutil, menos identificado em termos dos indivíduos específicos que cometem os atos, mas não menos destrutivo para a vida humana. Trata-se da operação geral de forças aceitas e respeitadas na sociedade, e assim, não recebe a condenação aplicada ao primeiro tipo”.

Encarar o problema racial com honestidade é despir-se da imposição da venda que nos cega racialmente às diferenças e confrontar o poder hegemônico, produzindo, desta maneira, espaços de resistências.

O confronto é comumente entendido pelo opressor como violência, por isso, tomo Fanon a partir de Carmichael para que reflitamos que no Ocidente, a violência só incomoda o grupo hegemônico, quando é utilizada por um(a) negro(a), fora disso, ela é largamente física e simbólica aplicada pela branquitude, inclusive nas táticas de silenciamento.

Não à toa, Virgínia Bicudo, inferiu que pessoas negras, a partir de uma estrutura racista, evitavam (evitam) confrontos diretos com pessoas brancas, o que impedia (impede) o desenvolvimento de uma consciência da discriminação sofrida, diminuindo, desta forma, as reivindicações por justiça e direitos básicos e, novamente, criando uma falsa sensação de democracia racial.

O fortalecimento do nosso povo surge, assim, como uma tática eficaz para a compreensão das forças coercitivas que agravam o racismo em um sistema capitalista, pois racismo e capitalismo são estruturas que se retroalimentam, uma vez que o capitalismo “pela sua própria natureza, não pode criar estruturas isentas de exploração”.

Apontar o racismo, indicar o racismo e dar nome aos atos, não mascará-los, metaforizá-los ou passar pano. Confrontemos!

*Kauan Almeida é mestrando em ensino e relações étnico-raciais.

REFERÊNCIAS

BICUDO, V. L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010.

CARMICHAEL, S. O poder negro. Belo Horizonte: Nandyla, 2016.

CARNEIRO, A. S. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese (Tese de doutorado) – USP. São Paulo, p. 339., 2005.

GLASS, R. D.; SALES, S. R. Ação afirmativa, raça, racismo e educação: o discurso da mídia no Brasil (2000-2006). In: Carvalho, C. R. de.; Nogueira, R.; Sales, S. R. (orgs). Relações étnico-raciais e educação: contextos, práticas e pesquisas. Rio de Janeiro: Nau: EDUR, 2013.

MOORE, C. Para uma nova interpretação do racismo e seu papel estruturante na história. In: d’Adesky, J.; Souza, M. T. de. (orgs). Afro-Brasil: Debates & Pensamentos. Rio de Janeiro: Cassará, 2015.

Foto: Reprodução/Black Panthers

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