O que aparece como uma “onda” de intolerância para a consciência horrorizada de minorias “progressistas” é apenas a crise do pacto social e o retorno das contradições abrandadas pelo amortecedor social da “Era Lula”.
Por Marcos Barreira, no blog da Boitempo
Os acontecimentos recentes parecem não deixar a menor dúvida: quer se trate de campanhas contra exposições de arte, “cura gay”, ensino religioso nas escolas ou da pregação da “intervenção militar” nas redes sociais, estamos diante de uma inequívoca onda de conservadorismo. Somadas ao processo de desmonte do sistema de proteção social criado ao longo da modernização da sociedade brasileira – um processo acelerado após o fim do período de crescimento da “Era Lula” –, essa “onda” indicaria um recuo das forças “progressistas” e das ações afirmativas e/ou de redução da pobreza. É como se todo um período quase idílico de estabilidade política, crescimento econômico, inclusão social e florescimento da diversidade cultural fosse subitamente golpeado.
Esse modo de ver as coisas faz parte de uma visão enganosa e cheia de simplificações que a esquerda construiu a respeito de si mesma e do seu papel histórico. Tal ideia é facilmente desmentida em dois aspectos: primeiro, o conservadorismo da sociedade brasileira não é uma “onda”, pelo menos não no sentido de uma simples agitação momentânea, e sim um dado estrutural da nossa ordem social; em segundo lugar, a “Era Lula” foi um fenômeno “pós-ideológico” (i.e., uma forma pragmática de gestão que pretendia ultrapassar os conflitos do período de consolidação da modernidade) de adequação cada vez maior de partidos e movimentos de esquerda ao sistema político vigente. Para funcionar, o modelo de crescimento com inclusão adotado pelos governos de Lula e Dilma dependia da ampliação da ordem conservadora, especialmente da sua estrutura social e econômica, não de uma transformação em larga escala; eram transformações na ordem, não da ordem conservadora.1
Se a década de 1990 ainda foi marcada por processos de mobilização popular – luta pela terra, pela moradia, contra as privatizações etc., os anos de hegemonia “lulista”, nos quais a política continuou a ser tutelada pelo poder econômico, os movimentos de contestação da ordem foram desmobilizados e substituídos pela combinação de “pautas afirmativas”, reivindicações corporativas e programas de renda mínima. Durante essa conjuntura, uma parte crescente das camadas populares ascendeu socialmente por meio do consumo individual, o que deu um forte respaldo ao projeto de poder organizado em torno do ex-presidente Lula.
O modelo de reprimarização da economia a partir da conjuntura do boom das matérias primas ajudou a reconfigurar a geografia econômica brasileira: foram reforçadas as tendências de expansão das monoculturas no Cerrado, os grandes projetos de infraestrutura na Amazônia e no semiárido nordestino. Aproveitando-se da conjuntura favorável, o governo acionou mecanismos estatais de “ativação” do mercado interno e estimulou o consumo das famílias de baixa renda nas periferias das metrópoles e nas cidades pequenas e médias do interior. Também foram reforçadas as tendências de esvaziamento industrial e de empobrecimento dos setores médios: a tão festejada expansão dos empregos – que já em 2015 havia regredido a patamares idênticos aos da década de 1990 – ocorreu sobretudo nos serviços de baixas qualificação e remuneração.
A expansão do mercado (quer se trate da fronteira agrícola, de matérias primas industriais ou do consumo interno) produziu uma série de efeitos ideológicos colaterais: o país assistiu à última etapa da transição da universidade de elite para o ensino comercial massificado. A ampliação do sistema de ensino universitário não apenas orientou-se para os novos nichos de mercado decorrentes da expansão do consumo popular (turismo, publicidade, novas mídias, estética e cuidados com o corpo, etc.), como também promoveu uma “cultura empreendedora” para as camadas sociais ascendentes.2 Ocorreu ainda um deslocamento de segmentos importantes da indústria cultural para o interior, enquanto multiplicavam-se soluções de mercado para os problemas da pobreza urbana, como a ideologia da “Favela S.A.”, e a juventude da periferia criava sua cultura da “ostentação” ou da socialização no “rolê” em shopping centers. Tais exemplos revelam formas ilusórias de interiorização dos pré-requisitos da concorrência capitalista após a falência do modelo de desenvolvimento nacional. Por trás de toda a retória do governo, a capacidade real de integração das massas populares permaneceu limitada. Não por acaso, foi também nesse período que a militarização da segurança pública e o encarceramento dos pobres atingiram dimensões inéditas e brutais.
A militância de esquerda assumiu uma defesa institucional dessa duvidosa integração dos pobres pelo mercado, incluindo seus desdobramentos no plano cultural, pretendendo, inutilmente, instrumentalizar a constituição ideológica das novas identidades do “capitalismo popular”. Igualmente orientadas pelo lucro e pelo sucesso individual, as seitas evangélicas ampliaram ainda mais a sua presença nas periferias por meio do infatigável trabalho de base e da exploração da reação conservadora ao caráter “liberalizante” dos processos de individualização que acompanham o aprofundamento das relações de mercado.
Até o mais distraído dos observadores é capaz de notar que tais padrões de comportamento e visões de mundo estimuladas pelo efêmero boom de crescimento não podiam romper com a ordem conservadora, nem apontavam qualquer perspectiva de mudança social – a não ser aquela promovida pelo próprio mercado. Tratava-se não de reforma ou “mudança”, mas de reafirmação – em parte, uma aceleração – de tendências sociais regressivas que estavam em curso bem antes de 2002. Não cabe, portanto, apontar uma contradição entre o crescimento econômico com redução da pobreza e a “vocação conservadora” do país, como fez, por exemplo, um porta-voz do lulismo.3Foi por meio da reprodução do sistema político, da estrutura econômica concentradora e da ideologia de mercado que se construiu o modelo de crescimento e de integração das camadas de baixa renda.
Desse modo, é possível inverter a perspectiva: se o conservadorismo é uma condição estrutural, ainda que em dissolução devido às pressões individualizadoras, o que pode ser compreendido como fenômeno puramente conjuntural é o “pacto social” da “Era Lula”. O “pacto social” é essencialmente um “recurso jurídico-político das elites em horas de crise da sua hegemonia”.4Jamais se tratou de uma retomada do “desenvolvimento”, para a qual faltavam as bases objetivas, mas apenas de um momento da crise da modernização periférica no qual havia a explosão do desemprego e da pobreza em massa tornou urgente o tratamento da crise social. A partir daí a correlação de forças entre os dois maiores projetos nacionais de poder (PT e PSDB) foi parcialmente invertida – e dessa inversão nasceu um projeto mais amplo de administração da crise que, de um lado, incorporava parte significativa das massas populares e, de outro lado, pactuava com as elites econômicas a manutenção do modelo concentrador.
Esse arranjo, no entanto, produziu uma forte oposição das camadas médias, que não só permaneceram fora do “pacto”, mas ainda foram sobrecarregadas com parte dos custos da integração das camadas populares. Os estratos médios negligenciados por esse arranjo político nada conciliador abarrotaram durante toda uma década as mídias sociais em rápida expansão com um discurso antiestatal tão violento quanto delirante, que identificava como “socialista” qualquer tipo de protagonismo do Estado. Por sua vez, as camadas populares festejadas pelos governos Lula e Dilma como a “nova classe média” não se integraram apenas pelo consumo individual, mas igualmente pelo sistema de comunicação em rede que nesse meio-tempo se tornou o elemento central da indústria cultural. Esse é o embrião da hegemonia ideológica pós-lulista em formação, que unifica a ideologia individualista das camadas médias tradicionais e uma parte cada vez maior das massas das periferias e do interior do Brasil “emergente”.
Se as camadas médias constituíram uma base de sustentação da oposição ao governo Lula, esse novo matrimônio ainda não inteiramente consumado já produziu grandes mobilizações de massa. O próximo passo, que agora é esboçado pelos movimentos da “nova direita”, promove a união da ideologia liberal radical com a mentalidade repleta de resíduos tradicionais e autoritários das camadas populares. Os inventores dessa aliança idealizam um paradoxal “conservadorismo de mercado” que haveria de restaurar os valores tradicionais da família e da religião. Para isso, exploram os preconceitos populares, adicionando a eles uma guerra contra a “mentalidade revolucionária” que estaria por trás da dissolução de todos os valores.5
Toda essa confusão ideológica produziu um novo estranhamento mútuo: minorias progressistas e cultivadas da “classe média” dos grandes centros, ela mesma preconceituosa até os ossos, não param de se chocar com a mentalidade rústica e “tradicionalista” das maiorias, que, por sua vez, ainda são capazes de se escandalizar com exposições de arte em museus. Outro aspecto desse choque cultural é a exposição, por meio das novas mídias, de uma violência sempre recalcada por parte das camadas médias: grupos de extermínio, controle mafioso de territórios, estupros coletivos e linchamentos há muito fazem parte da vida cotidiana das massas “sobrantes” da modernização periférica. Já nos anos 1990, o sociólogo José de Souza Martins mostrou verdadeira dimensão dos casos de “justiçamento” nos quais as populações sem acesso ao Estado reagem à quebra das regras morais.6 O mesmo pode ser dito, por exemplo, a respeito da violência no sistema carcerário ou nas favelas cariocas. Também o avanço da “modernização conservadora” no campo levou à morte de nada menos do que 560 lideranças indígenas, entre os anos 2005 e 2015.7
O verdadeiro sentido desse modelo de crescimento com inclusão, que já é parte do passado, não foi a reforma gradual das estruturas sociais e sim uma acomodação dos potenciais de transformação à lógica coercitiva do dinheiro.8 Enquanto o desejo de ascensão social era parte de uma conjuntura de crescimento econômico baseado na bolha das matérias primas, agora subsiste apenas a mobilização pela simples preservação de um estado de segurança (social, econômica, psíquica, etc.) que já não encontra bases reais para se sustentar. Desse estado psicossocial alimentado pela dinâmica do colapso das estruturas de reprodução da sociedade fazem parte as diversas “seitas de salvação” e a tendência crescente de militarização e de administração armada dos conflitos.9 O que aparece como uma “onda” de intolerância para a consciência horrorizada de minorias “progressistas” é apenas a crise do pacto social e o retorno das contradições abrandadas pelo amortecedor social da “Era Lula”. O fim desse período de adiamento da crise (que foi confundida pela ideologia afirmativa com uma nova era de crescimento) representa o início do declínio social. No plano da subjetividade, o recrudescimento da violência física ou simbólica de todos contra todos é a resposta mais imediata para o fim da normalidade capitalista. Com isso, não pode mais ser ocultado o vinculo entre a mercantilização das relações humanas e a violência sem freios que o ensaísta alemão H. M. Enzensberger definiu como uma “guerra civil molecular”.
NOTAS
1 O modelo econômico da “Era Lula” se baseava fundamentalmente na ampliação e modernização das monoculturas de exportação e da exploração mineral, bem como da respectiva criação da infraestrutura.
2 Com instituições de ensino privadas usando dinheiro público para fomentar a retórica empresarial.
3 André Singer, Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador, SP, Companhia das letras, 2012, p. 12-13.
4 Tarso Genro, Instituições políticas no socialismo, SP, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 16.
5 “Enquanto o PT perdia os eleitores das faixas de renda média, suas bases sociais não se renovavam. Ao contrário, os segmentos diretamente assistidos pelo Estado ou assalariados de baixa renda que ampliaram sua capacidade de consumo nunca se identificaram com o projeto político do PT – ou de qualquer outro partido. No plano dos valores, a maior parte dessa massa é conservadora e abertamente hostil à agenda petista e da esquerda culturalista em geral”. Marcos Barreira, “Terra arrasada“, publicado no Blog da Boitempo em novembro de 2016.
6 José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
7 Carlos Walter Porto-Gonçalves. Amazônia: encruzilhada civilizatória. RJ, Consequência, 2017.
8 Não por acaso, o “Bolsa Família” foi definido por dois de seus defensores como um “instrumento de autonomia individual” (Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, Vozes do Bolsa Família. Autonomia, dinheiro e cidadania, SP, Editora UNESP, 2013, p. 20), isto é, como mais autonomia para atuar no sistema de trabalho-renda-consumo de mercadorias e para reproduzi-lo.
9 Cf. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (org.). Até o último homem. Visões cariocas da administração armada da vida social, SP, Boitempo, 2013.
***
Marcos Barreira é Professor de geografia e Doutor em Psicologia Social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Boitempo, colaborou no livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.