“Exaustivo”, mas “com prazer”: Gilmar Mendes brinca com o trabalho escravo, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

O ministro Gilmar Mendes usou novamente da galhofa para tratar de um assunto nada divertido. Sobre a polêmica portaria do governo Michel Temer, que muda as regras para a fiscalização de escravidão, dificultando as libertações de trabalhadores, afirmou que ele próprio se submete a um ”trabalho exaustivo”, ”mas com prazer”.

”Eu, por exemplo, acho que me submeto a um trabalho exaustivo, mas com prazer. Eu não acho que faço trabalho escravo. Eu já brinquei até no plenário do Supremo que, dependendo do critério e do fiscal, talvez ali na garagem do Supremo ou na garagem do TSE, alguém pudesse identificar, ‘Ah, condição de trabalho escravo!”’, completou Gilmar Mendes, em matéria no jornal O Estado de S.Paulo.

Independentemente da opinião que se faça sobre o ministro, reconhece-se que é um conhecedor das leis e da Constituição Federal e uma pessoa inteligente. Por isso, sabe que não poderia se colocar em ”jornada exaustiva”, um dos elementos que caracterizam trabalho análogo ao de escravo de acordo com o artigo 149 do Código Penal. Ele não está em situação de vulnerabilidade social e econômica para aceitar um serviço que pode colocar em risco sua saída, segurança e vida.

Essa ironia, portanto, destoa de um debate importante, que deveria ser travado no Congresso Nacional. A defesa do conceito de trabalho escravo foi atropelada por uma portaria publicada, nesta segunda (16), pelo Ministério do Trabalho, reduzindo o que pode caracterizar esse crime. Essa declaração, vinda de alguém que conhece as leis e as convenções internacionais que o Brasil assinou, beira, portanto, o desprezo.

A portaria atende antiga demanda da bancada ruralista no Congresso Nacional, base de apoio do governo Temer e peça fundamental na rejeição à segunda denúncia movida pela Procuradoria-Geral da República contra ele.

Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

A nova portaria estabelece o cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de ”condições degradantes” e de ”jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo essa lei, qualquer um dos quatro elementos separadamente é suficiente para caracterizar a exploração. Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais.

A procuradora-geral da República Raquel Dodge criticou a portaria em audiência com o ministro do Trabalho nesta quarta (18). Segundo ela, ”ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a portaria fere a Constituição”. Ela pediu a revogação da nova medida.

Além disso, Gilmar Mendes vem do Mato Grosso, um dos estados com maior incidência desse crime, seja em criações de gado, derrubada de mata, produção de carvão para siderurgia, limpeza de área para o plantio de soja ou de algodão. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra e do Ministério do Trabalho, foram 6070 pessoas resgatadas entre 1995 e 2016 – o que coloca o Estado em segundo lugar no triste ranking de libertados no Brasil. Portanto, ele conhece bem a realidade dos trabalhadores. Ou, ao menos, deveria.

”A jornada exaustiva não se confunde com a excessiva e muito menos com a realização de tarefas ‘prazerosas’, ainda mais quando realizadas no âmbito de uma das mais elevadas missões que podem ser confiadas a um cidadão nacional, a de ministro do Supremo Tribunal Federal”, afirma Renato Bignami, doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade Complutense de Madrid, auditor fiscal do trabalho, que coordenou os esforços para resgate de trabalhadores escravizados em São Paulo.

”A jornada exaustiva combatida pelo ordenamento nacional é aquela que exaure física e/ou psicologicamente o trabalhador, implicando diversos males à sua segurança e saúde, reduzindo-o a uma mera mercadoria, o que é vedado expressamente em diversos dispositivos tanto do ordenamento nacional quanto dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil”, explica.

De acordo com Tiago Cavalcanti, procurador do trabalho e coordenador nacional da área responsável pela repressão à escravidão do Ministério Público do Trabalho, ”o ministro comete um erro jurídico elementar ao confundir jornada exaustiva com jornada prolongada. A exaustão não se limita à prestação de horas extras, mas à fadiga física e psíquica decorrente do ritmo, da frequência, da natureza da atividade. Nenhum ministro que anda de carro preto com motorista e ar condicionado está submetido a jornadas exaustivas”.

O ministro do Supremo Tribunal Federal afirma que o combate ao trabalho escravo não pode ser nem partidarizado, nem ideologizado.

Nisso, concordamos perfeitamente.

Foto: Marlene Bergamo /Folhapress

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