Liberdade por meio da escrita

Autora de “Imprensa Feminina e Feminista no Brasil: Século XIX – Dicionário Ilustrado”, indicado ao Prêmio Jabuti, Constância Lima Duarte, escritora e doutora em literatura brasileira, fala ao Magazine a respeito de pesquisa realizada sobre primeiras publicações brasileiras que tiveram a mulher como público-alvo

Laura Maria – O Tempo

Seu livro “Imprensa feminina e feminista no Brasil: Século XIX – Dicionário Ilustrado” foi indicado à segunda fase do prêmio Jabuti. Como recebeu essa honraria? 

Fiquei muito feliz, é muito gratificante receber esse prêmio por um trabalho que realizo há anos. É um reconhecimento a esse tipo de pesquisa que trata do feminismo.

A publicação reúne 143 títulos de revistas e jornais dirigidos a mulheres. Qual foi seu principal objetivo ao fazer essa compilação? 

Desde minha tese de doutorado sobre Nísia Floresta, nossa primeira escritora feminista, venho investigando e querendo conhecer a história intelectual da mulher brasileira. Então, essa pesquisa representa a continuação de outras que já faço há muitos anos sobre a literatura de autoria feminina. Como sou professora de letras, sempre fiquei em torno das escritoras, em especial daquelas do século XIX, e sempre tive curiosidade de conhecer as primeiras mulheres que se manifestaram publicamente. Então, pesquisando as escritoras dessa época, eu encontro a produção em jornais, porque o periódico foi o primeiro grande espaço que as mulheres encontraram para divulgar a sua produção intelectual bem antes de publicar livros. Procurando as escritoras, eu encontro nos jornais a produção de muitas mulheres que, às vezes, nem chegam a publicar em livros. E pesquisando a imprensa feminina – chamo de imprensa feminina aquela em que o público-alvo são as mulheres –, fui recolhendo o trabalho das escritoras. Nesses jornais, a gente consegue visualizar como ocorreu a trajetória da construção da identidade feminista e feminista. A construção da identidade feminista não obedeceu uma linha reta, ela teve esse percurso com percalços.

O livro reúne tanto periódicos que retratavam direitos das mulheres como aquelas que defendiam que o papel feminino deveria ser restrito aos cuidados da casa e da família. Qual tipo de publicação era mais recorrente?

Essa é uma questão muito interessante, me arrisco a dizer que é meio a meio. Na segunda metade do século XIX, era mais recorrente a publicação de reivindicações dos direitos femininos por causa das primeiras manifestações individuais vindas das mulheres. Ao mesmo tempo, tínhamos jornais circulando no Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador que pregavam o papel mais tradicional da mulher. Isso acontecia ao mesmo tempo, como acontece até hoje, com uma diferença: atualmente, na mesma publicação, há manifestações progressistas e conservadoras.

Quais são os principais temas abordados nos periódicos dirigidos às mulheres naquela época? 

Os principais temas são a reivindicação pela educação e as questões relativas à maternidade. No que diz respeito à educação, os jornais começavam a reivindicar o fato de as mulheres serem seres dotados de inteligência. A Nísia Floresta, por exemplo, publicava artigos científicos sobre os direitos que as mulheres tinham de frequentar a escola. Já a maternidade era um tema recorrente porque não existia qualquer mérito em ser mãe no século XIX. Cuidar de filhos era considerado algo animalesco, e as mães (brancas) deixavam seus filhos aos cuidados das mães pretas. Mas com o alto índice de mortalidade infantil, médicos e governantes, preocupados em reverter essa situação, passaram a escrever periódicos que ensinavam a mulher a cuidar de seus filhos ou pelo menos supervisionar quem fazia esse trabalho, mostrando que a maternidade tinha valor. Mas aí surgia um embate: se as mulheres já tinham direito à educação, por que ela precisaria ficar presa à casa? Então, surge a ideia de que a mulher deveria ser instruída para cuidar dos filhos, ser companheira do marido etc.

O volume de 143 títulos é considerado de grande ou pequena proporção tendo em vista o século XIX, período em que a educação das mulheres estava restrita, muitas vezes, ao aprendizado de atividades domésticas?

Eu considero como uma ponta de um iceberg. Quero crer que existiram muitos outros periódicos que se perderam na poeira das estantes ou pelo descaso de quem deveria tomar conta deles. Acredito nessa resistência da mulher brasileira, e esses periódicos representam uma parcela do que existiu. Esses jornais e revistas circularam não só no litoral, mas também no interior. Consegui encontrar, por exemplo, jornais que colocavam notas saudando mulheres de outras publicações. Formou-se uma rede de sororidade.

O livro reúne periódicos escritos por mulheres e por homens. Existem diferenças dos trabalhos feitos por mãos femininas e masculinas? Quais? 

Os periódicos escritos por homens mais conservadores são aqueles que mais predominavam. Mas é preciso observar que também existiram muitos periódicos progressistas assinados por homens. O primeiro jornal direcionado ao público feminino, “O Espelho Diamantino”, surgido no Rio de Janeiro em 1827, por exemplo, tinha uma proposta mais progressista. Ele, inclusive, se dirige aos leitores homens para convencê-los a deixar que suas filhas frequentassem a escola. O interessante é que a lei que autoriza que as mulheres também pudessem frequentar a escola é de 1827. Nós pensamos que toda elite branca frequentava a escola, mas não era assim: enquanto homens iam para Paris e Coimbra para estudar, as mulheres ficaram reclusas em casa à espera do casamento.

Você afirma que a leitura e a escrita deram às mulheres “consciência do estatuto de exceção que ocupavam no universo de mulheres analfabetas e da condição subalterna a que o sexo estava submetido”. De que forma isso se deu? 

As mulheres que tiveram acesso à instrução por professoras particulares, as filhas da elite cujos pais permitiam que tivessem professoras, tinham consciência de que representavam uma exceção na massa de mulheres analfabetas. Elas tiveram consciência da condição subalterna a que as mulheres estavam submetidas. Isso a gente vê por meio de suas obras. A literatura de autoria feminina e a consciência feminista surgiram praticamente ao mesmo tempo com as primeiras escritas do século XIX. Nossas primeiras escritoras tiveram a consciência de formar suas companheiras por meio da criação de jornais e de revistas. O primeiro livro de Nísia Floresta, por exemplo, leva o título “Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens”. Nessa publicação, Nísia faz uma tradução cultural das ideias que circulavam na Europa a respeito de as mulheres estarem adaptando para a sociedade brasileira as reivindicações feitas pelos autores na Europa. Naquela época, a educação já estava instaurada na Europa, e os autores lutavam pelo direito à educação superior das mulheres. Já Nísia pleiteia a educação básica das mulheres.

Quais percalços encontrou no caminho de catalogação desses títulos?

Quando comecei a pesquisa, era necessário ir às bibliotecas pesquisar periódicos que, muitas vezes, estavam em condições precárias. Lembro que era preciso folhear tudo com muito cuidado. Em curto espaço de tempo, os materiais já estavam digitalizados. Então, ficou tudo mais fácil.

Foto: Constância Lima Duarte, escritora e doutora em literatura brasileira

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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