Filme sobre o povo indígena em Mato Grosso segue para festival em Amsterdã, após prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio
Por Cristiane Fontes, Época
“Por nos abrir os olhos para a luta incansável de um homem em preservar os direitos inalienáveis em um contexto de hostilidade aberta. Por nos dar o privilégio de mostrar pela primeira vez o milagre do olhar inocente de dois homens livres, em um documentário que nos devolve uma imagem própria como um espelho e nos obriga a refletir sobre nossas próprias vidas.” E assim o júri do Festival do Rio anunciou o prêmio de Melhor Documentário a Piripkura. O filme que nos apresenta Pakyî e Tamandua, dois sobreviventes do povo piripkura que, isolados da sociedade, vivem com um facão, um machado cego e uma tocha no noroeste de Mato Grosso, cercados por fazendeiros e madeireiros; Jair Condor, o indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai) que dedica sua vida à proteção dos índios isolados, acompanha os piripkuras desde 1989 e integra a equipe que vem lidando com orçamentos e condições de trabalho cada vez mais precárias; e também a Rita, a terceira sobrevivente piripkura, que, hoje casada com um caripuna, vive em uma aldeia em Rondônia e embarca ocasionalmente em expedições da Funai para monitorar vestígios dos piripkuras na floresta e, assim, reencontrar seu passado.
O filme segue agora para o Festival Internacional de Documentário de Amsterdã, para participar da mostra competitiva de novos talentos. Logo após o Festival do Rio, Mariana Oliva e, no início, Renata Terra, diretoras do documentário, conversaram por telefone com ÉPOCA. O diretor Bruno Jorge não pôde participar da entrevista porque estava filmando para um novo projeto.
ÉPOCA – Como vocês chegaram aos piripkuras?
Mariana Oliva – No final de 2013, gravamos um encontro de formação de indigenistas que atuam nas Frentes de Proteção Etnoambiental da Funai, profissionais que são responsáveis por proteger e monitorar os territórios habitados por índios isolados ou de recente contato. Nesse encontro, havia três indigenistas muito experientes, um deles Jair Condor, o seu Jair, que nos falou sobre os piripkuras e sobre a vontade de contar a história deles. Nossa empatia por ele foi imediata e tudo que contou nos atravessou de uma forma muito forte. Saímos de lá dizendo a ele que também queríamos muito contar aquela história e que íamos batalhar para isso.
Renata Terra – Depois do encontro com o seu Jair, mergulhamos em pesquisa, conversamos com vários especialistas, como antropólogos, indigenistas, nos cercamos de conteúdo para desenvolver o projeto e depois fomos buscar financiamento.
ÉPOCA – Em quanto tempo e com que orçamento Piripkura foi produzido?
Mariana – Em três anos e meio. Demoramos um ano para obter a autorização da Funai e mais um ano e meio para conseguir o financiamento. O Canal Curta apostou no projeto desde o começo e conseguimos viabilizá-lo via Fundo Setorial. Piripkura custou R$ 550 mil, o que não é caro considerando os custos de filmar na Amazônia. Trabalhamos com uma equipe muito reduzida.
ÉPOCA – E quem são e onde vivem os piripkuras?
Renata – Eles vivem no noroeste de Mato Grosso, fronteira com Rondônia e o Amazonas, numa terra que vem sendo recorrentemente invadida por madeireiros e hoje é cercada de fazendas. Eles estão ali no Arco do Desmatamento, perto do município de Colniza [um dos mais violentos do país, com o maior número de conflitos agrários de Mato Grosso e atual líder em número de focos de queimadas do estado]. Como em outras terras indígenas, as áreas de floresta que ocupam estão entre as mais preservadas da região. Só que, no caso deles, eles estão numa terra que ainda não foi demarcada, ela está interditada. Periodicamente, a Funai tem de organizar expedições ao local para registrar vestígios dos piripkuras e provar que eles estão ali, e assim prorrogar uma portaria que mantém a área interditada desde 2008. Seu Jair é responsável por localizar esses vestígios. Ao longo desses mais de 20 anos em que os acompanha, pôde ir mapeando a convivência deles com a floresta, como vivem e se movem pelo território ao longo do ano.
Mariana – Eles são nômades. Percorrem o território todo fazendo cabanas muito simples, outras mais estruturadas, mas estão o tempo todo se deslocando. E o isolamento é uma escolha deles, mas também consequência dos massacres, das perseguições que sofreram.
ÉPOCA – Por que eles são chamados de povo borboleta?
Mariana – Piripkura foi o nome dado a esse povo pelos índios gaviões, que vivem ali nas proximidades. Pelo que a gente conversou com seu Jair, o nome está relacionado à habilidade de eles sumirem muito rapidamente na mata. De repente, “eles batem asa e voam”.
ÉPOCA – Para além de apresentar vocês aos piripkuras, qual foi o papel de seu Jair durante a elaboração do documentário?
Mariana – Ele foi a porta de entrada, a pessoa que nos inspirou, com quem construímos nossa conexão emocional com essa história e que se manteve ao longo de todo o processo sendo nosso principal interlocutor. Uma coisa que queríamos muito trazer para o filme era a relevância imprescindível do que ele faz. Um homem que vive mais em campo do que com a família, que está na estrada o tempo inteiro, que oferece aos piripkuras uma dedicação de vida mesmo.
Renata – A admiração, o respeito que seu Jair tem pelos piripkuras nos pautou muito, determinou nossas escolhas durante todo o processo. Passamos a querer mostrar exatamente isso no filme.
ÉPOCA – Profissionais como ele são devidamente valorizados pelo Estado brasileiro?
Mariana – Definitivamente, não. Ele é um homem que dedica a vida aos povos indígenas, especialmente aos piripkuras e aos kawahivas do Rio Pardo, compartilhando seu conhecimento com as pessoas que trabalham no mesmo campo e fazendo isso tudo em condições muito difíceis, com uma equipe muito reduzida e sem nenhuma estabilidade no trabalho. Seu Jair é uma pessoa que está ali há décadas e que não vai se aposentar pela Funai, pois ocupa um cargo de confiança. E que está na base da pirâmide em termos de remuneração.
Renata – De maneira alguma. Mas ele é extremamente reconhecido, respeitado pela equipe da Funai. Para poder fazer esse filme, por exemplo, a primeira coisa que a equipe da Funai nos disse foi: “Se o seu Jair quiser, vocês fazem o filme”. Mas em relação a condições econômicas, materiais, para fazer o que ele faz, não há valorização.
ÉPOCA – O que vocês aprenderam sobre a situação dos povos isolados no Brasil?
Mariana – Existem comprovados 26 povos indígenas isolados no Brasil e registros de 113. O Brasil é o país que mais tem povos isolados no mundo. E não é que eles não saibam da gente. Eles sabem, mas não querem o contato devido aos diversos massacres, doenças, correrias [como eles dizem], subgrupos que foram diminuindo, se dividindo e se perdendo. Essa é também uma estratégia de sobrevivência. Por fim, a relação deles com a floresta é muito distinta da que nós temos. Algo que nos leva a pensar muito sobre os caminhos que estamos seguindo como sociedade, uma sociedade que tenta impor esse desenvolvimento violento, avassalador, que viver tem de ser de um determinado jeito.
Renata – Eles estão obviamente muito vulneráveis, ameaçados diante das invasões, que são recorrentes, mas também existe uma imensa força, toda uma resistência acumulada ali. Ao longo do processo, aprendemos também quanto desconhecemos essa realidade no Brasil. Quando contávamos que estávamos fazendo um filme sobre índios isolados, as pessoas nos olhavam incrédulas sobre a existência deles por aqui. Era unânime isso, o que reforçava a importância de contarmos essa história, parte de nossa diversidade cultural.
Mariana – Vale ressaltar que as Frentes de Proteção Etnoambiental da Funai, que desenvolvem um trabalho imprescindível, enfrentam sérios problemas para atuar diante dos cortes orçamentários impostos pelo governo federal desde 2014. Segundo uma reportagem publicada no site do Instituto Socioambiental, uma estimativa do governo federal aponta para um total de R$ 2,2 milhões para a proteção aos povos isolados em 2018, ante R$ 2,65 milhões em 2017. Para ter capacidade de manter operando precariamente as bases de proteção etnoambiental ainda ativas seriam necessários pelo menos R$ 3,5 milhões.
ÉPOCA – Como vive a Rita, piripkura que testemunhou tantas perdas, deixou de viver na floresta aos 38 anos para viver numa aldeia e se casar com um caripuna?
Mariana – A Rita é uma mulher admirável, muito forte, com uma energia contagiante, apesar de todas as perdas que passou na vida – o marido, os filhos, muitos parentes –, dos massacres, perseguições, doenças que testemunhou. Hoje, ela vive entre os pipipkuras e os caripunas, pois se casou com Aripã, do povo caripuna, morando agora em uma aldeia em Rondônia. E ela é o ponto de contato com a história dos piripkuras, da família, de como viviam. Algo muito impressionante que descobrimos são os desenhos que a Rita faz ao lado da cama dela, com uma canetinha roxa. São bichos, partes de histórias cotidianas dos piripkuras. Foi incrível observar essa mulher tentando se agarrar à memória afetiva dela.
Renata – Muitas vezes a Funai contrata a Rita para participar de expedições na terra dos piripkuras. A alegria dela de voltar à terra dela é impressionante. Quando chega lá, a Rita se ilumina. Eles têm uma relação muito diferente da nossa com suas origens. A relação deles com a terra é muito intensa.
Mariana – Eles pertencem à terra, não é a terra que pertence a eles.
ÉPOCA – O que vocês destacariam do momento memorável do encontro com Pakyî e Tamandua?
Mariana – Numa das expedições, numa situação difícil, de cheia, seu Jair se machuca e a equipe volta para a base. De repente, os dois fazem, pela primeira vez, o movimento de ir até a base da Funai, porque o fogo deles tinha apagado. E, numa dessas maravilhas do destino, a equipe do filme estava lá quando isso aconteceu. A imagem, a presença deles é algo muito forte. Como eles estão no mundo, como os dois se relacionam, como se relacionam com a floresta.
ÉPOCA – Vocês optaram por uma estrutura narrativa com poucos dados, informações sobre os povos isolados, deixando que as imagens “falassem”. O que você teria a comentar sobre essa escolha?
Mariana – Pensamos muito. Como balancear informação e o emocional? A partir de uma estrutura narrativa que é clássica, como dosar o contexto e abrir espaço para que as pessoas sintam o que a gente sentiu, terem uma experiência sensorial, permitindo uma conexão afetiva, que leve a reflexões. As informações vão entrando paulatinamente. Bem, essa é uma das virtudes do audiovisual.
ÉPOCA – E o que vocês gostariam que o público guardasse deles?
Mariana – A força, a resistência, a plenitude. A relação de afeto que eles têm um pelo outro.
ÉPOCA – Vocês ganharam o prêmio de Melhor Documentário do júri do Festival do Rio, mas como tem sido a recepção do público?
Mariana – Uma de nossas maiores alegrias foi ver as pessoas se emocionando com o Pakyî, o Tamandua e a Rita e exibindo enorme admiração pelo trabalho do seu Jair. No lançamento do filme, no qual ele pôde estar presente, muitas pessoas foram abraçá-lo, agradecer-lhe. Um menino, na saída de uma das sessões, foi até ele e disse: “Você é o cara”.
ÉPOCA – Depois dessa experiência, como vocês responderiam a sentenças ainda muito comuns no Brasil, como “existe muita terra para pouco índio”?
Mariana – A terra para o índio não tem sentido comercial. Se você for pensar na forma como nós, mulheres, homens brancos, nos relacionamos com o território, ele é um território expandido. E os índios não apenas moram num território. Eles caçam, pescam, têm seus rituais, seus locais sagrados. E muitos deles ainda são nômades. Ou utilizam diferentes partes do território ao longo do tempo, usam o espaço de forma rotacional, e não de forma predatória, até a exaustação, como fazemos. Além disso, a população de muitos povos indígenas vem aumentando. E, se a gente for falar sobre muita terra, está em outro lugar o problema da concentração de terras no Brasil.
ÉPOCA – Quais são os planos para a exibição de Piripkura?
Mariana – Vamos participar da mostra competitiva de novos diretores do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã na segunda quinzena de novembro. Acabamos de ser convidadas para participar do Forumdoc.bh. Vamos exibi-lo no Canal Curta, que foi o veículo que nos permitiu viabilizar esse filme. Gostaríamos muito de colocá-lo em salas nos cinemas. Por fim, no começo de 2018, o filme vai estar na plataforma Videocamp, disponível gratuitamente para download para as pessoas produzirem exibições públicas. Esperamos que ele circule muito e que isso possa de alguma forma contribuir para a proteção dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Precisamos enfrentar quanto antes ameaças como as invasões, a mineração e a permissão da expansão da agropecuária em terras indígenas, em discussão no Congresso.
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Imagem: Pakyî e Tamandua, à esquerda, e seu Jair, à direita, na base da Funai na Terra Indígena Piripkura (Foto: divulgação)