Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
Sim, eu amo essa cidade. Amo demais. Cheguei aqui em 1987, disposta a passar apenas quatro anos. O plano era fazer a faculdade e zarpar. Mas, já no primeiro dia eu vi o Mercado Público, e a Lurdinha, e o samba, e a Copa Lord. Aí, pronto, estava capturada para sempre.
Desde então, viver e amar a cidade tem sido meu cotidiano. E, com as gentes, tenho lutado para mantê-la linda e boa de viver. Um luta inglória, visto que vamos perdendo as batalhas, uma a uma.
Agora essa. O STF decide manter aquela excrescência de Plano Diretor, votado num final do ano, com mais de 600 emendas acrescentadas, sem que a comunidade as conhecesse. Destas, 300 foram aprovadas, e nem os vereadores sabiam do que se tratava. Não precisava. O capital mandou, os servos acataram. Sobrou a resistência de três vereadores (Lino, Afrânio e Pedrão)e de uma parcela da população que acorreu à Câmara, e gritou, e lutou, e apanhou da polícia.
Pois aí estamos, nesse ano de golpe, no qual todos os direitos vão se perdendo, com um judiciário que não precisa mais fazer jogo de cena. Não restará pedra sobre pedra. Tudo é decidido em favor da classe dominante, mesmo que esteja fora da lei. Não há lei para os ricos. A lei é só para os pobres.
A Florianópolis que emergirá desse Plano Diretor ilegítimo é a Florianópolis do capital, dos predadores, dos empreendedores. Esses seres sem compaixão, que pouco se importam com as gentes. Tudo o que querem é cimento e lucro.
É um momento de profunda tristeza.
Compartilho aqui um texto que escrevi em 1996, quando de mais uma derrota: a construção da via expressa sul, que destruiu a Costeira e toda aquela beleza. Nele, choro mais essa derrota de hoje.
Uma cerimônia de adeus
Assisti ontem uma triste cerimônia de adeus. Parei em frente à grande obra da Via Expressa Sul com os olhos perdidos na areia branca que aos poucos vai nos roubando o mar. Tinha dentro do peito uma certa angústia, destas que batem, inexoráveis. Não sou engenheira ambiental, ainda não sei detalhes sobre a obra, mas uma coisa eu sei. É como se estivessem assassinando a beleza. Algo soa mal ali, principalmente no por-do-sol.
Refletia sobre isso e mastigava minhas mágoas quando meus olhos bateram num homem, distante de mim alguns metros. Ele também olhava a obra. Tinha o rosto vincado de sol e de mar, destes rostos que não se pode adivinhar a idade, só a profissão. Era um homem do mar, um pescador. Ficou parado por uns minutos eternos, petrificado diante da areia branca. Depois, lentamente, caminhou em direção à lama preta, velha conhecida, que fica próxima aos ranchos de pesca já em demolição.
Então começou a cerimônia. Arremangou até os joelhos as velhas calças de um tergal gris, bem desbotado. Tirou os chinelos de borracha e foi entrando na lama, pisando devagar, quase em reverência. Com os pés enterrados na sujeira do mar ele foi caminhando pra lá e pra cá. Os olhos baixos, olhando o chão, se despediam. Depois, o pescador caminhou em direção à água, já distante.
Quando seus pés encontraram o salgado do mar ele parou e volveu os olhos para a grande draga que continuava seu trabalho, jogando areia branca, engolindo a água que por muito tempo, com certeza, embalara o seu barco. Ficou ali parado, olhando fixo, parecendo fazer força para acreditar que aquilo tudo não era um sonho. Então voltou pelo mesmo caminho, os pés enterrados na lama, os olhos de novo no chão. Chegou ao meio fio e sentou sem pressa. Foi quando eu vi. Lágrimas corriam fininhas pelo meio das rugas de sol e mar.
Era um homem dizendo adeus a um mar que foi seu abrigo por décadas. Um pescador chorando esses choros sem barulho, por isso mais dolorosos. Olhei de novo para a obra da Expressa Sul e já comungando da mesma dor com aquele homem, pensei: Qual é o preço do progresso? Do conforto? Se forem as lágrimas daquele homem, não sei se vale à pena. Não tive coragem de lhe falar e fui embora com um indelével sentimento de culpa. Quando o ônibus no qual eu ia passou pelo homem, ele continuava ali, sentado no meio fio, os pés sujos de lama e o rosto crispado de dor.
20.09.1996
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Hoje, 2017, sou aquele homem, as lágrimas correndo, e essa dor insuportável no peito….
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Foto: A Costeira, antes da Expressa Sul