Vladimir Safatle: “A estratégia gira em torno de quem é capaz de constituir o ‘povo’ como ator político”

Na Folha

Florestan Fernandes costumava dizer que o Brasil era o país da “contrarrevolução permanente”. Era um modo de dizer que, em nosso país, o poder não é animado por uma forma de projeto modernizador, mesmo que uma modernização conservadora. Ele se organiza através de múltiplas ações de bloqueio das possibilidades de emergência de transformações estruturais populares.

Por exemplo, imaginar que estamos hoje no meio de um projeto de “ajuste econômico” tendo em vista a produção de riqueza socialmente partilhada é delírio que parece só acometer jornalistas econômicos.

O resto da população percebe claramente que se trata, na verdade, de uma política deliberada de submissão da classe trabalhadora a um padrão extremo de vulnerabilidade social que a impeça de realmente existir politicamente.

Mas isto não pode ser feito sem as múltiplas estratégias de silenciamento, que vão das mais discretas às mais violentas. E uma das mais violentas passa pela tentativa de definir, do ponto de vista simbólico, quem é o povo. Pois quem estaria fora do povo perderia a possibilidade de ser escutado, a legitimidade de exigir a realização de suas demandas.

Isto não poderia ser diferente e há uma dimensão constitutiva da política que passa por tal embate. Há uma certa dimensão da política que deve ser entendida como uma luta para definir onde está o povo.

Neste sentido, não é sem interesse lembrar que, no exato momento em que o povo brasileiro encontra-se submetido a um processo brutal de expropriação econômica, os campos de combate da opinião pública e da cultura assistem discussões sobre onde está o povo.

Fenômenos recentes na cultura, o encerramento de exposições artísticas e as tentativas de cancelamentos de simpósios são feitas em nome do povo, em nome da “maioria esmagadora do povo brasileiro”.

Ou seja, a lógica é afirmar que eles são o “povo”, com seus pretensos valores saudáveis, seus hábitos trabalhadores, enquanto nós, especialmente intelectuais e artistas, seríamos a verdadeira elite ociosa que vive de dinheiro público, de benesses de fundações privadas internacionais, propagando comportamentos viciosos e doentios.

Enquanto eles ficam calados diante do sistema neoliberal de blindagem das elites financeiras que drenam as riquezas do país e tomaram de assalto o poder político, procurando chantagear a soberania popular através da ameaça da “desconfiança dos mercados”, eles querem fazer crer que artistas e intelectuais seriam os verdadeiros sanguessugas da riqueza nacional, em clássica reedição dos ataques nazistas contra o “bolchevismo cultural”.

Como se vê, a estratégia gira em torno de quem é capaz de constituir o “povo” como ator político e, com isto, designar quem está fora do “povo” como enunciador.

Por isso, talvez seja o caso de inverter as acusações e lembrar que há sim momentos em que as estratégias populistas são necessárias, mesmo que provisoriamente.

Uma lembrança que pode nos levar a dizer a quem procura simplesmente nos calar: “Não, essas e esses que assim falam não são o Brasil”.

Na verdade, essas e esses habitam outro país, um país inominável e infame que não se incomoda em ser defendido por militares com sanha golpista inconfessa e oligarcas que passam seus cargos públicos de pai para filho. Um país que sonha em acalmar medos apelando à violência de Estado, que delira com o comunismo saindo por todos os poros.

Esse país sem nome não se deixa afetar com as verdadeiras violências sexuais contra mulheres, travestis, homossexuais e crianças; é completamente indiferente à espoliação da classe trabalhadora através de aparatos legais criados para retirar toda capacidade de organização e luta de quem recebe salários miseráveis e humilhações cotidianas.

Um país que nunca se afetou por seus próprios genocídios indígenas e por seu racismo que, como se diz aqui, não existe, já que louvamos a miscigenação.

Esse país, no entanto, nunca foi o Brasil. Contra ele sempre existiu um outro que se chama Brasil e que sempre lutou para emergir.

Para quem não sabe onde está este país, que lembrem dos gritos de revolta de Zumbi, da tenacidade de Pagu, do espírito inquebrantável de Luís Carlos Prestes, dos cabanos, dos que lutaram de todas as formas contra a ditadura militar, dos camponeses mortos em suas lutas por terra, dos estudantes que ocupam escolas contra seu fechamento.

Este país é enorme, mas muitos querem nos fazer acreditar que ele não existe e que é fraco.

Povo no prédio do Congresso, nos protestos de junho de 2013

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

1 × 2 =