Por que precisamos pensar sobre o fascismo?

Por Douglas Rodrigues Barros, no Justificando

Quando o renegado socialista Benito Mussolini encontrou a alcunha para uma prática que nasceu antes da metade do século XIX, com certeza não poderia prever que se desdobraria ao longo do século XX e encontraria expressão no século XXI.

Quando o nacionalismo crescente em todo mundo, a luta contra a ameaça fantasmática do comunismo, agora supostamente travestido de “ideologia de gênero”, e o discurso beligerante a favor da manutenção de relações patriarcais se expressam como tentativa de salvaguardar “os valores”, vicejam no solo social antigos horrores.

É patente que no Brasil, mas também em grande parte do mundo, o nacionalismo, a xenofobia, o racismo e o anticomunismo se ergueram na Santa Cruzada contra o “mal”. Nessas épocas de forte regressão político-social, a “ciência” é elevada a mito e a biologia é posta em primeiro lugar para justificar teorias que foram engolidas pelo soçobrar da ciência como verdade infalível. Nesse processo, a condição humana é reduzida a sua suposta qualidade biológica e a “reflexão” sobre a sociedade se restringe ao darwinismo social no qual vence o mais forte.

Enquanto isso se dá, por outro lado, o pensamento crítico é escrachado e visa-se denunciá-lo como o obrar de gente dissoluta. Um passo à censura, dois passos à queima de livros. O caso de Judith Butler, dos protestos frente a exposições de arte, dos tribunais de exceção que impedem cantores de cantarem, etc., abrem precedentes para se refletir sobre a nova performance legada pelo velho fascismo, algo que a pouco tempo parecia estar encerrado.

Marcuse certa vez concluiu que o fascismo fora derrotado militarmente, no entanto, nunca culturalmente. Também Adorno no seu famoso Educação após Auschwitz buscou alertar sobre a dormência e o estado de latência das políticas fascistas pós-guerra. Enquanto João Bernardo escreveu uma monumental obra intitulada Os labirintos do fascismo com intuito de explanar sobre os sinais implícitos da sobrevivência do fascismo em lugares insuspeitos. Brecht, mais sensível que os três, resumiu tudo com a liberdade de um poeta na conhecida frase: a cadela do fascismo está sempre no cio.

Podemos dizer que o fascismo sobrevivente à Segunda Guerra se amoldou nos vãos institucionais da Sociedade Civil Burguesa e a ele foram fornecidas diversas roupagens.

No entanto, mais do que um objeto inerte, ou algo que muitos preguiçosos gostariam de resolver em poucas palavras, o termo fascismo desde seu surgimento não fora algo unitário. O mais correto seria refletir nos diferentes fascismos e em suas diferentes características regionais que se uniram sobre alguns princípios comuns: anticomunismo, antiliberalismo, nacionalismo, reafirmação de valores tradicionais, etc.

Sabemos que um conceito pode se tornar adjetivo e não se pode esquecer, também, que o caminho historicamente trilhado pelo fascismo foi exatamente o de travar uma luta de esvaziamento dos conceitos. Por isso, a noção do que é o fascismo não se pode reduzir ao escracho pela preguiça de aprofundar o debate e abandonar as posições que nos são confortáveis.

É patente que o fascismo se manifestou a partir de uma profunda crise do capital unida a uma crise político-social que se dispersou por grande parte da Europa. A burocratização da Revolução Russa e o aniquilamento da nascente Revolução Alemã, com o assassinato brutal de Rosa Luxemburgo, marcaram o início de um processo que levou à adoção do fascismo como uma espécie de terceira via salvadora. Processo que se massificaria, sobretudo, após a rápida ascensão de Hitler ao poder.

Uma das definições mais sintéticas do que é fascismo foi formulada por João Bernardo quando concluiu que o fascismo é uma revolta na ordem. Há no desenvolvimento interno do fascismo uma contradição paradoxal que mobiliza os trabalhadores a fim de efetuar uma transformação no capitalismo “necessária” aos duros anos de crise. O historiador Hobsbawn, por outro caminho, chegou quase à mesma conclusão quando sintetizou serem os fascistas revolucionários da contrarrevolução.

Diferentemente da direita – que nem sempre é fascista – a direita fascista alcançou rapidamente “as massas”, mantendo, nas palavras de Hobsbawn, uma mobilização na forma de teatro público[1].

Além disso, usurpou muitas formas de atuação dos trabalhadores e adotou seus símbolos desvirtuando-os de seu sentido histórico. O fascismo tomou as ruas com grandes e espetaculares apresentações que visavam, sobretudo, demonstrar sua força e tinham como fim encontrar novos adeptos por meio de discursos violentos.

É conhecida a célebre frase de Benjamin, segundo o qual: “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”. No entanto, é possível haver contrarrevolução sem revolução? Dada a atual conjuntura mundial, talvez, a resposta seja afirmativa. Assim, refletir sobre os problemas perigosos surgidos no solo político-social com o avanço da extrema-direita global só será eficaz na medida em que se observar que há, pelo menos, cinquenta anos a maior parte da esquerda perdeu de seu horizonte qualquer tentativa de transformação social profunda, adotando o reformismo moderador.

Agora, é justamente contra esse reformismo que a direita radical se ergue com sua retórica violenta contra qualquer medida de cunho social.

Nesse sentido, a atual disputa pela gestão do capital entre esquerda e direita se debate no interior da ordem e, uma vez dentro dela, se apresenta também como uma revolta na ordem independente do lado que se esteja.

Obnubilado os espectros políticos que tornam distintos as práticas alcunhadas de esquerda ou de direita dá-se o perigo. Há tempos a esquerda mundial deixou de pautar o debate aceitando acriticamente as medidas econômicas surgidas ante o colapso da modernização do capital.

No Brasil o resultado disso segundo Chico de Oliveira é o retorno à “acumulação primitiva” sangrenta entregue à voragem financeira. Se “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”[2] e o empenho de criar algo novo simplesmente reverbera os espíritos do passado, os gritos e as roupagens; o beco sem saída encontrado com o fim da modernização retornou os índices de miséria no mundo capitalista àqueles do século XIX.

A conhecida frase de Max Horkheimer, que diz que aqueles que não querem falar criticamente de capitalismo devem se manter em silêncio sobre o fascismo, encontra uma atualidade gritante.

A própria sobrevida do fascismo é inerente a um tipo de organização social engendrada por uma dinâmica que dilui as subjetividades ao bel prazer do funcionamento sistêmico. Possibilitando que o próprio conceito de fascismo se aglutine no entorno de algumas práticas mantidas e perpetradas pela “democracia” vigente.

No entanto, se o fascismo de outrora fora um movimento que encontrou formas de modernizar o capital através da guerra imperialista, a direita radical atual, ante a impossibilidade de modernização, prega a simples extinção dos supérfluos numa mise-en-scène grotesca de capitalismo selvagem.

Uma das lições que o fascismo forneceu é um claro sinal de que a cultura do trabalho obedece uma contradição interna que está sempre em disputa e, não poucas vezes, quando o campo da direita se sobressai, ele se sobrepõe.

Vangloriar o trabalho é algo sempre arriscado. A crítica anticapitalista deve sempre estar presente e a noção de classe não pode ser diluída ao signo da individualidade.

Não se pode esquecer que o pórtico de Auschwitz sustentava a infame frase: “Arbeitmacht frei” (isto é, o trabalho liberta).

Com tudo isso, se por um lado, se deve ter cuidado com o termo, por outro, não se pode evitar a denúncia de práticas atuais que em tudo lembram as práticas fascistas. É imprescindível advertir que o embrião do fascismo está vinculado ao ressentimento de pessoas comuns contra uma sociedade que as esmaga e cuja resposta aos problemas é encontrada num tipo de sociedade anterior – numa espécie de volta às raízes – que cria um inimigo “fenotipicamente” ou ideologicamente diferente.

Contrários à emancipação liberal, os fascistas de outrora detestavam a cultura moderna, sobretudo as artes que os nacional-socialistas alemães alcunhavam de “bolchevismo cultural”.

As semelhanças com os problemas atuais quanto a esse tema se sobressaem a despeito do que queria o autor desse texto. Ainda é preciso dizer, todavia, que no campo das forças políticas, no terreno social, as definições e as posições geralmente são mais dinâmicas do que nossa capacidade de compreensão que sempre chega atrasada.

Com isso em vista, não é à toa que a divisão eleitoreira entre Bolsonaro e Lula pode indicar algo mais complexo do que invariavelmente julgamos. Uma das hipóteses acerca dessa inusitada aproximação, supostamente distantes no espectro político-ideológico, pode apontar que uma oposição contra o fascismo, criada a partir do fortalecimento das instituições estatais, ao invés de deter o perigo fascista, o torna viável.

A questão é: como pensar tais problemas à sombra dos atuais processos regressivos de movimentos de extrema direita no Brasil – movimentos estes que usam uma retórica porcamente liberal, mas sua prática é reativa e extremamente conservadora? Em todo caso, de algo temos certeza; estamos sobre forte ofensiva da extrema-direita não só no Brasil como no mundo. Ao se esgotarem a capacidade de modernização e desenvolvimento, as formas políticas representativas da democracia atual entraram em colapso.

Se as práticas fascistas mais espetaculares são extremamente vendáveis, sempre estampam os jornalões e impõe o debate público atualmente, não se pode esquecer que não é de hoje que vivemos num país extremamente violento. Os números oficiais indicam que todos os dias morrem duas pessoas por erros policiais. A cada nove minutos uma pessoa é violentamente assassinada no Brasil. Segundo o Anuário de Segurança Pública 2015, o Brasil registrou mais vítimas de assassinatos em 5 anos do que a guerra na Síria no mesmo período. Treze mulheres são violentamente assassinadas por dia e em 2014 47.646 mulheres foram estupradas. Qualquer estudo mínimo sobre as estatísticas revela os horrores instaurados e provenientes de um Estado radicalmente desigual e conservador.

Da mesma forma, não é de hoje que a carnificina diária dos programas de maior audiência instaura um sentimento de terror que se orienta na criação de um inimigo comum geralmente identificado com o campo progressista. Programas estes que, sob a presunção da “liberdade de expressão”, que oculta o monopólio midiático, expõe corpos mutilados e lucram com a miséria em sua dose diária fazendo proselitismo contra qualquer tipo de “direitos humanos”.

Não é de hoje que indígenas são assassinados e comunidades inteiras desaparecem sem o mínimo clamor público. É tudo uma questão de prioridades.

Por isso, para grande parte da população a palavra fascismo não tem um significado mais assustador do que a frase “ocupação pacífica da PM em seus bairros”. A grande questão seria que, agora, o ódio tornou-se também performático e saiu do bueiro. Assim, qualquer luta verdadeiramente séria só será realmente efetiva quando se combater não só esses grupos, mas o modo de sociabilidade que os possibilitou e os mantém.

Quando Marx escreveu a conhecidíssima frase que a história aparece a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, refletia sobre Napoleão Sobrinho. Este último como uma caricatura do que foi grande outrora. Também tais movimentos são caricaturais. Mas, tal como Napoleão Sobrinho, conduzem tremendas massas.

Já sabemos onde isso levou no passado, resta saber se ficaremos apenas observando e, com isso, sendo a farsa de nós mesmos. Talvez, por isso seja importante refletir sobre o fascismo, porque pensar sobre o fascismo implica sempre pensar em nossos próprios erros!

Douglas Rodrigues Barros é escritor e doutorando em filosofia.

[1] Hobsbawn, E. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

[2]Paráfrase de Marx.

 

 

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