Coisa de preto todo mundo tem: classe informa raça, raça informa classe

Por Rayane Andrade, no Justificando

Coisa de preto todo mundo tem. Essa frase inicia a música “coisa de preto”, homônimo ao título ao primeiro álbum da cantora potiguar Khrystal, lançado em 2007. Os recentes acontecimentos envolvendo o jornalista WIlliam Waack e a circulação de sua declaração racista feita em 2016, me remeteram diretamente a essa memória sonora.

A polêmica envolvendo Waack – que durante uma entrevista com Paulo Sotero, em frente ao Wilson Center, incomodou-se com uma buzina automotiva próxima a locação e bradou: “é coisa de preto!” – rapidamente tomou a pauta das redes sociais. A repercussão dura foi respondida pela corporação Globo, em nota oficial, com o imediato afastamento do âncora da atração Jornal da Globo.

Duas coisas me chamaram particularmente a atenção em todo o feito. A primeira, a ressignificação que a expressão tomou nas redes e, a segunda, a leitura feita a partir da substituição de Waack por Renata Lo Prete.

Esses dois aspectos me reportam ao que há de mais central no debate sobre racismo, seja em qualquer acepção utilizada, a sua forma racionalizada de organizar a sociedade. Seguindo o pensamento de Sílvio Almeida, entendo que o sistema de opressão baseado na raça é uma componente fundamental da organização do Estado capitalista, e por conseguinte de suas instituições.

A frase mal-dita de Waack não surpreende. Que podemos esperar de um dos principais comunicadores da corporação midiática que constitui as organizações Globo? Empresa esta que contribui para o abissal cenário de representação racial na mídia que o Brasil ostenta.

Ao ligar a telinha, que ainda é o meio comunicativo de maior alcance na classe trabalhadora brasileira – que não por acaso é negra – qualquer estrangeiro se sentirá em um país de maioria racial branca. O que é uma verdade.

São pessoas brancas que pensam a televisão, são pessoas brancas que entrevistam figurões da política internacional nos Estados Unidos.

A coisa de preto de Waack é retroalimentada pela lógica que ele enquanto sujeito de insere. E aqui entra um aspecto fundamental da minha crítica. O racismo institucional, inaugurado com Carmichael e  Hamilton, tem o enorme êxito em apontar que as práticas discriminatórias ocorrem de maneira ativa e indutiva, sem que haja a necessidade de se ter um único interlocutor.

Por que motivo essa informação é crucial?

Waack, a quem não se permite qualquer tipo de defesa por sua condição de imersão na branquitude, poderia ser certamente qualquer outro – ou outra – jornalista. O tamanho da repercussão foi proporcional ao seu alcance enquanto figura pública, consolidada no cenário midiático empresarial brasileiro.

Não há espaço de dúvida de que o seu ato foi, será e continuará sendo uma violência permanente a memória histórica do povo negro. E de tal forma, o ato deve ser responsabilizado de maneira adequada.

Contudo, me preocupa ver a reação extremamente positiva que alguns companheiros e companheiras de militância negra vem dando à nota da corporação Globo[1]. O afastamento é, em minha visão, condição para uma tentativa de reparação.

Contudo, o pecado do texto é afirmar ser visceralmente contra o racismo, de que há que se “esclarecer” o que foi dito, de que não está “claro” pelo áudio de que as declarações foram de cunho racista.

Classe informa raça, raça informa classe. Assim como o gênero, essas categorias são fundamentais para compreender que não há como uma empresa, do porte das organizações Globo, se eximir de maneira tão simples do problema racial que é a marca indelével de nossa nação.

Enquanto aparelho ideológico, o “coisa de preto” é alimentado pelo que a rede transmite há mais de 40 anos para um país de maioria negra.

Como nós, mulheres negras, somos retratadas na grande mídia empresarial? Quantas Glórias Marias existem no jornalismo daquela emissora? Por quanto racismo Maju deverá enfrentar ao apresentar a previsão do tempo?

É aqui que insiro o que há de novidade. A reflexão sobre a expressão, na oportunidade de novembro – mês da consciência negra – revelou através das redes as inúmeras personagens de nosso povo esquecidos pela branquitude.

Conceição Evaristo, Maria Firmino dos Reis, Luiz Gama, Carolina Maria de Jesus, Aqualtune… Mas, como de costume nesses tempos líquidos de redes, a hastag #ÉcoisaDebranco surge para nos lembrar que a disputa com a branquitude está longe de achar seu fim.

Essa ressignificação me lembrou imediatamente o segundo trecho da música de Khrystal: “Coisa de preto é um passado de sofrença/ É um futuro de esperança”. A grande sacada da mídia interativa, se nos esquecermos por um segundo da manipulação que as redes nos impõem, é a capacidade de pautar o debate e construir a oportunidade de contradiscursos.

Infelizmente o debate que o caso Waack gera não alcança as milhares de Tevês espalhadas nas zonas periféricas desse país. Mas, para a classe trabalhadora ,que agora tem mais acesso às redes, a possibilidade de que se aproxime o debate travado aqui, para aquela trincheira – não só é real – como é uma grande oportunidade de resistência.

Quanto à substituição do posto ausente por Renata Lo Prete, outro debate ganha espaço. Segundo notícia veiculada pelo portal UOL, a jornalista seria a responsável pela queda de audiência do telejornal que ancora na versão paga do canal. As informações dão conta que os telespectadores a identificam como uma “ótima comentarista política” mas sem “carisma”.

Enquanto sujeita que me proponho a investigar o feminismo, é impossível passar incólume a afirmações de tal sorte. Como isso é congruente? A única explicação para a queda de audiência de uma atração pode ser atribuída a uma única sujeita?

Por óbvio, não tenho acesso as pesquisas internas ou possuo conhecimento em técnicas comunicacionais. Mas, o fato dessas atribuições serem feitas a uma sujeita mulher, não tenho como não identificar que o perfil machista – também recorrente no mesmo espaço midiático – se mostra.

Aqui a mesma reflexão se aplica. Apenas substituir Waack por uma jornalista resolve? Onde estão os jornalistas negros e negras da emissora? Atrás das câmeras? As opressões estão diretamente articuladas. Angela Davis, em seu título clássico, sintetiza – Mulher, raça e classe. A abordagem consubstancial é fundamental para ler todo o quadro.

Coisa de preto, todo mundo tem. Alguns, possuem privilégios hoje às custas da escravização de homens e mulheres negras, outras pessoas amargam as estatísticas e a negação renitente de direitos, inclusive a sua própria identidade.

A nós, resistência, ao capitalismo, racismo e machismo, a derrota.

“Coisa de preto é o mundo inteiro

O tempo todo no chamego

O pensamento e o tempero

O cheiro, o lance no cabelo

O balanço e o canto triste

Dos porões e um negreiro” 

Essa frase, é o início de música homônima que dá título ao primeiro álbum da cantora potiguar Krystal.

*Rayane Andrade é advogada e mestranda em Direito Constitucional pela UFRN. Pesquisa sobre raça, gênero e marxismo e suas relações com a democracia e participação política das mulheres.

[1] NOTA DE AFASTAMENTO DE WILLIAM WAACK:

“A Globo é visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações. Nenhuma circunstância pode servir de atenuante. Diante disso, a Globo está afastando o apresentador William Waack de suas funções em decorrência do vídeo que passou hoje a circular na internet, até que a situação esteja esclarecida.

Nele, minutos antes de ir ao ar num vivo durante a cobertura das eleições americanas do ano passado, alguém na rua dispara a buzina e, Waack, contrariado, faz comentários, ao que tudo indica, de cunho racista. Waack afirma não se lembrar do que disse, já que o áudio não tem clareza, mas pede sinceras desculpas àqueles que se sentiram ultrajados pela situação.

William Waack é um dos mais respeitados profissionais brasileiros, com um extenso currículo de serviços ao jornalismo. A Globo, a partir de amanhã, iniciará conversas com ele para decidir como se desenrolarão os próximos passos”

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

17 − 3 =