A entrega do Brasil avança: INPI

Antônio José da Silva, no Correio da Cidadania

Você sabia que o Ins­ti­tuto Na­ci­onal da Pro­pri­e­dade In­dus­trial (INPI), órgão do go­verno fe­deral que con­cede pa­tentes de in­venção e re­gistra marcas co­mer­ciais, também foi o res­pon­sável, du­rante dé­cadas, pelos pro­ce­di­mentos de re­gistro pú­blico de con­tratos que li­cen­ciam ou ali­enam esses di­reitos de pro­pri­e­dade in­dus­trial e fis­ca­lizam a trans­fe­rência de tec­no­logia? Po­de­ríamos dizer, in­clu­sive, que o INPI tem uma longa tra­dição e um papel ex­tre­ma­mente re­le­vante de de­fesa do de­sen­vol­vi­mento econô­mico e in­dus­trial no Brasil através destas prá­ticas (1).

To­davia, a partir da aber­tura econô­mica que teve início no go­verno Collor, as ati­vi­dades re­gu­la­tó­rias e fis­ca­li­za­tó­rias do INPI foram gra­du­al­mente sendo en­fra­que­cidas e es­va­zi­adas, em sin­tonia com a ló­gica de mi­ni­mi­zação da ação es­tatal. Até que agora, em 2017, cerca de um ano após a as­censão de Temer ao poder, o INPI foi final e la­men­ta­vel­mente des­ti­tuído de toda e qual­quer par­ti­ci­pação subs­tan­tiva no mer­cado de tec­no­logia.

Para o ci­dadão comum, que não está en­vol­vido na com­plexa dis­cussão sobre tec­no­logia e pro­pri­e­dade in­te­lec­tual o as­sunto pode pa­recer bi­zan­tino. Não é. Um breve res­gate his­tó­rico do papel do INPI na eco­nomia bra­si­leira re­ve­lará a im­por­tância es­tra­té­gica desse apa­relho do Es­tado como ins­tru­mento de de­fesa da eco­nomia na­ci­onal frente aos in­te­resses econô­micos das grandes cor­po­ra­ções es­tran­geiras.

O INPI foi criado em 1970 (Lei nº 5.648/70) com a missão ini­cial, des­crita da se­guinte forma (Ar­tigo 2º):

“O Ins­ti­tuto tem por fi­na­li­dade prin­cipal exe­cutar, no âm­bito na­ci­onal, as normas que re­gulam a pro­pri­e­dade in­dus­trial tendo em vista a sua função so­cial, econô­mica, ju­rí­dica e téc­nica”. 

“Pa­rá­grafo único. Sem pre­juízo de ou­tras atri­bui­ções que lhe forem co­me­tidas, o Ins­ti­tuto ado­tará, com vistas ao de­sen­vol­vi­mento econô­mico do país, me­didas ca­pazes de ace­lerar e re­gular a trans­fe­rência de tec­no­logia e de es­ta­be­lecer me­lhores con­di­ções de ne­go­ci­ação e uti­li­zação de pa­tentes, ca­bendo-lhe ainda pro­nun­ciar-se quanto à con­ve­ni­ência da as­si­na­tura, ra­ti­fi­cação ou de­núncia de con­ven­ções, tra­tados, con­vênio e acordos sobre pro­pri­e­dade in­dus­trial”.

Con­tudo, como dito mais cedo, esta missão foi re­vista e re­du­zida no con­texto de des­re­gu­la­men­tação e li­be­ra­li­zação que marcou os anos 1990, como se ob­serva na nova re­dação do Art. 2º pre­sente na Lei nº 9.279 de 1996 (2):

“O INPI tem por fi­na­li­dade prin­cipal exe­cutar, no âm­bito na­ci­onal, as normas que re­gulam a pro­pri­e­dade in­dus­trial, tendo em vista a sua função so­cial, econô­mica, ju­rí­dica e téc­nica, bem como pro­nun­ciar-se quanto à con­ve­ni­ência de as­si­na­tura, ra­ti­fi­cação e de­núncia de con­ven­ções, tra­tados, con­vê­nios e acordos sobre pro­pri­e­dade in­dus­trial”.  

Desse modo, resta claro como o INPI ab­dicou da função de ori­entar e, em al­guns casos pre­vistos na po­lí­tica in­dus­trial ofi­cial, como, por exemplo, no pe­ríodo co­nhe­cido como o de subs­ti­tuição de im­por­ta­ções, es­co­lher a tec­no­logia con­si­de­rada con­ve­ni­ente e re­al­mente im­pac­tante para o de­sen­vol­vi­mento econô­mico do país. Muito em­bora tal res­trição tenha re­pre­sen­tado uma mu­dança im­por­tante para a for­mação da in­fra­es­tru­tura econô­mica na­ci­onal (um dos im­pactos mais sen­tidos foi a ex­pres­siva ex­pansão das re­messas de royal­ties ao ex­te­rior), o INPI ainda man­teve certas con­di­ções de fo­mento do mer­cado in­terno, dando ori­en­ta­ções mí­nimas para a re­a­li­zação de con­tratos, cons­tran­gendo pos­sí­veis abusos e ques­ti­o­nando ações res­tri­tivas ao pleno de­sen­vol­vi­mento das ati­vi­dades pro­du­tivas e da ca­pa­ci­dade de ino­vação das em­presas na­ci­o­nais.

Mesmo de­pois de tantas “fle­xi­bi­li­za­ções”, du­rante muitos anos os di­versos go­vernos que se su­ce­deram à en­trada em vigor da nova le­gis­lação, e também o pró­prio Ins­ti­tuto, con­ti­nu­aram a so­frer enorme pressão de or­ga­ni­za­ções em­pre­sa­riais e seus es­cri­tó­rios de ad­vo­cacia para que o mer­cado de tec­no­logia fosse to­tal­mente li­be­ra­li­zado. Desta forma, as grandes em­presas con­tra­tantes, na­ci­o­nais e es­tran­geiras, po­de­riam gozar de ab­so­luta li­ber­dade para es­ta­be­lecer os de­veres e as obri­ga­ções que bem en­ten­dessem entre si, à re­velia da po­sição menos fa­vo­rável dos agentes re­si­dentes (se­gui­dores tec­no­ló­gicos com li­mi­tada ca­pa­ci­dade de de­sen­volver tec­no­logia au­to­no­ma­mente), ig­no­rando qual­quer con­tra­par­tida à so­ci­e­dade e ao seu in­te­resse de obter a má­xima van­tagem e ca­pa­ci­tação por meio das tec­no­lo­gias im­por­tadas dos países cen­trais. Tal pressão passa hoje por uma pe­ri­gosa mu­dança de qua­li­dade.

Após en­frentar a re­sis­tência so­li­tária da área téc­nica do INPI de­di­cada ao tra­balho, essas pres­sões fi­nal­mente lo­graram êxito, e com o su­porte do go­verno de Mi­chel Temer con­se­guiram impor uma agenda con­cen­tra­dora de ri­queza, a partir da ela­bo­ração e im­ple­men­tação da Ins­trução Nor­ma­tiva INPI/PR Nº 70 em 1º de julho de 2017, que de­ter­minou que a Co­or­de­nação Geral de Con­tratos de Trans­fe­rência de Tec­no­logia (CGTEC), an­tiga Di­re­toria de Con­tratos, In­di­ca­ções Ge­o­grá­ficas e Re­gis­tros (DICIG) do INPI, dei­xasse de ana­lisar os con­tratos de ma­neira in­te­gral.

Desse modo, foi afas­tada a res­pon­sa­bi­li­dade de ve­ri­ficar a con­for­mi­dade dos con­tratos à le­gis­lação fiscal e à le­gis­lação de re­messas de royal­ties (que de­finem, con­jun­ta­mente, li­mites da de­dução do im­posto de renda, prazos res­tri­tivos à ma­nu­tenção do vín­culo con­tra­tual e con­di­ções a serem ob­ser­vadas entre em­presas per­ten­centes ao mesmo grupo econô­mico).

Como re­sul­tado disto, o Cer­ti­fi­cado de Aver­bação, do­cu­mento final ex­pe­dido pelo INPI que dá ao de­tentor a au­to­ri­zação para envio de pa­ga­mentos ao ex­te­rior e ainda o ha­bi­lita a re­ceber o be­ne­fício de re­dução na alí­quota de im­posto de renda (con­tra­par­tida ofe­re­cida por razão das ex­ter­na­li­dades po­si­tivas da en­trada de tec­no­logia no país), não mais re­flete a aná­lise cri­te­riosa das cláu­sulas de “prazo” e “valor” e efi­cácia da trans­fe­rência, pas­sando a con­si­derar apenas as in­for­ma­ções de­cla­radas pelas pró­prias em­presas nos con­tratos. A ava­li­ação dessa tra­je­tória his­tó­rica re­vela a enorme gra­vi­dade desta sim­pli­fi­cação para o fu­turo do Brasil.

É im­por­tante des­tacar outra di­mensão de ile­gi­ti­mi­dade dessa me­dida go­ver­na­mental drás­tica. Além de esta fa­vo­recer grupos de in­te­resse pri­vado, a nova nor­ma­tiva não foi acom­pa­nhada de mu­dança na le­gis­lação, ou seja, ca­rece até mesmo de res­paldo ju­rí­dico. A pro­posta de al­te­ração do papel do INPI no âm­bito da aná­lise dos con­tratos de trans­fe­rência de tec­no­logia, com a jus­ti­fi­ca­tiva de que se faz ne­ces­sário apenas ga­rantir efeitos pe­rante ter­ceiros, de­veria não só estar es­tri­ta­mente con­di­ci­o­nada a atos do Poder Exe­cu­tivo e do Poder Le­gis­la­tivo, no sen­tido de al­terar, de fato, as dis­po­si­ções le­gais vi­gentes re­la­tivas ao papel do INPI (3), mas também res­peitar o in­te­resse de toda a so­ci­e­dade, pri­mor­di­al­mente afe­tada pelas mu­danças.

Di­ante da ine­gável re­le­vância pú­blica do as­sunto e do de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico e econô­mico do Brasil, a fim de que o INPI possa de­sen­volver suas ati­vi­dades re­gu­la­tó­rias e fis­ca­li­za­tó­rias em ple­ni­tude, em es­trita con­so­nância com suas atri­bui­ções cons­ti­tu­ci­onal e in­fra­cons­ti­tu­ci­onal, devem lhe ser as­se­gu­rados me­ca­nismos efe­tivos de ação. Tais me­ca­nismos devem per­mitir ao INPI pro­ceder, ex ante, a aná­lise subs­tan­tiva da do­cu­men­tação que lhe é apre­sen­tada, à luz de todo ar­ca­bouço legal per­ti­nente, isto é, a le­gis­lação fiscal, de re­messa de ca­pital e de di­reito de pro­pri­e­dade in­dus­trial em vigor, de modo a ga­rantir a in­te­gri­dade do sis­tema e res­guardar as re­servas cam­biais na­ci­o­nais de pos­sí­veis des­fal­ques ir­re­gu­lares, bem como zelar pelo equi­lí­brio ma­cro­e­conô­mico e o mer­cado in­terno que cons­ti­tuem pa­trimônio do país. Não re­co­nhecer a com­pe­tência his­tó­rica e es­pe­cí­fica do INPI para levar a efeito ações no âm­bito da ati­vi­dade in­dus­trial in­terna, a exemplo de in­ter­ven­ções con­tra­tuais na ór­bita tec­no­ló­gica, de­sa­tende a regra in­serta no art. 240 da Lei 9.279/96, por inob­ser­vância do seu nú­cleo nor­ma­tivo (4).

Hoje, o país e o mundo se en­con­tram em um con­texto pre­o­cu­pante; vi­vemos uma crise econô­mica sem pre­ce­dentes, e um ver­da­deiro es­tado de ex­ceção, em que uma das con­sequên­cias mais cruéis é o des­monte total da má­quina pú­blica vol­tada ao in­te­resse da so­ci­e­dade en­quanto to­ta­li­dade. A cada dia mais di­reitos in­di­vi­duais e co­le­tivos são so­bre­pu­jados pela ca­ma­rilha que go­verna para poucos sem o menor pudor. O re­flexo disto nas ins­ti­tui­ções que pro­movem o in­te­resse pú­blico é o seu cres­cente su­ca­te­a­mento ma­te­rial e ins­ti­tu­ci­onal.

Notas:

1) A atu­ação his­tó­rica do INPI na aver­bação dos con­tratos de li­cen­ci­a­mento de di­reitos de pro­pri­e­dade in­dus­trial e re­gistro dos con­tratos de for­ne­ci­mento de tec­no­logia e fran­quia ob­serva, pri­ma­ri­a­mente, a le­gis­lação do di­reito de pro­pri­e­dade in­dus­trial (Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996), e, aces­so­ri­a­mente, a le­gis­lação cam­bial (Lei nº 4.131 de 03 de se­tembro de 1962, De­creto nº 55.762 de 17 de fe­ve­reiro de 1965) e fiscal (Lei nº 3.470 de 28 de no­vembro de 1958, Lei nº 4.506 de 30 de no­vembro de 1964, Lei nº 8.383 de 30 de de­zembro de 1991, Por­taria nº 436 de 30 de de­zembro de 1958 do Mi­nis­tério da Fa­zenda e de­mais por­ta­rias deste Mi­nis­tério, De­creto nº 3.000 de 26 de março de 1999 e Ins­trução Nor­ma­tiva nº 1.700 de 14 de março de 2017) para emissão de suas de­ci­sões.

2) O Brasil, assim como di­versos ou­tros países do mundo, pro­moveu uma re­forma na le­gis­lação na­ci­onal de pa­tentes por razão do fim da Ro­dada Uru­guai do GATT, que deu origem a ins­ti­tui­ções como a OMC, sob ampla in­fluência do Con­senso de Washington e das po­lí­ticas ne­o­li­be­rais de des­re­gu­la­men­tação dos fluxos de ca­pi­tais e re­dução das in­ter­ven­ções es­ta­tais nas eco­no­mias.

3) A al­te­ração in­tro­du­zida pelo ar­tigo 240 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, re­ti­rando o Pa­rá­grafo Único do ar­tigo 2º da Lei nº 5.648 de 11 de de­zembro de 1970, que criou o INPI, não re­vogou as com­pe­tên­cias de­le­gadas ao INPI pelo Banco Cen­tral do Brasil, con­forme Re­so­lução BACEN nº 3.844/2010 e pela Se­cre­taria da Re­ceita Fe­deral, con­forme Re­gu­la­mento do Im­posto de Renda, De­creto nº 3.000 de 26 de março de 1999 e Ins­trução Nor­ma­tiva nº 1.700 de 14 de março de 2017. No en­tanto, tra­mita, neste mo­mento, no âm­bito do Con­gresso Na­ci­onal, pro­posta que tem por fi­na­li­dade re­tirar a aver­bação da Lei nº 9.279, como é o caso do Pro­jeto de Lei nº 7.599/2017.

4) A de­cisão do Su­premo Tri­bunal de Jus­tiça no Acórdão do Re­curso Es­pe­cial nº 1.200.528 – RJ (2010/0122089-1) de 16/02/2017, re­la­tado pelo Mi­nistro Fran­cisco Falcão re­força tal en­ten­di­mento, ao es­ta­be­lecer que ao se ou­torgar com­pe­tência a de­ter­mi­nado órgão (no caso o Ins­ti­tuto Na­ci­onal da Pro­pri­e­dade In­dus­trial) faz-se ne­ces­sário equipá-lo com ins­tru­mentos efe­tivos de ação re­gu­la­tória.

An­tonio José da Silva é pseudô­nimo. A iden­ti­dade dos au­tores, que tra­ba­lham no INPI, não é re­ve­lada por pre­caução a re­ta­li­a­ções in­ternas.

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