Caso o Rio sobreviva, o próximo governo terá a missão de refundar o Estado, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

O Tribunal Regional Federal da 2a Região determinou que o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Jorge Picciani, junto com os deputados estaduais Paulo Melo e Edson Albertassi, retornem à prisão. Após votação da Alerj, devolvendo a liberdade aos três colegas, um carro da instituição foi buscá-los na cadeia sem que o tribunal tivesse sido informado oficialmente da decisão.

Eles haviam sido presos por ordem do TRF, acusados de lavagem de dinheiro, corrupção passiva e organização criminosa – curiosamente os mesmos crimes pelos quais Michel Temer foi acusado pela Procuradoria-Geral da República.

Picciani é um dos investigados no âmbito da operação Cadeia Velha, desdobramento da Lava Jato que analisa o favorecimento de empresas de ônibus por deputados do Rio. A propósito, isso vem a sanar uma injustiça histórica: fala-se que fazendeiros, donos de empresas de construção civil e banqueiros mandam no Brasil, mas esquecemos sempre de mencionar os proprietários de empresas de ônibus. Pelo menos, em São Paulo e no Rio, eles são reis.

O Rio vive um momento de esgarçamento institucional e de cinismo. Nessa hora, a única solução possível é através da política, arena para o enfrentamento dos conflitos. Abandona-la ou procurar outro caminho é equivalente a desistir da vida em sociedade. E é desesperadora a situação de esgarçamento institucional e de Casa da Mãe Joana no Estado:

1) Luiz Fernando Pezão perdeu, há muito tempo, a credibilidade e a legitimidade para governar o Rio, que está em situação de falência após a orgia com recursos públicos promovida pelos governos de seu partido, o PMDB. Os cofres estão vazios e, nesse contexto, não tem sido possível garantir a segurança da população e a vida dos moradores de comunidades pobres. Pois, por um lado, a criminalidade aumentou durante a crise e não há recursos para combatê-la, mas, por outro, o pouco dinheiro na praça diminuiu o montante a ser repartido entre bandidos e corruptos. Não há uma guerra no Rio, mas um massacre de populações vulneráveis e de policiais honestos. E quando falo em orgia, não trato apenas dos desvios, mas, principalmente, das desonerações garantidas ao setor empresarial. Isso sem falar nos gastos para trazer megaeventos à cidade, que deixaram algumas pessoas mais ricas, mas não se reverteu em melhorias significativas à população mais pobre.

2) A Assembleia Legislativa carioca é uma versão miniatura da Câmara dos Deputados – ou seja, um mercado a céu aberto, onde os votos não representam a vontade da população, mas da maioria dos próprios parlamentares e de seus patrocinadores. Apesar dos protestos nas ruas, enfiaram goela abaixo um programa de cortes em que servidores públicos de baixos salários (professores, policiais, enfermeiros) foram especialmente chicoteados. Agora, soltam seus comparsas, quer dizer, colegas, enfrentando decisão judicial. Primeiro, porque sabem que pouco ou nada vai acontecer com eles. Segundo, sentem-se empoderados pelo Supremo Tribunal Federal que decidiu que o afastamento de um senador (no caso, o imortal Aécio Neves), por parte da corte, deve ser confirmado pelo próprio Senado Federal. Membros do STF, ao reclamarem agora, dizendo que o caso valia apenas para o Congresso, apenas faz rir políticos de todo o país.

3) Soaria como piada se o governo federal tentasse qualquer forma de intervenção, afinal ela seria feita por uma pessoa que conta com 3% de aprovação, segundo pesquisa Ibope de setembro. Se Pezão não tem legitimidade para governar o Estado, Michel Temer não se sai melhor para administrar o país. Diante das denúncias de corrupção que abundam contra seu grupo político, ele se mantém de pé graças à relação mercantil que estabeleceu com o Congresso Nacional e pelo apoio do poder econômico, que quer ver aprovada sua pauta de redução do Estado e manutenção de privilégios. A crise do Rio, portanto, não pode ser resolvida com a ajuda de Temer, que representa a maior crise de democracia desde a ditadura.

4) Sempre tem um maluco que, nessas horas, propõe o ”Combo Doideira”: intervenção (vulgo, golpe) militar com a convocação de eleições no curto prazo, com os militares decidindo quem pode e quem não pode concorrer. Querem um gostinho do que significa ”intervenção militar”? O Congresso aprovou e Temer sancionou a lei 13.491/2017 que transfere à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões, como a que está ocorrendo no Rio de Janeiro. Ou seja, pelo texto aprovado, se um militar matar um civil durante uma operação em uma comunidade pobre será julgado pela Justiça Militar e não mais pelo Tribunal do Júri, ou seja, pela sociedade, como o resto de nós. Não tem apenas cara, mas também rabo e focinho de impunidade. ”Mas militares são isentos!” Ahã, senta lá, Cláudia.

5) A Justiça do Rio também ajuda a deixar tudo como sempre foi, mantendo os pobres em seu lugar. O Tribunal de Justiça negou habeas corpus para Rafael Braga. Preso durante as manifestações de junho de 2013 pela acusação de portar artefato explosivo (ele carregava água sanitária e Pinho Sol), foi condenado e depois liberado para cumprir prisão domiciliar. Mas foi preso novamente, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas. Segundo a polícia, ele carregava 0,6 g de maconha e 9,3 de cocaína e um rojão – o que ele nega, afirmando que o flagrante foi forjado. Mesmo assim, com base na palavra dos policiais e sem outras evidências, foi condenado a 11 anos e três meses de prisão. Por ter contraído tuberculose na cadeia e estar bastante debilitado, teve – finalmente – seu pedido de habeas corpus atendido pelo Superior Tribunal de Justiça e vai cumprir a pena em casa. Detalhe desnecessário: Rafael é jovem, negro e morador de uma comunidade pobre.

6) E ainda por cima tem o prefeito Marcelo Crivella, que segue em sua guerra santa para entregar o Rio a Jesus – mesmo que este tenha informado que prefere resolver o conflito Israel-Palestina. E, no meio do seu caminho de fé, empodera malucos que vão cometendo atos de barbárie contra adeptos de religiões de matriz africana.

O silêncio nas ruas é quebrado aqui e ali por manifestações ligadas a movimentos sociais, coletivos e sindicatos. Isso não significa que a insatisfação não esteja no ar, mas que há uma sensação de desalento generalizado. A falta de grandes multidões nas ruas do Rio é um sinal que diz mais sobre o sentimento geral do país do que sobre a capacidade de engajamento de movimentos contrários ao atual governo.

Mesmo que contasse com o apoio do poder econômico, que financiou e divulgou manifestações pró-impeachment, a rua não atrairia tanta gente agora. E não apenas porque os momentos catárticos das Jornadas de Junhos de 2013 e dos atos pelo impeachment de 2015 e 2016 passaram e agora a população, cansada, de apoiar ou criticar, se retraiu. Mas porque, para muita gente, simplesmente não vale mais a pena.

A manutenção forçada de dois governos, Pezão e Temer, cuja legitimidade, honestidade e competência são questionados diuturnamente seria suficiente para levar a massa às ruas. Contudo, a sensação é de que boa parte da população, aturdida, está deixando de acreditar na coletividade e buscando construir sua vida tirando o Estado da equação. O que deixa o Estado livre para continuar servindo à velha política e a uma parte do poder econômico. É cada um por si e o Sobrenatural por todos na economia e muita fé para não morrer nas mãos do tráfico, das milícias e da polícia, quando a questão é segurança.

Como já disse aqui, quando se cozinha a insatisfação em desalento, impotência, desgosto e cinismo, isso não estoura em manifestações com milhões nas ruas, mas gera uma bomba-relógio que vai explodir invariavelmente em algum momento, ferindo de morte a democracia.

O Rio precisaria de uma intervenção imediata chamada eleições gerais, para governador e deputados estaduais. Com muito debate público para que seja apresentado um projeto para o Estado sair da lama e a esperança ser reconstruída. Mas isso, por enquanto, está no campo da ficção científica.

Caídas em descrença, instituições levam décadas para se reerguer – quando conseguem. No meio desse vácuo, vai surgindo a oportunidade para semoventes que se consideram acima das leis se apresentarem como a saída para os nossos problemas. Pessoas que prometem ser uma luz na escuridão, mas nos guiarão direto às trevas.

Nuvens muito escuras despontam acima da linha do horizonte no litoral carioca. Parece que vem tempestade. E ela será longa.

Reprodução/The Economist

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