Em tempos de padres e pastores pop-star, uma religião fundada por negros e índios, sem estruturas de poder, não pode ser tolerada — pois mostra a todo instante que é possível viver o sagrado de outro modo
Por Fran Alavina, no Outras Palavras
Em tempos não de simples intolerância, mas de perseguição escancarada e fanática, já é por si só um ato político fazer memória de uma das religiões vítimas da perseguição cristã destes dias: a Umbanda. No último dia 15 de novembro, a Umbanda entrou nos preparativos para a comemoração de seus 110 anos. Fundada em 1908, no Rio de Janeiro, esta forma de vivência do sagrado traz em seu bojo dois gestos de caráter eminentemente político: a resistência e a oposição a toda forma de preconceito. Estes gestos políticos que marcaram a fundação desta religiosidade tipicamente brasileira não se perderam, nem se enfraqueceram, ao contrário, se caracterizam até hoje como uma de suas mais fortes determinações.
Com efeito, o ato fundacional da Umbanda não poderia se furtar de sua determinação política e do reconhecimento de uma dívida histórico-cultural. Diferentemente da história de outras denominações religiosas, no caso umbandista, o teológico e o político não se separam, tampouco o político é sublimado no teológico para se apresentar como uma pura questão de fé, como se nunca possuísse nenhuma determinação material. As determinações materiais da fé dão as diretrizes daquilo que depois ganhará realidade em um corpo dogmático de afirmações e prescrições práticas.
De fato, importa para a fundamentação de uma crença religiosa e estabelecimento de um novo sentido no campo do simbólico não apenas as discussões teológicas, mas também seu caráter ético-político. Isto é reconhecido até mesmo pelos mais conservadores das diversas versões do cristianismo, que quando postos fora de um debate estritamente teológico, utilizam a expressão vaga e imprecisa, por isso usada nos mais diferentes contextos: “valores cristãos da tradição ocidental”. Tão indeterminada e carente de um conteúdo seguro que se poderá ouvi-la da boca de um praticante da teologia da libertação, quanto de um membro do MBL. O que se quer dizer quando se fala destes valores cristãos da civilização ocidental?
À luz da própria história das mais diversas versões do cristianismo, esta expressão é no mínimo paradoxal, pois o que se enaltece no discurso torna-se farelo diante das práticas mais contraditórias com a letra e o espírito cristão. Práticas que retornam de tempos em tempos, como a nos dar provas de que o cristianismo nunca realizou um exame sério de suas contradições e das perversidades que pode engendrar, daí recair ciclicamente nestas, sobretudo quando pensa estar acuado, ou em crise interna de identidade.
Ora, o gesto primeiro que deu a origem a Umbanda tem sua gênese na não aceitação de um preconceito racial, e não simplesmente em uma questão religiosa. Saída de dentro do kardecismo, de onde traz a prática dos trabalhos mediúnicos e de ritos de incorporação, o desligamento com a doutrina de Kardec se deu em virtude de os espíritas não aceitarem o trabalho daquelas entidades que se identificavam e se identificam como caboclos (índios) e pretos-velhos(homens e mulheres negros que viveram em condição de escravidão).
Ali, se expressava um preconceito racial que não encontra qualquer relação de sustentação com princípio teológico. Tratava-se de colocar para fora daquela nova religião que chegava ao Brasil, aqueles que por sua identificação espiritual compartilhavam da condição de inferioridade social de negros e índios. Eram as determinações sociais direcionando práticas “sobrenaturais”. Identificando-se como tais, os caboclos e preto-velhos supostamente não possuiriam o “grau de evolução necessária”, nem intelectual, nem moral para estarem em um espaço simbólico que até hoje se autoproclama a mais racional das religiões: tanto que pretende ser a um só tempo religião, filosofia e ciência.
Este produto de última geração das religiões, porém, não se desapegou das suas condições materiais iniciais. Atendendo, dessa maneira, muitas vezes aos anseios de uma classe média que enxerga no som dos atabaques e nos rituais afrodescendentes uma forma exagerada de exotismo. A Umbanda seria então uma religiosidade que não se coadunaria com uma noção de civilidade herdada do colonizador e mantida pelo colonizado.
Isto se trata, com efeito, de uma generalização, portanto, não é uma descrição perfeita, contudo os traços etnocêntricos do espiritismo podem ser observados até hoje. O kardecismo brasileiro, mesmo com mais de um século entre nós, não consegue se associar a nenhuma prática ou tradição popular de maior alcance, ademais não encontramos negros entre seus maiores expoentes.
O que fizeram então aquelas entidades de pretos-velhos e caboclos? Resistiram ao preconceito racial disfarçado de discurso religioso fundando uma nova religião. Nesta nova religiosidade nascida de dentro do mundo da cultura popular impera a tradição oral, não há livros de revelações oficiais, nem versículos que sirvam de base para relações de mando e obediência. Diferenças de interpretação de um ou outro aspecto desta fé não conduzem à expulsão, ao silêncio obsequioso, ou à formação de tribunais. Aqui não há códigos de direito canônico, pois a justiça não se identifica com o legalismo de regras que estabelecem a superioridade dos executores e a inferioridade dos punidos. A Umbanda não é uma religião que se caracteriza por excomungados e malditos. Aqui se está longe do regime do vigiar e punir, uma vez que a noção judicial de pecado não aparece. Na Umbanda, o reconhecimento de que o sagrado pode se manifestar nas mais diversas expressões, ritos e práticas litúrgicas impede que se opere como se a religião fosse um tribunal de exceção.
A execração pública não faz parte de nossa liturgia mais visível. Não há catedrais colossais, nem templos de Salomão, pois a fé se realiza no corpo de cada praticante. É o reconhecimento do corpo em sua realidade mais imediata, como a mais forte presença sensível, mas também com todo sua debilidade, tal como é a carne de qualquer ser vivo. Nesta via, estamos a alguns passos de distância da tradição cristã que afirma que o corpo é “templo e morada do espírito santo”. Aqui, o corpo não é o lugar impuro que se santifica pela passagem de um hóspede digno: o espírito. Não há hóspede para o corpo, uma vez que ele não é uma morada vazia, nem um templo sem conteúdo. É por considerar o corpo um lugar vazio que as múltiplas versões do cristianismo, ao longo de suas trajetórias, tomaram para si o direito de arbitrar sobre os corpos dos outros, preenchendo aquele lugar que dizem estar “desocupado”.
Tal não ocorre na Umbanda. Nela, o corpo não é um lugar vazio, sua dignidade não é dada de fora. Sua dignidade reside nele mesmo, não está em um outro cujo lugar é o sobrenatural, mas na sua naturalidade. Aqui o corpo não está além de sua condição sensível, pois ir além disso é fazer do corpo algo que não é ele mesmo.
O corpo, desse modo, não se reduz ao incruento sacrífico do altar, nem é uma metáfora, aquela do corpo místico para expressar a organização da assembleia dos fiéis, nem é, portanto, uma realidade mistificada, que só será glorioso no pós-morte e com a ressureição. Na Umbanda, sua “glória” e seu valor se mostram tal como ele é agora: em toda sua debilidade e fortaleza. Não o corpo inerte, mas sim o corpo vivo que se movimenta, transpira, gesticula, que deseja e se sacia, pois é sua condição natural.
Também não é o corpo exemplar dos moralistas, o corpo bem vestido, coberto por longas saias, o corpo que traja ternos, que aparece engravatado e que inspira respeito não por aquilo que mostra, mas por aquilo que esconde. Talvez seja por isso que não se veja umbandistas, nem filhos de santo do candomblé a atacar outros corpos: com xingamentos, pedradas, ou os difamando publicamente, os perseguindo aonde quer que esses corpos se movimentem no fórum íntimo de sua cotidianidade. Confundindo assim a aparição pública com a privacidade mais íntima de todo indivíduo.
Aqueles cristãos, e assim devem ser chamados, pois se intitulam como tais, que atacaram fisicamente uma filósofa, o fizeram na medida em que não reconhecem a dignidade do corpo do outro. Uma voz conservadora bradava dos porões do mundo virtual se referindo constantemente a Butler como “aquele ser esquisito”. Sendo o corpo que, segundo eles, não hospeda o espírito, é o corpo indigno, o corpo mais que residual, mais que indesejável, o corpo dejeto que, por isso, deve ser queimado. Como demostraram ao acender uma fogueira para a pensadora. Há de se estudar muito ainda para que se possa compreender quão profundo e violento é o fetiche dos cristãos para com os seus próprios corpos e os corpos dos outros. Ironia que a fúria deles se dirija a alguém que pensa as determinações sexuais e de gênero para além dos condicionamentos biológicos do corpo.
Talvez por estes e outros elementos que se opõem diretamente à estrutura de mando e submissão de uma forma da fé que se faz em um país de tradição autoritária e desigual, que a Umbanda e o Candomblésejam ameaças constantes ao poder desses sistemas de dominação. A demonização das religiões de matriz afrodescendente apenas empresta aparente caráter teológico a um desejo de mando e submissão. Já não estamos mais diante somente da intolerância, mas de vontade de aniquilação do outro, não apenas simbolicamente, mas fisicamente. Há de se perguntar: que cristianismo é este capaz de inverter seus próprios fundamentos? É isto o cristianismo?
Daí, as constantes invasões aos terreiros do povo de santo e as costumeiras caçadas judiciais, porque o judiciário de um país desigual, comprometido até o pescoço com está desigualdade é incapaz de tratar equanimemente as religiões. Veja-se o caso recente da questão da obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas arbitrado pelo STF. O mito do país sincrético e da convivência harmoniosa das religiões caiu junto com outros mitos seculares como o mito da não violência e da democracia racial.
Em direção aos seus 110 anos, estamos em um momento em que mais uma vez a Umbanda é chamada a resistir como no seu nascimento, mas desta vez contra a histeria de denominações religiosas que se dizem verdadeiras e acreditam possuir o monopólio do sagrado. São elas que avançam contra nós em uma louca cavalgada da crença alienada de que fazem o que deve ser feito: difamar, perseguir e aniquilar. De fato, não adianta quase nada por parte dos que se autodenominam “cristãos” afirmar que tais atos são feitos por uma parcela pequena e radical de um redil majoritário. A correta e sincera indagação seria perguntar: como é possível que uma certa forma de religiosidade possibilite este tipo de violência? Seria apenas um problema de ordem pessoal, dos indivíduos que realizam tais atos, ou seria um problema maior, da própria estrutura religiosa?
Ao que parece, relegar a culpa aos indivíduos é uma forma eficaz de esconder o problema e não pôr em questão a própria forma de vivência religiosa: seja por comodismo, por submissão, ou mesmo para camuflar a vontade de poder e o desejo violento de não tolerar o diferente. Em um país autoritário como o Brasil, o discurso da religião verdadeira sempre ganha força, pois ela será aquela que possuir maior poder. A submissão e a violência se disfarçam de zelo, de amor divino e o poderio econômico é ostentado como prova de benção. Em tempos de padres pop-star e pastores que possuem mais botox que fé, uma religião fundada por negros e índios e literalmente com pé no chão, sem estruturas de poder que imitam impérios, ou mimetizam a perversidade das organizações empresarias, não pode ser tolerada, pois ela mostra a todo instante que é possível viver o sagrado de um modo diferente.
Por isso, é preciso não baixar a cabeça e gritar pela dignidade do sagrado que não está apenas nas religiões etnocêntricas. Não perecerá a força da resistência dos caboclos e preto-velhos que romperam preconceitos estabelecendo um novo modo de compreensão do sagrado e novos sentidos simbólicos. Esta força e esta fé agora são mais que necessárias.