Filosofias invisíveis

Por Renata Machado, Rádio Yandê

Nossas histórias não fazem parte dos seus mitos. A palavra mithós de origem grega carregada de significado é frequentemente utilizada de forma pejorativa, inferiorizando as histórias de outras culturas consideradas sem base científica para o espaço acadêmico. Sabemos que dentre muitas outras fazem parte do vocabulário adotado por grande parte das pessoas que utilizam a base acadêmica padrão. E principalmente ao explicar usam bibliografias que descrevem como mitos, afinal são quase as únicas existentes. 

Quando somos convocados ao aletramento, educação escolar ou acadêmica são apresentadas lendas, universos descritos como mentiras presente nas crenças populares e folclóricas. Existe também em algumas situações um forte equívoco em confundir culturas indígenas com folclore.

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Pesquisadores tentam decifrar ou achar respostas para muitas destas narrativas que consideram parte de um universo mágico, maravilhoso, imaginário, pois não são parte de seus mundos logo são distantes do que acreditam que seja real.  Verdade é uma questão de ponto de vista. Mentira é tudo que desconhecem. Mito é nome que dão a narrativa de povos que acham que não possuem ciência.

Sonhos também fazem parte do narrar indígena, são histórias contadas por muitas gerações e fonte de grandes saberes passados, que o chamado pelos junguianos de inconsciente coletivo não daria conta de explicar. Por isso precisamos tecer os fios dos quais nascem nosso saber. As folhas não podem ser expostas e levadas pelo tempo. Mesmo sabendo que é preciso ser inciado em uma não linguagem que faz parte de uma leitura de vida plena nas curvas de muitos rios que andam pelas terras que são invisíveis para as mentes civilizadas. Não é uma visão mágica ou romantizada do viver, é pura ciência da vida mas de um outro jeito de ver, outro lugar de fala, e se relaciona com as palavras, diferente dos signos linguísticos conhecidos e interpretados. É mais complexo do que se mostra aos desprevenidos e narcotizados pelos não sentidos.

O céu é um olho de Kuarasy e outro de Iacy, está claridade ou escuridão em cada piscar, passa por camadas de mundos. A visão transcende em Monã tykyra o cosmo como é conhecido e sempre pode ser lida e narrada por aqueles que carregam os frutos deixados por seus avós. Cada povo que pertence ao tronco Tupi-Guarani vai narrar este encontro de uma forma pois depende da hereditariedade, família, clã do qual descende e principalmente do saber que recebe.

Em cada direção você vai encontrar um saber na terra, estrelas, lua e sol, apenas quem possui espirito pode ver. Segredos de família guardados na memória que atravessam o tempo vivem em nosso pensamento, correndo em nosso sangue são pura cultura. A semente, o galho, o fruto, a folha e o vento cantam em quatro direções. De um solo coberto de lágrimas e sangue renascem povos ditos como extintos e mortos, que possuem orgulho da sua raiz e provam seu valor todos os dias.

A palavra cosmologia em sua origem é apontada por estudiosos de forma inferior ao que conhecemos como filosofia. No texto “Qué paradoja: Ellos dicen tener filosofía, nosotros, únicamente cosmovisión” de Ollantay Itzamná,ele cita Dilthey, Schelling, Heidegger, Kierkegaard, Hegel. Mas podemos colocar na lista até Jacques Derrida, é possível observar muitos detalhes, uma perspectiva ampla surge apenas depois de conhecer o que cada um diz e muitos outros. O que veio antes da filosofia como conhecemos hoje é surpreendente.

Longe de ser um pequeno detalhe o verdadeiro significado na foma que nomeamos as coisas possui razões que colonizam, eurocentrizam e inferiorizam no cotidiano nossas formas de olhar e pensar sobre as coisas no mundo. Esta informação é desconhecida pela maioria pois acostumamos usar os nomes que todos usam sem procurar sua origem. Faz parte do adestramento do nosso pensamento e é sútil. Estamos nos despindo de muitos conceitos que vestiram na gente, isto requer um certo tempo e prática. Não é instantâneo.

Perceber o que está por trás das palavras impostas como únicas verdades sobre determinados pontos de visão, ajuda valorizar nossas próprias correntes de pensamento e encontrar as bases de nossas filosofias indígenas. Trazendo conceitos indígenas invisíveis para visibilidade da narrativa, criando metodologias originarias em nossa educação.

O que parece apenas poético para muitas pessoas é na verdade uma forte visão que temos em nossa ótica relacionada ao nosso lugar, relação com os elementos da natureza e origem. Nossos livros são orais e nosso diálogo ilimitado com todos os seres visíveis ou não. Enquanto metafóricos são recursos discursivos utilizados pelos grandes pensadores da branquitude, nossos mais importantes pensadores indígenas passaram despercebidos ao longo dos séculos. Hoje sentimos a necessidade de registrar os saberes orais mas existe uma introdução ao nosso sentir que é impossível encontrarmos nas letras ou tradução. É muito além da polidez.

A página Org com nome de Museu do índio da qual desconhecemos origem, vem sido mostrada por algumas pessoas nas redes sociais para equipe da Yandê. Nela uma coletânea de textos, imagens desenhos que não ajudam na quebra de estereótipos sobre os povos originários e suas culturas. Depois de listas muito interessantes de idéias equivocadas sobre indígenas feitas por diferentes sites, infelizmente a gente ainda acha certas pérolas na internet que nada contribuem. Por isso existe um constante posicionamento de escritores indígenas desmitificando as culturas originárias na literatura e redes sociais.

Também é muito comum observamos mesas ou debates sobre necessidade de descolonialidade do pensar sobre indígenas pela ótica dos colonizadores em que buscamos a presença indígena mas as vezes apenas está nos bastidores, pois colonizadores continuam fazendo o que sempre fizeram que é colonizar, ditar e não oferecer lugar de fala na perspectiva de todos envolvidos na trama colonial.

Escutamos palmas constantes aos que fazem uma recolonização por meio do espaço acadêmico. Cada vez mais indígenas conquistam espaços e precisam estar preparados para uma tentativa de recolonização, nem sempre intencional mas que faz parte do jeito de ser de muito pensador karai.

*Renata é da etnia Tupinambá, jornalista e roteirista. Trabalha com a comunicação voltada para etnomídias, descolonização dos meios de comunicação e fortalecimento das narrativas indígenas.

Photo: Liliana Merizalde -lilianamerizalde.tumblr.com

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