Foi desesperador acompanhar o Judiciário brasileiro em 2017

Por Brenno Tardelli, no Justificando

É, pessoal, chegamos ao fim do ano e creio que você não está nada feliz com a Justiça brasileira. Se estiver, gostaria muito de saber por qual razão se chegou a tão estapafúrdio sentimento. A mediocridade é a rainha de todas as provas e a preguiça cognitiva, acompanhada da enfadonha rotina e o colossal volume de trabalho são constantes na vida de magistrados, magistradas, promotores, promotoras, advogados, advogadas, defensores, defensoras, escreventes, policiais militares, oficiais de justiça, morceguinhos e por aí vai. Todos plenamente acostumados com o absurdo, castrados pelo senso comum.

Nos Tribunais de Justiça, vemos desembargadores que não estudam nada há décadas, não leem, não veem sequer um filme cabeça para ver se areja a teia de aranha centenária que ocupa suas mentes. É realmente desesperador ver o material humano que temos à disposição para nos julgar.

A pessoa que interpreta um papel no Judiciário pode até ser simpática, puxar algum papo meia-boca daqueles que se tem em elevador, mas no final das contas senta em seu lugar e performa o teatro que sabemos bem onde dará. Penso que as audiências deveriam ser mostradas no futuro como exemplo antropológico de uma grande bobagem feita por vários seres humanos que se pensam sérios, mas estão lá citando clichês e pedindo condenação atrás de condenação – minto: às vezes, para se mostrar ponderada, Sua Excelência magnânima absolve um pobre coitado. Mas, no geral, a pobreza cognitiva, acompanhada do ódio de raça, classe e gênero que sentem tornam os atores jurídicos seres absolutamente detestáveis.

No Ministério Público, é difícil descrever quão fundo o poço chegou. Se você imaginar, foi nesse ano que mais de cento e cinquenta promotores de justiça assinaram um manifesto que pareceu ter sido escrito por um adolescente “bolsominion” alterado pelo álcool. Só nesse manifesto, que circulou pouco, há mais de cem promotores do Rio Grande do Sul em um universo de seiscentos e noventa. Imagine ainda que, nesse ano, Kim Kataguiri foi com o dinheiro público ao Rio de Janeiro ensinar segurança pública para promotores cariocas, incluindo o Procurador Geral de Justiça daquele Estado. Simplesmente risível.

O ridículo se tornou realidade. Pobre população, acusada por seres humanos que precisam de muito para começar a ser gente.

Advogados e Advogadas, na gigantesca maioria, vão de mal a pior. Explorados, cansados, desrespeitados, apequenados, desdenhados, lutam em meio à horda de profissionais desaguados no mercado todo ano. Todos em busca de um cliente que honre com os honorários acordados, algo cada vez mais incomum. Na casta jurídica, são os dalits, tratados como escória pelos brâmanes que seguram o martelo da justiça. E a OAB, que poderia fazer algo por eles, está mais preocupada em legitimar o governo federal ilegítimo no poder. De outro lado, a mediocridade dos doutores constrange o ensino jurídico e o exame da ordem, dado o baixo nível profissional à disposição da população.

Foi nesse ano o massacre de Manaus – que ninguém consegue justificar como que aconteceu direito – uma tragédia que irá se repetir enquanto a política de drogas for de guerra. Começamos o ano com Manaus e terminamos com o relatório do Infopen que trouxe o Brasil na 3ª colocação no número de presos. Medalha de bronze e tudo como Dantes no Quartel de Abrantes.

A polícia militar – de mãos dadas com delegados, advogados, promotores, juízes, desembargadores, ministros – continua assassina como o cão da guerra às drogas, que já há tempos é classificada como genocida da juventude negra, bem como responsável pelo hiper encarceramento, dentre outras pestes que acometem esse povo tão sofrido.

Os direitos mínimos para a sociedade que gente inconformada lutou para que fossem conquistados são solapados ao bel prazer da autoridade de plantão.

Aliás, nesse mês de dezembro foi publicado o relatório do Instituto de Defesa ao Direito de Defesa (IDDD) sobre as audiências de custódia, que determinam a apresentação do preso ou da presa ao Juízo em até vinte e quatro horas. Foi uma luta danada de organizações de direitos humanos, juristas engajados – mas, infelizmente, sempre minoritários – em suas carreiras, bem como por veículos de imprensa, como o Justificando.

Articulações, artigos, palestras, vídeos, campanhas para que fosse implementado um instrumento que desafogaria o cárcere, bem como fiscalizaria a tortura policial, feijão com arroz no tratamento ao preso brasileiro. Enfim, fora implementada na gestão do ministro Lewandowski. Eis que agora são publicadas pesquisas que denunciam o racismo por parte de magistrados que determinam em muito maior número a prisão de negros sobre brancos. E isso, para a Justiça brasileira, não é um problema.

A pesquisa sobre audiência de custódia, coordenada pela Doutora em Direito pela Universidade de Brasília Carolina Costa Ferreira, identificou que, em mais de 98% dos casos em vários estados, o preso faz audiência algemado, em flagrante crime de constrangimento ilegal, dado que a Súmula Vinculante n. 11 do STF desautoriza esse tipo de prática. A pesquisadora identificou um início de movimento no sentido em transformar as audiências de custódia em audiência de instrução, na qual se discute provas, ouve as partes e decide.

Paralelamente a isso, com a conivência da elite da advocacia criminal – a qual responderá historicamente por sua covardia e ganância – avança a delação premiada, instituto parecido com plea bargain que hiperlotou as celas do Estados Unidos, como bem descrito no filme 13ª Emenda. Ou seja, combine a audiência de custódia fazendo as vias de audiência de instrução, o plea bargain brasileiro e o racismo de juízes e promotores para termos a receita que nos levará ao primeiro lugar em encarceramento. Em 2018, as notícias anunciam serem ainda piores. Viva a estupidez e canalhice jurídica.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as audiências de custódia são realizadas já dentro do presídio. Penso que é para que os presos sequer sintam a brisa da liberdade no caminho para o fórum. Admitimos o convívio cordial com feitores dominados por um pensamento de prisão perpétua. Sádicos. Tão sádicos quanto as desembargadoras responsáveis pela confirmação da condenação de Rafael Braga a mais de onze anos de prisão com base única na contestada palavra dos policiais que efetuaram a prisão. O caso do Rafael Braga revela as chagas da Justiça que precisa ser refundada.

A jurisprudência é a garantia que assumiremos o primeiro lugar sem plea bargain

Palavra de policial, por si só, é considerada como motivo suficiente para se condenar alguém a anos de prisão; o Habeas Corpus já não é mais uma realidade em tribunais superiores; a presunção de inocência continua sepultada pelo julgamento do STF. Vemos que a jurisprudência é a garantia que o Estado pode ser violento como se não houvesse amanhã: indígenas e quilombolas ficam sob a ameaça do marco temporal; direito urbanístico e função social da propriedade simplesmente não existem na cabeça dos julgadores (em São Paulo, o mandato do vereador Eduardo Suplicy atendeu mais de mil casos de desocupação só na cidade, conforme me informou a colunista do Justificando e intelectual Joice Berth); e discutir o impeachment de Dilma Rousseff não interessa, dentre tantos outros absurdos.

O STF prefere gastar seu tempo discutindo quem é o campeão brasileiro de futebol de 87. Parece ficção, mas é o Brasil.

Uma forma muito comum de operadores de direito demonstrarem seu sadismo, racismo, classismo são nas migalhas que concedem a título de dano moral no país do consumidor desrespeitado, da cultura da violência naturalizada e da maior desigualdade do planeta. São covardes a ponto de desdenharem de todos os pedidos como se fossem igualmente frutos da “indústria do dano moral”. Escrevem isso com a frequência que escrevem Je suis qualquer-coisa-que-agrade-meu-viralatês no Facebook. E o mais revoltante que o fazem dirigindo-se a gente miserável que toma coragem para acionar o Estado contra Golias. E o advogado e advogada que se explodam com as sucumbências, tidas como favor pela Judicatura. Se há uma indústria do dano moral, não é o povo que detém os meios de produção.

Nossas crianças e adolescentes estão sendo massacrados em varas judiciais de “menores infratores”. Essa é uma denúncia que precisa ser feita, apesar de toda a dificuldade de se trabalhar com imagem de jovens, bem como pelo fato de isso ser uma caixa preta lacrada pelo sigilo processual próprio de ações judiciais dessa natureza. Meninos miseráveis apontados como “pequenos traficantes” são internados a rodo em “fundações Casa” e outros estabelecimentos com semelhante cinismo em sua autodenominação, já que não há nada de Casa na Fundação Casa.

Isso sem mencionar o completo despreparo, machismo e insensibilidade em varas de família, no contexto de divórcio, guarda de filhos, adoção, entre outros temas. Clichês moralistas são a cartada mais comum para contribuir para a estrutura que mantém a mulher submissa ao homem nas relações familiares. Juízes insensíveis que sem um pingo de humanidade estão aí julgando causas humanas e nada nos espanta.

Em Curitiba, algo inacreditável acontece diante de nossos olhos

Sérgio Moro continua a ser absolutamente autoritário, macartista e com verdadeira má fé sem que isso seja uma questão a ser debatida, ou sequer questionada, Durán que o diga.

A sentença que condenou o ex-presidente Lula pelo caso do Triplex é a declaração assumida de que esse juiz não é sério. Porque se fosse, jamais condenaria com muita convicção e nenhuma prova – convido vocês a lerem o raio-X completo da sentença. O teatro da apelação está marcado para 24 de janeiro e a descarada seletividade e determinação em condenar, com base numa acusação que não se sustenta diante de um aluno do primeiro ano de graduação, não incomoda ninguém. Pelo contrário, inspira.

Ministros do STF se acotovelam pelo seu lugar ao hall da fama dos medíocres. O mais novo colega da trupe é o Alexandre de Moraes, que em um país sério dispensa comentários, mas já que estamos no Brasil, trata-se de um senhor de carreira acadêmica meteórica, com acusação de plágio, bem como se gabou de título acadêmico inexistente. Moraes foi o ministro que se prestou a ir até o Paraguai manejar um facão de uma forma lamentável para cortar pés de maconha, como também foi quem protagonizou inúmeras violações a direitos humanos e fez campanha em chalana de luxo com senadores na calada da noite. Ele sucedeu a já esquecida morte de Teori Zavascki[1], que muito provavelmente se tornará nome de algum salão nobre por aí e não se fala mais nisso.

Ah, quase me esqueço: Alexandre de Moraes atualmente é convidado para cerimônias de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que continua sua missão obstinada em envergonhar a classe dos advogados.

Quanto aos ministros, dispensam maiores comentários, temos mais é que lutar para colocar um mandato nessas pessoas e cortar o umbigo do rei. Por mim, para cada um que sair, será um dia de festa diferente para o povo.

O baixo nível de exigência de dignidade humana pelos operadores de direito proporcionam cenas de espetáculo grotescas. As operações policiais chegaram à intelectualidade acadêmica. Policiais armados até os dentes, cachorros de guarda e viaturas são enviadas pela Justiça para submeterem os alvos à humilhação, exposição midiática e tortura.

Imaturos, os operadores de direito se pensam Batman, mas a verdade é que não têm nenhuma condição emocional de processar quem quer que seja. A aventura dos aprendizes de Sérgio Moro custou tragédias, como o suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual passou pelo vale das sombras da Justiça e da Polícia Federal. Recentemente, o alvo foi a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dado o susto, esperamos que agora prestem atenção no que colunistas do Justificando dizem há décadas, isto é: essas operações são uma vergonha e devem ser evitadas a todo custo; quiçá um dia as pessoas retomem a razão e proíbam essa forma de execração pública.

O ataque às universidades ocorre em várias frentes, como investidas sobre grupos de pesquisa críticos, autorização de discurso de ódio no ENEM, conivência com o desmonte da UERJ, dentre outros mísseis contra a pesquisa nacional.>

A boa notícia fica pela resistência da Justiça do Trabalho frente à aprovação da assombrosa Reforma Trabalhista, que já começa a surtir seus efeitos. Foi um alento acompanhar a luta de Juízes e Juízas do Trabalho, Procuradores e demais agentes e instituições da justiça se colocaram contra a Reforma e o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho. Não fosse o Justificando, a imprensa teria feito o palanque para esse senhor, o qual, além de protagonizar a destruição da Justiça do Trabalho, nas horas vagas gosta de comparar uniões homoafetivas a bestialismo.

O baixo nível crítico dos jornalistas que cobrem mídia é algo preocupante, por amansar a população ferida por esses senhores. Como que Ives Gandra Filho pôde ter sido seriamente considerado para ministro do STF, sem que seu lado medievo fosse a público? E Moraes, então? Como que ele pode visitar tantas mídias sem ser interpelado? O Brasil me obriga a beber, diria o meme famoso da internet.

Ives quase ter sido alçado ao STF segue a receita comum do Judiciário brasileiro de gigantesca maioria branca: o mais medíocre, o mais puxa-saco e o que fala mais amém para o senso comum costuma a ser o privilegiado, promovido e exaltado. Em contrapartida, os mais críticos com um mínimo de personalidade em se colocar contra o “pacto narcísico da mediocridade”, em alusão ao “pacto narcísico da braquitude” cunhado por Maria Aparecida Bento, são os perseguidos.

Isso explica o caso da juíza Kenarik Boujikian, que fez o óbvio e foi humana ao determinar a soltura a quem estava preso por tempo maior do que estabelecido na sentença. Isso explica a perseguição aos Quatro de Copacabana, cujo apelo foi iniciado em um incrível manifesto de luta publicado por centenas de juristas engajados no Justificando. Isso explica os cotidianos casos de perseguição ideológica promovida pela Judicatura, Ministério Público e OAB. São instituições agentes da perseguição nos moldes de SNI da ditadura militar.

Talvez, seja preciso de mais um tempo para juristas em geral, leitores de outras áreas do conhecimento e, quem sabe, a grande massa da população perceber que o Judiciário é e tem sido um grande inimigo do povo. No ano em que as pessoas perceberem e sentirem que isso não é natural, que pode ser desconstruído, a breve retrospectiva do ano será mais otimista do que esse deprimente e revoltante ano de dois mil e dezessete.

Brenno Tardelli é diretor de redação do Justificando.

[1] Engraçado que é o bonito aqui que ainda lembra de Teori Zavascki. Quando faleceu, obviamente todas as autoridades, mídia e etecetera e tal foram logo jogarem todas as loas ao ministro, como é próprio do falecimento. Diria minha bisavó que a morte nos faz santo. Enfim, quando ele faleceu fui o único a lembrar que sua atuação era comum à mediocridade do Supremo e fui muito criticado pelos adoradores de rituais ocidentais, por ser insensível ou oportunista. Parecem foquinhas que só sabem bater palma. Hoje, essas pessoas não estão mais nem um pouco interessada no que, de fato, aconteceu com Teori, enquanto cabe ao crítico de sempre ter memória. O campo jurídico brasileiro tem ojeriza ao questionamento é um dos mais cínicos que conheço, não merece um pingo de respeito.

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