James O’Connor (1930-2017): um grande ecossocialista nos deixou

O’Connor parte em um momento em que suas teses foram tristemente comprovadas pelas mudanças climáticas, contaminação e destruição do planeta

Por Felipe Milanez, na Carta Capital

Faleceu, no dia 17 de novembro, o economista James O’Connor, um dos fundadores intelectuais da corrente ecossocialista e fundador da revista científica Capitalism, Nature Socialism.

Autor do influente livro USA: A Crise Fiscal do Estado Capitalista, de 1973, traduzido pela Paz e Terra em 1975 para o Brasil, e Natural Causes: Essays in Ecological Marxism, de 1998, ainda sem tradução, ele tinha 87 anos e era professor aposentado do departamento de sociologia da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz.

Deixa um imenso legado de pensamento crítico sobre o consumo desenfreado do capitalismo, em busca de lucro incessante, às custas dos recursos naturais. Esse efeito, em que a expansão do capitalismo minava as próprias “condições de produção” em razão do esgotamento dos recursos naturais, ele teorizou como “a segunda contradição do capitalismo”.

O’Connor parte em um momento em que suas teses foram tristemente comprovadas pelas mudanças climáticas, contaminação e destruição do planeta – no Brasil, a devastação da Mata Atlântica (restam apenas 7% da mata que existia quando teve início a invasão europeia), do Cerrado (mais de 50% desmatado), da Amazônia (desmatamento crescente depois de alguns anos de relativa queda), a completa destruição da bacia do Rio Doce, o barramento dos rios, são alguns exemplos da violência do capitalismo, que não possui mecanismos de mitigação nem de ajustes de seu poder de fogo. A economia verde e o oximoro do “desenvolvimento sustentável”, nesse sentido, são apenas verniz verde para o mesmo mecanismo predatório do capital.

Não é à toa que o momento em que a América Latina vive, de um retorno ao autoritarismo e o neoliberalismo, coincide com a política de agressão às terras e os direitos dos povos indígenas, de concentração da renda e da terra, de desregulação dos licenciamentos ambientais, e da massiva desnacionalização dos recursos naturais com a suposta justificativa de “crescimento econômico”.

Da mesma forma, os governos progressistas, cujas políticas econômicas eram baseadas na reprimarização e exportação de recursos naturais, prestaram pouca atenção – ou nenhuma atenção – à contradição fundamental explicada por O’Connor, o esgotamento dos recursos naturais leva à crise da subsistência. Não há meios de vida que se sustentem com o uso abusivo e predatório da Natureza.

No artigo abaixo, o influente economista ecológico e ecologista político catalão, Joan Martinez-Alier, catedrático da Universidade Autônoma de Barcelona e uma das principais vozes na academia internacional junto das lutas do ecologismo popular e dos movimentos de justiça ambiental, coordenador do projeto de construção de um atlas de movimentos de justiça ambiental e de resistência ambiental no mundo (o ejatlas.org), presta uma homenagem a Jim O’Connor e relembra a importância de seu trabalho.

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Em memória de “meu” James O’Connor (1930-2017)*

Antes de conhecer pessoalmente Jim O’Connor no início de 1989, no lindo campus da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, eu já tinha lido seu livro premonitório The Fisscal Crisis of the State, de 1973 (traduzido pela editora Paz e Terra com o título USA: A Crise Fiscal do Estado Capitalista, e publicado no Brasil em 1977), e a introdução que ele escreveu para a primeira edição da revista científica Capitalism, Nature, Socialism (CNS), em 1988, sobre a “segunda contradição do capitalismo”. Ele editou esse periódico junto de Barbara Laurance, por alguns anos, até que um grave problema de saúde o fez parar.

A revista continua até os dias atuais, e desde o início foi uma revista irmã da Ecología Política (publicada em Barcelona pela Editorial Icaria, e dirigida por Anna Monjo), da revista francesa Ecologie Politique (impressa na França e editada por Jean-Paul Deléage), e Capitalismo, Natura, Socialismo (um periódico italiano editado por Giovanna Ricoveri). As alianças entre estas publicações continuam até hoje.

Por alguns anos, tivemos uma relação muito próxima. Na primeira edição de Ecología Política, revista que eu era editor e fundador, traduzimos diversos artigos da CNS. Ainda que eu tivesse um viés pró-camponês, pró-Narodnik, essa perspectiva o divertia um pouco.

Nunca tivemos um desacordo político, e o que quer que eu incluísse na Ecología Política, ele iria concordar, atribuindo qualquer surpresa que viesse ter do material publicado às minhas inclinações anarquistas, o que seria esperado vindo de alguém de Barcelona (quero dizer, de Barcelona dos anos 1936). Ele veio a Barcelona para o lançamento da revista Ecología Política, em 1991.

Organizamos um debate em torno da “segunda contradição do capitalismo” na Ecología Política, traduzimos artigos da CNS e publicamos outros artigos originais. Eu acreditava, e ainda acredito, que “a segunda contradição” foi um conceito brilhante que contribuiu para dar sentido à miríade de movimentos por justiça ambiental ao redor do mundo.

A palavra “ecossocialismo” (mal apropriada pelo partido pós-comunista na Catalunha) foi introduzida no lançamento do primeiro número da Ecología Política, em 1991, também organizado pelo sociólogo ambiental e professor da Universidade Autônoma de Barcelona, Louis Lemkow. Todos nós éramos ecossocialistas, e ainda somos.

Mas no meu caso, eu era um socialista no sentido da Primeira Internacional, ou seja, quando estavam juntos anarquistas, populistas pró-camponeses russos e marxistas, todos tentando conviver, o que se provou impossível em 1871.

Posteriormente, os marxistas dividiram-se em duas principais correntes, a “alemã” Social Democracia e, depois de 1917, os leninistas, ambos igualmente inconscientes das questões ecológicas.

Para entender o “ecossocialismo” é preciso remontar a 1871, e adicionar ecologismo e feminismo ao socialismo, numa perspectiva que inclua o mundo inteiro, e não apenas a Europa. Nossas visões coincidiam, minha e de Jim O’Connor, sobre esse aspecto.

O principal artigo da primeira edição da revista Ecología Política não era de minha autoria, nem escrito por Jim O’Connor, mas sim pelo ecologista mexicano e ecossocialista pró-camponês, Victor Toledo. Eu também introduzi na Ecología Política e na CNS o conhecimento que naquela época eu estava ganhando em minhas pesquisas que realizava na Índia e na América Latina, sobre o “ecologismo dos pobres”.

No seu livro de 1973, USA: A crise do Estado Capitalista (traduzido para o Brasil pela editora Paz e Terra, em 1977), que antecipou a crise do capitalismo keynesiano socialdemocrata em 1975, e a ascensão do neoliberalismo com Ronald Reagen e Margareth Thatcher, James O’Connor argumentou que o Estado capitalista deveria cumprir duas funções fundamentais, nomeadamente, acumulação e legitimação.

Para promover uma acumulação privada de capital lucrativa, era requerido do Estado aumentar os impostos para financiar o estado de bem-estar social, aumentar a segurança social, e baixar o custo da reprodução do trabalho, e nesse sentido aumentar a taxa de lucro do capital, ao mesmo tempo em que deveria manter a harmonia pelas despesas sociais, por exemplo, com o auxílio desemprego e benefícios de saúde.

Tudo isso se tornou contraditório. Isso significou o aumento de impostos, e em decorrência uma rebelião capitalista contra a taxação, como de fato aconteceu na Califórnia. O Estado entraria numa crise fiscal.

O déficit do orçamento tornou-se associado a ideia de que aquele governo ficou demasiado pesado, que o pleno emprego não era mais o objetivo da política macroeconômica, e que as centrais sindicais eram poderosas demais. Os neoliberais partiram para m ataque contra o Estado.

Em 1988, Jim O’Connor apareceu com uma nova tese com ampla repercussão na introdução da revista que surgia Capitalism, Nature, Socialism. A questão não era apenas a de que investimentos capitalistas em busca de lucro iriam aumentar a capacidade produtiva enquanto a exploração do trabalho iria diminuiria o poder de compra das massas. Esta era a primeira contradição do capitalismo.

Havia uma segunda contradição. A economia capitalista industrial minava as suas próprias condições de produção  (ele deveria ter dito, no meu ponto de vista, as condições de existência e as condições de subsistência, e não apenas as condições de produção). Havia uma exaustão dos recursos naturais, havia a introdução de tecnologias perigosas como a energia nuclear, havia as novas formas de poluição, e o capitalismo não possui meios para corrigir ou mesmo minimizar estes danos.

Um novo tipo de movimento social estava emergindo, e os principais atores não são a classe trabalhadora mas sim uma articulação de diferentes grupos sociais, muitas vezes liderados por mulheres, muitas vezes compostos por minorias étnicas.

O fato que os “movimentos por justiça ambiental” emergiram nos Estados Unidos em 1982, dentro dos movimentos pelos Direitos Civis, reforçava a tese de Jim O’Connor, e seu periódico acadêmico publicou diversos artigos sobre esses movimentos que lutavam contra o “racismo ambiental”.

Na minha opinião, Jim O’Connor, e antes dele ainda, em 1986, o mexicano Enrique Leff e seu livro Ecología y capital: racionalidad ambiental, democracia participativa y desarrollo sustentable, que eu convenci Jim a traduzir para o inglês, foram as principais inspirações do trabalho que eu desenvolvi e ainda desenvolvo, sendo 10 anos mais jovem que Jim O’Connor, sobre os movimentos globais por justiça ambiental e, mais recentemente, no Atlas de Justiça Ambiental (EJAtlas.org). Ele sempre soube que fui grato a ele.

*tradução de Felipe Milanez

Foto: UC-Santa Cruz Digital Collections

 

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