Retrospectiva 2017: Melhores e piores reportagens internacionais sobre as Favelas do Rio

Esta é a contribuição mais recente da nossa série de matérias analisando as Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre Favelas do Rio, que faz parte do debate promovido pelo RioOnWatch sobre a narrativa e os retratos midiáticos acerca das favelas cariocas.

No Rio On Watch

Após sete anos de uma crescente cobertura, em língua inglesa, sobre favelas do Rio de Janeiro ter ocorrido em função das Olimpíadas de 2016, talvez o aspecto mais notável em 2017 sobre a cobertura internacional de favelas seja a queda acentuada da quantidade. A demanda por notícias do Rio nas agências de notícias internacionais diminuiu, e muitos dos correspondentes estrangeiros e freelancers que se mudaram para a cidade antes dos megaeventos a deixaram. Neste contexto, há sinais preocupantes de que maioria da cobertura jornalística internacional sobre favelas esteja retornando às tendências reativas, e fazendo reportagens sobre incidentes de violência. Este tipo de cobertura nem sempre é o jornalismo explicitamente estigmatizante e impreciso que normalmente apresentamos em nossas piores análises de reportagens, mas uma ênfase desproporcional na violência ainda é uma forma insidiosa de estigmatização.

Por esta razão, a nossa abordagem sobre as reportagens de 2017 começa com uma análise geral da cobertura que explodiu em torno de uma erupção de violência na Rocinha, antes de desconstruir alguns dos piores exemplos de reportagens sobre favelas e comemorar algumas das melhores do ano. Em comparação com 2013, quando nem conseguimos identificar boas coberturas de favela para destacar, 2017 trouxe uma série de matérias que se destacaram por originalidade, análise aprofundada e conteúdo anti-estigma e oferecem alguma esperança de que a cobertura global de favelas esteja progredindo.

Holofote sobre a Rocinha

Com a implantação do exército na Rocinha no dia 22 de setembro, após cinco dias de tiroteios, textos e imagens da AFPAP e Reuters foram republicados por jornais de todo o mundo. A morte de uma turista espanhola pelas mãos da polícia em outubro recebeu atenção semelhante, assim como a recente captura do traficante Marcelo Piloto vinculado à disputa de poder na Rocinha. Os alertas do Google que monitoramos mostraram como cada capítulo desta história reverberou durante semanas em aparentemente inúmeros sites. A grande maioria dessas plataformas não publicou mais nada sobre favelas este ano, deixando seus leitores com imagens de favelas centradas na violência de traficantes de drogas e perigos para os turistas.

Do lado positivo, a AFP, a AP e a Reuters evitaram amplamente os cansativos clichês descritivos que criticamos em análises anteriores. Na verdade, a Reuters informou que “os bairros densos são lares principalmente de pessoas de classe trabalhadora, que sofreram décadas de abandono do governo, criando vácuos preenchidos por facções”. Enquanto a Reuters e o AP usaram a tradução imprecisa de ‘slum (bairros sórdidos) para se referir às favelas, a AFP conseguiu evitar termos problemáticos, descrevendo a Rocinha como uma “comunidade estabelecida” e “uma coleção abundante de pequenas casas em encostas íngremes”.

No entanto, nenhuma dessas reportagens, dos três veículos, mencionou preocupações sobre o uso das forças armadas para ocupar, mesmo temporariamente, um bairro que já sofreu com a brutalidade policial e a violência. E, ao longo de outras coberturas internacionais, os jornalistas informaram que os militares “restauraram a ordem” e “recuperaram o controle” da favela, sem reconhecer a crítica de muitos militantes das favelas de que os tanques posicionam os moradores como uma população ‘inimiga’, e que o “Exército serve para tudo, menos proteger quem vive na Rocinha“, como escreveu um morador em setembro.

Também falta na maioria das reportagens em inglês um reconhecimento de que as reações do governo e da mídia aos tiroteios em favelas fora da Zona Sul são consideravelmente mais silenciosas. Todas essas preocupações foram levantadas por moradores de favelas nas mídias sociais, mas as perspectivas dos moradores, em geral, foram extremamente ausentes da maior parte da cobertura internacional dos eventos dos últimos meses na Rocinha. Essa tendência precisa mudar, pois a inclusão de vozes da favela no debate de segurança pública é essencial para o desenvolvimento de políticas mais produtivas.

Finalmente, em toda a cobertura da Rocinha, percebemos traduções imprecisas para ‘favela’ como ‘shantytown‘ (bairro de barracos) nesta reportagem da NPR, e ‘slum‘ neste artigo do Wall Street Journal, que estão voltando a usá-las em publicações que já as haviam abandonado anteriormente. Antes das Olimpíadas, por exemplo, o Wall Street Journal adotou a frase “bairros da classe trabalhadora conhecidos como favelas” –que destacamos como um bom exemplo de como traduzir ‘favela’ para o público em língua inglesa.

Piores Reportagens

Na verdade, as piores reportagens sobre as favelas deste ano ficaram, principalmente, limitadas às publicações das quais não esperamos outra coisa. O The Sun (tabloide britânico) usou os conflitos deste ano na Rocinha para se referir aleatoriamente a uma celebridade, lembrando como a personalidade da TV britânica Joey Essex “pensou que [ele] morreria” quando visitou a Rocinha em 2014. “Seus medos se provaram bem fundamentados após a grande operação militar de ontem”, escreveu o jornalista, ignorando casualmente o passar do tempo, e o fato de que os tiroteios de setembro não representaram as condições na Rocinha durante a maior parte deste ano, e muito menos a situação em 2014, quando a segurança estava, de forma geral, mais estável nas favelas da Zona Sul.

Diversas publicações noticiaram quando Madonna recebeu críticas nas mídias sociais por posar para uma foto com policiais fortemente armados na Providência. Mas o Daily Mail ultrapassou todos, identificando erroneamente a favela como Rocinha e, portanto, afirmando que Madonna visitou a mesma favela onde um turista espanhol acabara de ser morto e onde o exército foi implantado no mês anterior. A confusão de duas das favelas mais conhecidas do Rio reflete o desprezo pela diversidade das favelas do Rio, que prepara o caminho para a falácia lógica de que, se houver violência em uma favela, outras favelas também devem ser violentas.

High Times conseguiu relatar sobre a favela correta, mas na parte errada da cidade, dizendo em sua matéria que todas as favelas estão no “norte da cidade”. O artigo rotula a Rocinha como “a mais notoriamente violenta das favelas do Rio de Janeiro”, que parece ser um rótulo que alguns repórteres aplicam a qualquer favela que eles estejam escrevendo sobre naquele dia. O autor afirma que “o comércio de cocaína é praticamente a única economia” na Rocinha e nas favelas vizinhas –isso em uma comunidade que possui 6529 empresas funcionando. Qualquer um que visite uma favela sabe que essa afirmação é falsa: a ampla gama de empresas em exibição contribui para os R$38,6 bilhões em atividade comercial que as favelas do Brasil estão estimadas em gerar a cada ano.

Melhores Reportagens

A reportagem multimídia inovadora da AFP, “Stray Bullets–Violence and Broken Lives in Rio de Janeiro” (Balas Perdidas–Violência e Vidas Destruídas no Rio de janeiro), apresenta entrevistas em vídeo com familiares de seis vítimas mortas por balas perdidas, e com duas pessoas feridas. Os vídeos são lindamente filmados, focados de perto nas pessoas que estão falando, enquanto elas falam abertamente sobre sua dor e perda. As narrativas capturam a complexidade emocional, como a do policial que não sente orgulho de sua profissão desde que sua filha de dois anos foi morta, mas que quer voltar ao trabalho para “defender a sociedade o melhor possível”. O projeto também contextualiza essas histórias individuais com dados sobre tiroteios, feridos e óbitos nos bairros das famílias em destaque, bem como no Rio. Embora a afirmação de que “os confrontos entre a polícia e os traficantes de drogas fortemente armados podem entrar em erupção em todo o Rio de Janeiro, a qualquer hora e em qualquer lugar” corre o risco de minimizar a concentração espacial de violência, que ameaça desproporcionalmente comunidades de baixa renda e predominantemente negras, esta reportagem dá um foco produtivo e comovente para a violência urbana.

A matéria de Jo Griffin intitulada “One man, one city, three evictions: the human cost of Rio’s growth” (Um homem, uma cidade, três remoções: o custo humano do crescimento do Rio) e o vídeo que acompanha exploram o fenômeno das remoções ao longo de décadas no Rio, através da lente da história de um homem. Produzida para a Place, uma iniciativa da Fundação Thompson Reuters, a matéria se concentra em Altair Guimarães, que foi despejado em 1969 da Ilha dos Caiçaras (na Zona Sul), no início da década de 1990 da Cidade de Deusfinalmente, em 2015 da Vila Autódromo. Além de contar uma tumultuada história humana, este matéria ressalta que a recente onda de remoções  antes das Olimpíadas deve ser entendida no contexto do padrão histórico de remoções de favelas quando a prefeitura deseja liberar a terra para o desenvolvimento. Também é importante o contexto histórico para trazer à luz as atuais ameaças de remoções que enfrentam comunidades de baixa renda.

Americas Quarterly destacou-se este ano pela cobertura consistente, de alta qualidade e original, a respeito das favelas do Rio. O perfil, feito por Soledad Dominguez, da MC Martina do Complexo do Alemão reconhece “o racismo, a violência, a desigualdade” que ela confronta diariamente, mas contrasta com o orgulho que a rapper de 19 anos sente em relação a sua comunidade, deixando os leitores com uma noção realista e complexa do bairro. A matéria de Jill Langlois sobre o Bistrô Estação R&R, um bar que vende cerveja artesanal no Alemão, é repleto de conteúdos desconstrutores de estigmas. “Eu sempre digo que as pessoas que são pobres, pretas e faveladas são criadoras de empreendimentos”, afirma um dos proprietários do bar na matéria.

Regular em nossa lista das melhores reportagens, a série ‘View from the Rio Favelas‘ (Vista das Favelas do Rio) do The Guardian feita por autores de favelas retornou, devido ao marco de um ano pós-Jogos com análises do legado Olímpico do Rio realizadas por três jornalistas comunitários: Daiene Mendes do Complexo do Alemão, Thais Cavalcante do Complexo da Maré e Michel Silva da Rocinha. Os jornalistas continuaram sua tendência de contextualizar a segurança e a violência em análises mais amplas em relação as promessas de legado dos megaeventos ou a corrupção, e também a destacar os sucessos locais, como o crescente empreendedorismo ou o surgimento de um movimento da juventude se organizando em torno de políticas de drogas. Este ano, o The Guardian também publicou uma quarta matéria de uma moradora de favela, a ativista da Vila Autódromo, Maria da Penha, cuja conta pessoal de resistir à remoção é um testemunho essencial do custo real dos Jogos Olímpicos do Rio.

Menções Honrosas

Com tantos meios de comunicação internacionais ávidos para cobrir a violência na Rocinha, os artigos que se destacaram por sua originalidade produtiva incluíram a análise aprofundada de Misha Glenny sobre “uma cidade no caos” para o The Intercept, a cobertura de perto por Tiago Coelho para Piauí sobre como os tiroteios impediram alguns estudantes da Rocinha de fazer provas de vestibular, e o olhar inteligente de Kiratiana Freelon na Next City, sobre como os guias turísticos das favelas estão se organizando, apesar da ameaça por conta da deterioração da segurança para o turismo das favelas. Enquanto isso, Travis Waldron, do HuffPost, respondeu de forma construtiva ao “escândalo” da foto da Madonna na Providência, contextualizando-o em dados informativos sobre violência policial no Brasil.

Andrew Purcell e Mimi Whitefield produziram excelentes coberturas sobre mídias comunitárias de favela para o OpenDemocracy e o Miami Herald, respectivamente. A reportagem do WIRED sobre como “as favelas do Rio coletam e produzem dados sobre crimes para manter as pessoas seguras” ofereceu detalhes fascinantes sobre como os aplicativos de monitoramento de violência do Rio realmente funcionam. E o artigo de Jennifer Chisholm para a NACLA explorou como algumas comunidades atualmente ameaçadas de remoção estão focando nas relações sustentáveis que seus moradores têm com a terra, como argumento para a permanência.

Finalmente, embora não seja uma reportagem focada nas favelas, gostaríamos também de destacar a cobertura do legado Olímpico por Anna Jean Kaiser para o The New York Times, e de Andrew Purcell para o The Age, bem como a explicação de Juliana Barbassa no Americas Quarterly da razão dos Jogos Olímpicos de Rio terem sido um “grande sucesso” para as elites que buscaram lucrar com eles. O NPR continuou a levar adiante as discussões sobre raça no Brasil com um podcast esclarecedor intitulado “Brazil in Black and White” (Brasil em Preto e Branco). Também recomendamos a visão aprofundada de Jonathan Watts sobre o escândalo do Lava Jato no The Guardian, que é uma explicação útil de uma bagunça incrivelmente complicada.

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