Como Ahed se tornou um ícone da luta palestiniana

Ahed Tamimi não é uma cara desconhecida para quem acompanha os protestos na Cisjordânia. Nascida em Nabi Saleh, esta rapariga de 16 anos aparece com frequência em vídeos filmados pela família, em geral a provocar soldados israelitas para divulgar a sua reacção. Que impacto poderá ter este ícone feminino?

Por Aline Flor, no Público

A 19 de Dezembro no ano passado, pela madrugada, o Exército israelita entrou em casa da família Tamimi, na aldeia de Nabi Saleh, na Cisjordânia. Levaram Ahed, de 16 anos. As imagens da detenção foram divulgadas. Quatro dias antes, Ahed tinha sido filmada pela mãe a tentar bater em dois soldados israelitas. Essas imagens também foram amplamente divulgadas. Loira, sem véu, com uma ferocidade desconcertante, a jovem tornou-se já um símbolo da resistência palestiniana e da luta contra a política de detenção de menores de Israel.

Para os palestinianos, Ahed Tamimi reagia ao uso de balas de borracha contra o primo de 14 anos, que tinha sido ferido na cabeça nesse dia. Face às acusações judiciais entretanto formalizadas contra a adolescente, houve quem afirmasse no jornal hebraico Haaretz que Israel corre o risco de transformar Ahed numa Joana D’Arc.

Já os israelitas vêem nas imagens apenas uma agressão contra os soldados, uma acção de propaganda contra Israel encenada para despertar simpatia pela causa palestiniana. Um ministro israelita chegou a sugerir uma pena de prisão perpétua para a adolescente. Ainda que a assimetria de forças entre as duas partes beligerantes seja uma evidência, a direita israelita questionou a passividade do soldado, que escolheu não reagir, atitude lida como um sinal de fraqueza. (O Exército israelita, por sua vez, afirmou que o soldado “agiu profissionalmente”, ao mostrar contenção.)

Três semanas depois, Ahed continua presa, assim como a mãe, Nariman, que foi detida por incitamento quando foi visitar a filha para tentar garantir que esta não era interrogada sozinha.

“Uma família como qualquer outra”?

As imagens da agressão foram filmadas à entrada da casa da família Tamimi, na localidade de Nabi Saleh, onde a população palestiniana organiza marchas semanais contra a expropriação de terras para um colonato judaico vizinho.

Esta família de activistas da Fatah – a facção do presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas – tem um longo historial de luta na aldeia de Nabi Saleh. O pai de Ahed, Bassem Tamimi, é um destacado activista palestiniano que foi várias vezes detido no âmbito destas acções de protesto, que levam muitas vezes a confrontos com militares israelitas. A família é conhecida por, durante as marchas, provocar os soldados e filmar a sua reacção. E também por incentivar as crianças a participar na luta.

Ahed Tamimi (à esquerda na imagem) tenta impedir que um soldado israelita detenha uma criança em Nabi Saleh, perto de Ramalah, em Agosto de 2015. Foto: Mohamad Torokman /Reuters

Ahed Tamimi não é, por isso, uma cara desconhecida para quem acompanha os protestos na Cisjordânia. Em 2012, tornaram-se virais as imagens da pequena adolescente de punho cerrado a confrontar um soldado israelita. Por este acto, recebeu o Prémio Hanzala pela Coragem, na Turquia, onde foi recebida pelo Presidente Erdogan. Há dois anos, também correu o mundo um vídeo que mostra Ahed a morder a mão de um soldado que tentava prender o irmão.

Para Shahd Wadi, investigadora palestiniana que vive em Portugal há mais de 15 anos, “nada disto é novo” – os protestos, a reacção israelita, a prisão de uma menor. Mas “é exactamente isso que as pessoas parecem não saber”.

Em 2013, no final do doutoramento, Shahd regressou à Palestina e esteve na localidade de Nabi Saleh, onde participou nos habituais protestos de sexta-feira. “Durante a manifestação, entrámos numa outra casa para fugir das bombas de gás lacrimogéneo, e depois da manifestação acabamos noutra casa. Na Palestina é assim”, descreve a investigadora, que é também activista dos direitos do povo palestiniano. “Quando uma pessoa vai às manifestações, vai conhecendo várias casas. Naquele dia entrei em quatro, e uma delas foi a da família Tamimi”.

Na altura em que Shahd Wadi esteve na Cisjordânia, Ahed já tinha recebido o Prémio Hanzala. “Ninguém me disse e nem reparei que ela era a miúda que ganhou o prémio. Era tímida, muito low profile, nunca imaginaria que aquela miúda, lá fora, enfrentasse os soldados.” Já lá vão quase cinco anos, mas ainda é esta a imagem que guarda de Ahed e da família Tamimi: uma rapariga sem ares de heroína, uma casa de uma família normal. “Se não tivessem a ocupação praticamente dentro da casa, seriam uma família como qualquer outra.”

“Outros modelos de mulheres palestinianas”

A imagem de Ahed Tamimi parece cuidadosamente construída para se tornar um ícone apelativo no Ocidente: uma rapariga loira, que não usa véu e que tem uma atitude insubmissa, que foge ao estereótipo da mulher palestiniana – uma rapariga, afinal, tão parecida com as ocidentais. Mas Shahd Wadi rejeita a ideia, antes de mais, de que a imagem de Ahed seja “ocidentalizada”. “Ninguém na Palestina colocou esta questão de que ela não está com o véu, ou a cabeleira… Precisamente porque não é ocidental. Na Palestina há mulheres diversas, diversos modelos. Quando nós vamos às cidades na Palestina, isto é quase o modelo mais comum.”

Wadi, que é investigadora em assuntos feministas e palestinianos e foi autora da primeira tese em Estudos Feministas feita em Portugal, considera que a imagem desta jovem – que descreve como uma adolescente normal, dentro dos padrões palestinianos – deveria antes apelar à “sensibilização da opinião ocidental, mais do que qualquer outra coisa”. A activista, que trabalha com a Missão Diplomática da Palestina em Portugal mas não quis falar em nome da mesma, considera que Ahed “é um bom ícone” também porque contribui para acabar com os estereótipos sobre as meninas palestinianas.

“Ela não tem nenhuma arma, tem a sua própria mão, nem sequer pedras carrega. Isto contraria a imagem [alimentada por] Israel de que as mulheres palestinianas são terroristas islâmicas, o que não é verdade.”

“Tem havido uma falta de apoio curiosa da parte dos grupos feministas ocidentais, activistas de direitos humanos e figuras de Estado que em outras alturas se apresentariam como promotores dos direitos humanos e defensores do empoderamento das raparigas” (Shenila Khoja-Moolji)

Na sua tese de mestrado – “Feminismos dos corpos ocupados: As mulheres palestinianas entre duas resistências” – Wadi concluía que, “apesar de viverem sob ocupação e numa sociedade sexista, há muitos sinais de um certo grau de emancipação política e cultural” das mulheres palestinianas.

Isto também se vê nas imagens que chegam dos conflitos na Cisjordânia. “Não há um modelo único de mulheres palestinianas. A mãe dela utiliza véu, ela não utiliza. E mesmo nesta última revolta palestiniana, que começou em 2015 e que está a continuar, vemos nas manifestações as meninas de unhas pintadas e de calças justas ao lado de meninas que estão com o véu islâmico, uma ao lado da outra”.

“Há tantas como ela!”

A figura forte de Ahed Tamimi pode parecer uma vantagem para despertar a atenção dos países ocidentais, mas Shahd Wadi considera que isto pode ser também um ponto fraco. Para a investigadora, Ahed “é um ícone que sai daquilo que o ocidente espera das mulheres palestinianas, não tem véu, não encaixa no papel que as feministas ocidentais esperam das mulheres palestinianas, de serem vítimas das suas próprias sociedades”.

No final de Dezembro, um artigo de opinião publicado no site da Al Jazeera e partilhado nas redes sociais por páginas de apoio à causa palestiniana questionava porque é que o Ocidente “aplaudia Malala Yousafzai, mas ignorava Ahed Tamimi”.

“Tem havido uma falta de apoio curiosa da parte dos grupos feministas ocidentais, activistas de direitos humanos e figuras de Estado que em outras alturas se apresentariam como promotores dos direitos humanos e defensores do empoderamento das raparigas”, escrevia Shenila Khoja-Moolji, investigadora na área dos estudos de género, Islão e juventude na Universidade da Pensilvânia nos EUA.

Manifestação pela libertação de Ahed no Grand Central Terminal, em Manhattan, EUA. Foto: Amr Alfiky /Reuters

Mas será adequada a comparação ao caso de Malala Yousafzai? Seria de se esperar mais apoio, por exemplo, dos movimentos feministas? Shahd Wadi liga as duas situações sublinhando que “é tão fácil reagir quando se trata de uma mulher árabe a ser vítima dos homens árabes… Mas quando é vítima de uma ocupação israelita, a reacção não é a mesma”.

“Isto para mim é muito importante, mostrar um novo modelo das mulheres palestinianas para acabar com todas as narrativas que não são verdade. A narrativa do terrorista, tal como a narrativa da vítima que precisa da ajuda das mulheres brancas, desde que seja em coisas que não sejam da ocupação, ou para a salvar da sua sociedade”.

Para a activista, Ahed “merece muito mais visibilidade do que aquela que tem”, precisamente, porque “não é a única na Palestina – há tantas como ela.” “Para mim, estes ícones estão a aparecer, e não é só Ahed. Tanto a menina laica, de esquerda, sem véu, como as mulheres com véu, são ícones daquela luta”, acentua Wadi, que acrescenta alguns exemplos.

Em 2014, a estudante Lina Khattab foi presa pelo Exército israelita por participar num protesto a pedir a libertação de prisioneiros palestinianos. Foi condenada e cumpriu seis meses de prisão. “Era uma rapariga que estava na universidade, uma dançarina, também não encaixa no modelo que o Ocidente pensa de nós”, sublinha Wadi. No ano seguinte, a estudante Dalia Nassar, uma activista palestiniana, foi atingida por um atirador ao participar em protestos contra as forças israelitas perto do colonato de Beit El. A bala perfurou-lhe o pulmão esquerdo e ficou alojada no corpo. Uma pesquisa pelos arquivos dos principais jornais de língua inglesa mostra que as histórias destas mulheres passaram ao lado da opinião pública internacional.

Mas o caso de Ahed Tamimi – ainda que tenha por detrás uma história de activismo familiar e um aproveitamento hábil das redes sociais – conseguiu superar essa barreira, e a investigadora luso-palestiniana espera que possa contribuir para uma mudança da imagem estereotipada não apenas das mulheres árabes, mas da própria luta palestiniana.

Apesar das complexidades da sua persona, o caso de Ahed Tamimi obriga o Ocidente a olhar para questões como os abusos de direitos humanos na detenção de menores de Israel. Num relatório de 2013, a UNICEF concluía que “o abuso de crianças que entram em contacto com o sistema de detenção militar parece ser comum, sistemático e institucionalizado ao longo de todo o processo, desde o momento da prisão até à acusação e eventual condenação e sentença”. O crime mais comum pelo qual respondem: atirar pedras.

E o perfil da família activista – ou “terrorista”, sob a óptica de alguns israelitas – também pode visto como apenas mais uma possibilidade de existir, enquanto palestinianos, naquele território. “[Bassem Tamimi] e os seus filhos conheceram apenas uma vida de checkpoints, documentos de identificação, detenções, demolição de casas, intimidação, humilhação, violência. Isto é a normalidade deles”, recorda num artigo de opinião a jornalista Harriet Sherwood, correspondente do jornal The Guardian, que entrevistou Ahed quando esta tinha 12 anos.

Uma normalidade que, para os palestinianos, o Ocidente parece ter esquecido – ou escolhido encarar como normal. Ao longo da conversa, Shahd Wadi recordou que o caso de Ahed Tamimi é “apenas mais um”. “Há dois anos fizeram-lhe uma entrevista em árabe, ela reconheceu precisamente isso. ‘Não sou nenhuma heroína. Todas as meninas da minha idade enfrentam coisas parecidas com estas. Tenho sorte porque os meus pais têm uma máquina de filmar e fui filmada várias vezes. Não sou heroína nem sou o único exemplo.’”

Manifestação no Líbano pela libertação de Ahed, Foto: Nabil Mounzer /EPA

Ahed está detida e foi formalmente acusada em Israel. Foto: Ammar Awad /Reuters

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