Ele foi um dos terrores dos fiscais, até que se tornou um deles. Sua vida contém o drama das tartarugas no Tabuleiro do Embaubal, no Pará
Por Eliane Brum, na Amazônia Real/El País
Eu me criei acreditando que o que Deus deixou não se acaba. Mas acaba.
Luiz Cardoso da Costa, 53 anos, é um daqueles homens que carrega uma densidão no rosto. Sua vida contém o drama das tartarugas no Tabuleiro do Embaubal, no Pará. Mas contém também o drama de ser ribeirinho entre tantas marés e tantos mundos. E não é apenas uma vida contada, mas uma vida que lhe assinalou com uma fundura nos olhos que encaram com firmeza. Vamos escutá-la.
Luiz foi um dos maiores caçadores de tartarugas do território, famoso por sempre escapar da repressão. Tanto que seu apelido era “quiabo”, legume liso. Não porque era mau, embora confesse que foi mau em alguns momentos, mas porque caçar tartarugas, na sua infância, era um grande feito. E era ensinado de pai para filho.
O de Luiz ensinou-o a caçar tartarugas quando o menino completou 9 anos. O gesto tinha a força de um rito de passagem. O garoto de rio pegou a sua no anzol, num igarapé de nome Jararaí, braço de outro igarapé por nome Santa Tereza. A segunda já capturou com uma técnica que usa varas amarradas a uma árvore, fazendo uma espécie de jirau. E ali o pequeno caçador que era ele ficava na “espera”. O casco da tartaruga era então perfurado com o “tapuá”, uma haste de madeira bem dura, com um ferro na ponta.
E era grande um homem que atravessava a comunidade com uma tartaruga na cabeça. Não porque ribeirinhos são maus, mas porque a tartaruga é, sempre foi, uma das principais fontes de proteínas da sua dieta. E também um meio de sobrevivência. Quando a seringa não teve mais mercado, a tartaruga se tornou também uma das principais fontes de renda da região. Por mais de três décadas, Luiz viveu desse comércio. E seu orgulho era o de chegar bem perto dos homens do Exército, que na época faziam a proteção das tartarugas na época da reprodução, e sair com algumas delas bem debaixo do nariz dos militares.
Quem mais conhece o comportamento das tartarugas são seus inimigos íntimos, os caçadores: é preciso fazê-los mudar de lado
Um dia, no início dos anos 2000, um gestor do IBAMA convidou o caçador para mudar de lado. Ele percebeu dois fatos: o primeiro era que os caçadores de tartarugas são aqueles que mais conhecem as técnicas de burlar a fiscalização, e também são eles que mais conhecem o comportamento das tartarugas, como inimigos íntimos que são. “De saber onde tá uma tartaruga. De saber como capturar ela. De saber como se aproximar dela. Entendeu? De saber como amarrar uma tartaruga. Amarrar, pegar uma corda e pear ela. De saber como carregar. Como lidar, na verdade, com o animal”, explica Luiz. E ele tem orgulho quando explica. O gestor do IBAMA percebeu ainda um terceiro fato: as tartarugas só teriam proteção real quando os ribeirinhos pudessem enxergá-las por outro ângulo.
Luiz tornou-se um agente contratado da fiscalização. Ao observar as tartarugas não mais como carne e como renda, mas como vida e como beleza, algo se passou com ele. Algo bem grande, que deu a ele aquela camada de densidade no rosto. “Eu enxergava, mas não tinha esse outro conhecimento. Você só aprende a cuidar daquilo que você conhece. Não é verdade? A partir do momento em que você passa a conhecer, você passa a ter respeito por aquilo. Que eram animais muito antigos, entendeu? Que tinham conseguido vencer as extinções das eras. Então eu fui mudando por dentro, ouvindo os mestres que vinham aqui trabalhar e dar palestras.”
A maioria dos ribeirinhos desaprova a caça comercial em grande escala: eles sabem que, se forem capturadas na época da reprodução, as tartarugas vão desaparecer do rio e do mundo
Luiz tornou-se um dos melhores agentes de fiscalização que o Tabuleiro do Embaubal já teve. Ou talvez o melhor deles. Ele era o protetor que conhecia todos os truques dos caçadores. Mas era também um ribeirinho que conhecia a alma ribeirinha. Ele não tinha deixado de ser, mas acrescentado uma outra possibilidade de ser o que era. No ofício de proteger aquelas mães magníficas, escavando seus ninhos na praia, Luiz não tinha a truculência como arma, como acontece com tantos agentes. Ele conversava. Porque também só compreendeu quando conversaram com ele.
Nas últimas décadas, porém, a caça tornou-se mais profissional e também mais sangrenta. Não é mais o ribeirinho caçando para comer ou ganhar uns trocados, caçando com o tapuá. Estabeleceu-se uma caça comercial de grande escala, a partir das cidades da região. Os caçadores usam o espinhel, barrando a viagem migratória das tartarugas com uma linha de até mil anzóis. Ou usando malhadeiras. Às tartarugas são capturadas às dezenas, até centenas, para o mercado das capitais do norte do país. As mais valiosas são justamente as “ovadas” – ou seja, ainda carregadas de ovos. Elas chegam a valer 200 reais no mercado ilegal.
O risco para a espécie multiplicou-se. Essa caça, a maioria dos ribeirinhos desaprova. Mais do que qualquer outro, eles sabem que, se as tartarugas forem assassinadas numa proporção tão grande, e justamente na época em que se reproduzem, elas vão desaparecer do rio. E aí não haverá mais nada. Nem beleza. Nem alimento. Se um ribeirinho não tiver outra fonte de proteína disponível, comer uma tartaruga não é crime. Comercializá-la sempre é.
Luiz não tornou-se apenas um protetor, ele é também um professor. Não é reconhecido no papel como um, mas é o que ele é. Há uma geração de doutores da academia, como a própria Cristiane Costa Carneiro, bióloga que hoje atua como técnica do Ideflor-bio na base de fiscalização do Tabuleiro, que aprenderam com Luiz e com outros ribeirinhos muito do que sabem de tartarugas-da-amazônia.
Cristiane costuma reconhecer seus “mestres”, um ato raro no meio acadêmico, em todas as áreas. Os pesquisadores aprendem no campo tudo o que os ribeirinhos sabem, que é muito e que só eles sabem. Mas, ao publicar seus trabalhos, se “esquecem” de dar crédito aos detentores do conhecimento, perpetuando a desigualdade entre os saberes. São muitas as referências e as notas de rodapé nas teses e publicações acadêmicas, mas em geral citando outros doutores – ou a si mesmos. Assim, Luiz, vezes demais, é o intelectual sem crédito.
Na madrugada de 1o de janeiro de 2018, a Ilha do Juncal já tinha alagado muito, mais cedo do que outros anos. Centenas de filhotes não conseguiam alcançar a superfície. Morriam afogados ainda dentro da areia. Era chegado o momento de fazer uma espécie de “cesariana”, escavando os ninhos e ajudando-os a nascer.
Mas havia pouca gente. Três dos seis agentes de plantão no feriado da virada do ano não apareceram para trabalhar. Luiz não está na lista de agentes da atual gestão da prefeitura de Senador José Porfírio, que preferiu colocar funcionários por indicações políticas, gente que tinha ajudado na campanha do prefeito ou de algum vereador. Luiz está desempregado. Mas o tempo das tartarugas é o tempo dele. Sempre será, para além dos desmandos da politicagem rasteira.
Luiz atendeu ao chamado com sua família expandida. Arrebanhou parentes como voluntários e os arrancou da rede ou da cama antes das 5 horas da madrugada do Réveillon para passar a manhã salvando filhotes. “Isso aqui tudo é família. Aqui tem fuzileiro naval, tem engenheiro florestal, tem pedreiro, tem carpinteiro…” Luiz era todo orgulho. Ele sabe que está formando uma geração diferente, capaz de enfrentar os desafios das mudanças climáticas.
Pergunto ao professor Luiz qual foi o grande momento de virada, entre o predador e o protetor. O homem do rosto de densidão sofre um abalo. Os olhos de enxergar tartarugas se afogam.
– A emoção maior que eu senti foi quando eu trouxe meus filhos para ver a desova das tartarugas. Quando eu trouxe minhas crianças e vi elas admirando as tartarugas… Porque, quando eu era criança, não teve ninguém pra me orientar. Pra dizer: “Olha, meu filho, isso o que tá acontecendo aqui é muito importante. A mãe natureza pede que a gente cuide delas”. Eu não tive ninguém pra me dizer isso, mas meus filhos tiveram eu. E isso deu um choque no meu coração.
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Luiz Cardoso da Costa, uma das pessoas que mais conhece o comportamento das tartarugas-da-amazônia, no Tabuleiro do Embaubal. Foto: Lilo Clareto.
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