É preciso muita falta de caráter para dar ouvidos à Standard & Poor’s

Por Almir Felitte*, no Justificando 

Na semana passada, os grandes jornalões do país protagonizaram cenas que ainda não se sabe se eram de pânico ou de êxtase (ou se de êxtase travestido de pânico). Só o que se sabe é que o rebaixamento da nota de crédito do Brasil dada pela agência de risco Standard & Poor’s causou uma avalanche de notícias sobre a economia do país.

O rebaixamento significa, de forma bem resumida, que o Brasil se afastou ainda mais de ser considerado, aos olhos do mercado, um bom pagador.

Na prática, isso quer dizer que os investimentos no país podem diminuir, já que agora somos considerados um mercado ainda mais arriscado para os investidores.

Temos de concordar que a situação econômica do Brasil realmente não vai bem. Basta uma volta pelas ruas de uma grande cidade, com comércios fechados e pessoas morando em praças e calçadas, para constatar o óbvio. Mas a Standard & Poor’s não quis apenas constatar o óbvio. As agências de risco sempre querem mais.

A justificativa usada pela S&P para o rebaixamento foi, basicamente, a demora do atual governo para aprovar as reformas que pretende fazer. Em suas palavras“apesar de vários avanços da administração Temer, o Brasil fez progresso mais lento que o esperado em implementar uma legislação significativa para corrigir a derrapagem fiscal estrutural e o aumento dos níveis de endividamento”.

Sim, a Standard & Poor’s considera o governo de Temer um avanço para o país. A reforma trabalhista que precarizou nosso emprego e o teto de gastos que nos condenou a 20 anos de subdesenvolvimento são, para as agências de risco, um progresso.

E como qualquer outro pacotão de austeridade que se preze, não poderia faltar a cereja do bolo. A Standard & Poor’s coloca a demora na aprovação da reforma da Previdência como um dos principais motivos para a queda da nota do Brasil. E é exatamente neste ponto que se inicia o terrorismo econômico e midiático sobre o povo brasileiro.

Na grande imprensa, a declaração da agência de risco ganhou tons apocalípticos. Pouco importa se, já em 2016, a mídia alternativa destacava que a agenda do secretário da Previdência era dominada por bancos, inclusive estrangeiros. Importa menos ainda que as agências de risco mundiais, principalmente a própria Standard & Poor’s, tenham um histórico de escândalos que jogaram toda sua credibilidade na lata do lixo. O que importa é que as declarações estavam de acordo com o interesse do grande capital, e isso é o que basta para um fato virar notícia.

Mas é preciso muita falta de caráter para repercutir as declarações destas agências de risco como se elas merecessem algum crédito.

Vejam só este breve histórico da própria Standard & Poor’s:

A agência de risco, pouco antes da bolha imobiliária americana estourar e se transformar na grande crise de 2008, concedeu notas de crédito altíssimas aos ativos baseados em hipotecas imobiliárias que, mais tarde, se revelariam altamente tóxicos. Vale lembrar que estes ‘subprimes’ foram o epicentro de toda a crise econômica que se iniciou em 2008 e que se alastrou pelo mundo causando desemprego e dívidas públicas impagáveis.

Foi também a Standard & Poor’s que, naquele ano, concedeu outra nota altíssima ao banco Lehman Brothers, que, no mesmo mês, viria a falir, espalhando pânico no mercado financeiro mundial.

Mas não sejamos injustos. A Standard & Poor’s não estava sozinha. Outras agências de risco cometeram estes mesmos “erros” escandalosos. “Erros”, assim, entre aspas, já que se acredita que as agências de risco agiram de forma premeditada com interesse em ganhar sua parte no mercado de ‘subprimes’.

Por isso mesmo, a S&P, em 2015, fechou acordo para pagar uma multa de U$ 1,37 bi às autoridades americanas por seu papel na crise de 2008. Da mesma forma, a Moody’s aceitou pagar U$ 864 milhões pelo mesmo motivo. Saiu barato para quem fez tanto mal ao povo do mundo inteiro.

Esta atuação na crise de 2008 colocou em xeque a credibilidade de todas as agências de risco do mercado financeiro global. Ficou evidente que elas agiam por interesses políticos e econômicos privados, e não por critérios técnicos.

Por tal motivo, economistas renomados vêm dando declarações que expõem ao ridículo essas agências. Paul Krugman, por exemplo, em 2011, quando a S&P rebaixou a nota americana, afirmou que as agências de risco eram “o último lugar em que qualquer pessoa deveria procurar por julgamentos sobre as perspectivas da nação”. Ele comparou, ainda, a S&P a um jovem que mata seus pais e depois pede perdão por ser órfão, e disse que eles eram as últimas pessoas em quem devíamos confiar.

Outro Nobel da economia que expressou a mesma ideia foi Joseph Stiglitz, que afirmou ser “surpreendente que as pessoas levem as agências de rating muito à sério”. Para Stiglitz, as agências atuam de forma política e irresponsável e são companhias privadas que “vendem serviços de rating e ganham muito dinheiro”.

Uma pena que nossos jornalões não acompanhem os dois prêmios Nobel. Parecem, mesmo, estar mais afinados com o Governo de Temer e com os grandes bancos que já esfregam as mãos de olho em nossa Previdência.

E assim segue funcionando o mercado financeiro. Aliás, a manipulação de dados e a venda de relatórios que desestabilizem governos arredios ou que afaguem governos amigos, tudo em prol do interesse privado de poderosos, parece ser praxe neste mercado.

O que dizer do mais recente escândalo envolvendo o Banco Mundial e o Chile? Na semana passada, Paul Romer, economista-chefe do Banco Mundial, admitiu, em entrevista ao The Wall Street Journal, que o organismo financeiro manipulou dados para alterar a posição do Chile no relatório “Doing Business”.

Durante o primeiro mandato da esquerdista Michelle Bachelet, o Banco Mundial alterou a metodologia do estudo para rebaixar o Chile. Já no mandato seguinte, do direitista liberal Piñera, o estudo era manipulado para que a posição chilena melhorasse. Quando Bachelet foi reeleita, o Banco Mundial tratou de novamente fraudar o relatório para prejudicar a esquerdista. Tudo por motivações políticas, conforme admitiu Romer, cujo pedido de desculpas deixou em aberto a possibilidade de o Banco Mundial ter feito o mesmo com outros países.

Toda essa manipulação custou ao Chile o rechaço a um novo Presidente esquerdista e a reeleição do liberal Piñera que, em boa parte da sua campanha, jogou com o terrorismo econômico e com o medo do Chile se tornar uma Venezuela (com o uso do ridículo e imoral termo “Chilezuela”).

Vale lembrar, ainda, que este mesmo Banco Mundial já havia, no ano passado, lançado um relatório sobre o Brasil onde defendia medidas de austeridade. Na ocasião, escrevi um artigo intitulado “Às favas com o Banco Mundial”, no qual questionei alguns dados usados pela instituição que pareciam mentirosos ou distorcidos.

Mais uma mostra do que se tornou o mercado financeiro na ordem liberal. Um mercado comandado por uma elite que, aparentemente, parece ter comprado os “direitos de uso” das ciências econômicas que, há muito, vêm se afastando cada vez mais do método científico para curvar-se àquele que possa pagar mais.

Vivemos, hoje, a ditadura de bancos, grandes fundos de investimento e agências de risco, que têm poder o suficiente para manipular a ciência e o conhecimento em prol do status quo.

Por isso, não nos impressionemos com os malabarismos argumentativos de instituições como a Standard & Poor’s. Não há linguagem técnica suficientemente forte que possa esconder falta de caráter tão grande.

*Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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