Sérgio Moro deveria se candidatar à Presidência pelo bem da democracia

Por Mário Magalhães, no The Intercept Brasil

Como aprendem os escribas, inclusive os dedicados somente às cartas de amor, o emprego de ironia costuma ser expediente de risco. Sem a voz para evidenciar o tempero irônico, é comum a mensagem ser lida ao pé da letra. Em 2016, gracejei no Twitter: “Ao golear o Haiti por 7 a 1, a seleção brasileira calou os críticos do 7 a 1 da Alemanha”. Nunca apanhei tanto, pois o pessoal interpretou como pitaco sério o que não passava de chiste. Ignoro o que é pior: ser espinafrado pelo que não disse – ou não quis dizer – ou descobrir que muita gente me supõe capaz de devanear tamanha sandice.

Para prevenir mal-entendidos, no jornalismo recomenda-se parcimônia em tiradas irônicas – na minha opinião, virtualmente interditadas nos gêneros notícia e reportagem. A não ser que se adote um recurso insultuoso aos interlocutores capazes de compreender recados maliciosos: o aviso escancarado “contém ironia” ou o mais viçoso “SQN” (“só que não”). Proclamar o propósito irônico é rebaixar o outro a parvo.

O circunlóquio acima destina-se a enfatizar não uma ironia, o que constituiria ofensa à inteligência, mas a ausência dela. Eu considero mesmo que a candidatura do juiz federal Sérgio Fernando Moro à Presidência da República seria um serviço à democracia.

O calendário não é empecilho: para concorrer em outubro, o magistrado poderia se filiar a partido político até abril.

Ele não careceria de eleitores: pesquisa Datafolha do finzinho de setembroestabeleceu Moro como o único antagonista, num segundo turno renhido, que lograria empatar com o agora possivelmente inelegível Luiz Inácio Lula da Silva (no Datafolha divulgado nesta quarta, o nome de Moro não foi submetido aos entrevistados).

Igualados pela margem de erro, o ex-presidente recolheria 44%, e o juiz, 42% dos sufrágios. Lula bateria Geraldo Alckmin, João Doria, Marina Silva e Jair Bolsonaro. O levantamento é de antes da condenação do petista a doze anos e um mês de prisão, por corrupção e lavagem de dinheiro, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. E de depois da sentença de primeiro grau em que Moro condenou Lula pelos dois crimes.

O titular da 13ª Vara Federal de Curitiba ofereceria perspectiva de triunfo ao imenso eleitorado que, determinado a derrotar Lula, rejeita Bolsonaro como extremista. Ou não reconhece o viúvo mais choroso da ditadura como contendor capaz de sobrepujar o antigo metalúrgico (a confiar no Datafolha, Lula superaria o capitão hoje por 49% a 32%).

A prioridade desses eleitores é vencer Lula ou, na hipótese da manutenção de seu impedimento legal, um apadrinhado. Moro aparenta mais vigor para o desafio do que o deputado Bolsonaro, que no passado pregou o fechamento do Congresso.

O juiz seria uma opção mais competitiva para os brasileiros que apoiaram – e ainda apoiam – postulantes do PSDB, a agremiação que conquistou duas vezes o Planalto, nos pleitos de 1994 e 1998 (com FHC), e amargou vices em 2002 (José Serra), 2006 (Geraldo Alckmin), 2010 (Serra) e 2014 (Aécio Neves). No Datafolha recém-saído do forno, Lula atropela Alckmin com 19 pontos de distância, 49% a 30%. Nem os aduladores cogitam Aécio e Serra presidenciáveis.

Com a foto de Moro na urna, o empresariado graúdo encerraria a procura por um candidato dito de centro com envergadura política para confrontar Lula ou alguém abençoado pelo ex-presidente. Ganharia uma voz possante para propagandear as reformas patrocinadas por Michel Temer. A rigor, o magistrado das camisas pretas seria um concorrente de centro-direita, mais conservador do que Fernando Henrique em suas bem-sucedidas campanhas.

Não reside, porém, no placar eleitoral, com êxito ou revés, a contribuição cívica que Sérgio Moro daria ao país disputando o Planalto – o juiz tem reiterado que descarta a candidatura. E sim na explicitação de sua aparente condição de adversário de Lula, percebida – com ou sem razão – por vastidões de cidadãos que pouco ou nada entendem das leis e seus códigos, mas sabem o que são justiça e injustiça.

No tempo em que Dilma periclitava na Presidência, às vésperas do impeachment, ela nomeou Lula como ministro da Casa Civil. Em reação à iniciativa, Moro proporcionou a divulgação de conversa telefônica interceptada, no instante em que foi gravada, sem autorização judicial.

O Supremo Tribunal Federal vetou Lula no Ministério, selando o infortúnio da presidente. O mesmo tribunal chancelaria, em situação semelhante, a promoção de Moreira Franco a ministro de Temer, assegurando ao ex-governador do Rio de Janeiro o foro especial que privilegia os réus com morosidade generosa.

Moro ordenou a condução coercitiva de Lula para depor à Polícia Federal. O petista, nas convocações anteriores, apresentara-se por vontade própria. Não foram poucos os que identificaram no procedimento judicial o intuito de humilhação.

Quando multidões tomaram as ruas avacalhando Lula e aclamando Moro, o juiz emitiu nota de agradecimento pelo apoio. Até outro dia, saudação a manifestantes parecia mais apropriada a ativistas políticos do que a magistrados. Estes deveriam se preservar acima das partes em conflito – assombra que ainda tenha sentido enunciar tal obviedade.

No julgamento no TRF-4, pronunciou-se na tribuna um assistente de acusação, em nome da Petrobras. Associava-se, portanto, ao Ministério Público Federal, que batalhava pela condenação de Lula. Portanto, MPF mais Petrobras, coautores da ação, versus o réu Lula (sem falar nos demais acusados). Moro, responsável pela sentença em primeiro grau, não se sentiu desconfortável ao palestrar, semanas antes, em evento promovido por uma das partes, a Petrobras.

Assim como se mostrou cômodo confraternizando com Aécio Neves em convescote público. É verdade que os rolos do senador derrotado por Dilma em 2014 não correm na jurisdição de Moro. Mas a camaradagem do principal juiz da Lava Jato com um contumaz investigado da Lava Jato soa, cedendo ao eufemismo, excêntrica.

A candidatura presidencial de Moro poderia encarnar o ideário de parcelas do Judiciário. No tribunal de Porto Alegre, os três juízes federais esbanjaram elogios ao magistrado de Curitiba (a Constituição denomina “juízes” de Tribunais Regionais Federais; “desembargadores” integram, estipula a Carta, os Tribunais de Justiça dos Estados).

Ao endossar a condenação decidida por Moro e aumentar a pena de Lula, o juiz Victor Laus pontificou: “Quem responde por crime tem que ter participado dele. E, para ter participado, alguma coisa errada ele fez”.

E o princípio constitucional da presunção de inocência (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”)?

O “Houaiss” ensina que “responder”, na acepção jurídica do verbete, significa “oferecer resposta, contestação, defender-se em juízo”. Se um réu responde em juízo, “tem que ter participado” de crime? Em caso de resposta afirmativa, inexistiriam inocentes.

O juiz Ricardo Leite, que na semana passada mandou apreender o passaporte de Lula, anotou que aliados do ex-presidente buscariam a “politização de processos judiciais”. Quando as partes politizam, lamenta-se, mas se entende o objetivo: influenciar a decisão da Justiça. E quando magistrados politizam? O juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato, critica em rede social, e não nos autos, correligionários de Lula.

Presidente do TRF-4, o juiz Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz qualificou de “irretocável” a sentença de Moro no processo do triplex do Guarujá. Mais tarde, reconheceu que não tivera acesso às provas, ao processo.

A politização judicial se combina com a judicialização da política, assim parece. Bem fez o ministro Joaquim Barbosa. Aposentou-se do STF para só mais à frente ensaiar o ingresso na arena política partidária.

O incômodo com o ativismo político judicial não coincide necessariamente com a convicção de inocência de Lula nos numerosos processos em que foi denunciado. É possível que o petista seja culpado, ao menos em parte, das acusações. Para isso, provas são imprescindíveis, para além de malabarismos retóricos e opiniões pré-concebidas.

No processo do triplex, não tive a impressão de existirem provas. Li e reli a sentença de Moro e assisti à sessão fatal do TRF-4, ouvindo os argumentos de promotores, advogados e juízes. Não encontrei menção a prova convincente – indício é outra coisa – de propriedade do triplex, de ato de Lula em troca da alegada propina. Ao contrário dos claros indícios e evidências de promiscuidade do ex-presidente com a construtora OAS, detentora de contratos com a União. Promiscuidade pode resultar em crime. Nem sempre resulta. Pode ter havido crime? Pode, mas não foi provado.

O acórdão do TRF-4 deve impedir Lula, o favorito à Presidência, de se submeter ao voto popular. E ameaça levá-lo à prisão.

O episódio evoca um affaire de mais de meio século. O ex-presidente Juscelino Kubitschek morava num apartamento novo construído por empreiteira que tocara uma obra concedida por seu governo. JK visitara o imóvel durante a construção, sua esposa Sarah Kubitschek pediu alterações no projeto arquitetônico, e um mestre de obras foi afastado devido a broncas dela.

O apartamento diante do mar de Ipanema estava registrado em nome do banqueiro Sebastião Pais de Almeida, que havia sido ministro de Juscelino. A ditadura parida em 1964 e seus arautos na imprensa alardearam que JK seria o dono oculto do apê. A história demonstrou que não, consagrando a versão do ex-presidente. A relação revelou-se imprópria, porque promíscua (de governante com empresa contratada pelo governo). Mas não criminosa.

A roubalheira na Petrobras e outras farras que o PT herdou de governos passados e manteve com apetite são outros quinhentos. Provas inequívocas se acumularam. O partido se lambuzou, na definição do prócer petista Jacques Wagner, escolhendo um verbo indulgente. Se Lula chefiou ou participou dos esquemas de corrupção, é algo a provar, se prova houver, acima de dúvida razoável. Isso num Estado que se pretenda democrático e de Direito.

Para que a Justiça não apenas seja (em tese) justa, mas igualmente pareça justa, seria aconselhável que os magistrados se contivessem, na conflagração política que sacode o Brasil de 2018.

E que Sérgio Moro trocasse a toga pela candidatura a presidente. Teria o respaldo dos milhões de brasileiros que simpatizam com ele ou o idolatram. Os milhões que dele divergem ou desconfiam não poderiam mais, então, queixar-se de que o juiz faz política na tribuna errada.

Foto: Nelson Almeida/AFP/Getty Images

Comments (1)

  1. Com todo respeito a opinião de Nelson Almeida. Penso que o Juiz Sérgio Moro não deseja, nem tem perfil para ser presidente de um pais como o Brasil. Quem sabe, tivesse nascido na Noruega ou na Finlândia… Enfim, gostaria de ve-lo esolhido como ganhador do Premio Nobel da Paz.

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