Por Roberto Tardelli, no Justificando
“Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?”
Esse parágrafo duríssimo extraio do livro “O que é Lugar de Fala?”, escrito da Mestre em Filosofia Djamila Ribeiro, lançado pela Letramento e pelo Justificando.
A autoria desse grito por existência é de Sojourner Truth, nome da americana Isabella Baumfree, que, nascida escrava, efetuou a transição para a dita liberdade. Em um encontro de mulheres, ocorrido em 1.851, ela se espanta com as feministas da época: brancas, ricas e que viviam a anos-luz de sua sofrida realidade. Ficou-lhe claro que aquelas mulheres não falavam para todas as mulheres, mas para algumas mulheres e não compreenderiam, na Casa Grande, os gritos que saíam das senzalas recém-derrubadas nos Estados Unidos.
Aquela mulher viu mulheres falando sobre mulheres, mas algo naquelas mulheres excluía Soujorner, ela não se via naqueles que se sucediam e quem discursava não a via. Ela, mulher, em um encontro de mulheres, sequer ali era vista, notada, visualizada, sentida, considerada. Ela era invisível a todos que ali se encontravam.
Em seu livro, Djamila Ribeiro lança suas flechas, atira suas lanças e acerta o peito do discurso, não apenas do discurso conservador, esse há muito perdido e alienado, mas do discurso dito progressista, avançado, propositivo. Em seu libelo, é indesmentível que a luz do palco só ilumina parte do elenco dessa peça histórica que é a evolução dos direitos, a evolução da liberdade.
É certo que ninguém pode partir de sua história pessoal como referência coletiva. Todavia, milhões de experiências históricas semelhantes, milhões de invisibilidade juntas, milhões de opressões absolutamente direcionadas às mulheres negras criam uma experiência histórica arquetípicas, se assim se pode dizer, com eloquência bastante para reconheçamos todos: há excluídas nessa progressão feminista.
Djamila anuncia seu Bloco das Inconformistas e pede passagem, procurando dar voz às invisíveis. Um fato curioso: nas investigações de crimes intrafamiliares, a polícia tem uma fonte inesgotável de informações, exatamente, a empregada doméstica, em geral negra, invisível, tão invisível que seus patrões e filhos discutem na presença delas, trocam ameaças e agressões, porque ela nunca está em lugar algum, ela, de fato, parece não existir, num sentido físico mesmo dessa expressão. Sua inexistência acarreta imprudências somente possíveis pela desconsideração que se destina àquela mulher que lava, passa, cozinha, toma conta das crianças, mas que, de fato, não pertence àquele lugar, é dele tão excluída, que sequer sua existência dentro da casa é de fato notada.
Em seu livro, essa invisibilidade não é apenas questionada, ela é escancarada e posta na mesa da sala de jantar. Posta em uma mesa coberta com toalha de utopias, com assento assegurado a todos(as), em idêntico nível de dignidade, a ninguém se destinando apenas o resto do banquete, ainda que seja o banquete dos bem intencionados.
Imperdível. Leiam. Vale a pena sermos, enquanto integrantes da sociedade ordeira e da sociedade progressistas, incomodados.
Os incomodados que mudem.
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Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.