Por Juliana Borges, no Justificando
Estes dias, eu estava participando de um diálogo sobre machismo. Em um dado momento, afirmei categoricamente, e sem me aprofundar, que homens negros não tem privilégios, mas vantagens sociais. Fui indagada depois sobre isso, já que não me aprofundei, e acabei não respondendo porque penso que para explicar o que eu estava afirmando, eram necessárias mais do que meia dúzia de linhas numa rede social.
Daí que acontece uma situação que eu vejo como um case para esta diferença de conceitos que precisamos começar a trabalhar de modo mais coerente em nossos ativismos e militâncias. Essa semana mesmo, eu tive que alertar uma companheira negra de pele clara que ela não tinha privilégios, mas vantagens no sistema de opressão. Parece pouco, mas isso é importantíssimo porque garante e denota sentido de coletividade e evita que caiamos nas armadilhas racistas do colorismo, por exemplo.
Voltando ao tema, eu poderia estar escrevendo um super textão de apoio e defesa de homens negros em relação ao que duas “rappers” brancas fizeram sobre eles em um vídeo. Mas, diante das complexidades e de como o racismo opera ao ponto de fazer com que muitos homens negros (eu já garanto aqui, ao usar o “muitos”, de que eu sei que “nem todos”, portanto, guarde seu comentário) ataquem e desqualifiquem mulheres negras e muitos outros, quiçá, defenderão aquele vídeo e posicionamentos de conteúdo racista. Por isso, penso que o debate deve ser outro. O de aproveitar determinadas situações para discutirmos estruturalmente, e não como “troco” ou “revenge”, as opressões que vivemos.
Quando Neusa Sousa Santos nos fala sobre o processo de “tornar-se negro”, ou quando Isildinha Nogueira também se utiliza da psicologia e psicanálise para tratar da opressão racial, aprendemos com elas que o racismo afeta não apenas as relações sociais, econômicas, culturais, políticas, institucionais e de gênero, atinge também nossa psiquè. E a atinge ao ponto de conseguirmos constatar um padrão comportamental entre uma maioria de homens negros que ascendem seja culturalmente seja economicamente: de abandonar parceiras negras e passar a se relacionar apenas com brancas. Isto pode ser discutido tanto como os estudos e conceitos de “solidão da mulher negra”.
É a busca, mesmo que inconsciente, e na maioria das vezes o é, de demonstrar publicamente esta ascensão buscando o pólo de positividade em uma sociedade de desigualdades baseadas em hierarquias raciais. Ora, se tudo o que é negativo é negro, logo, a busca de parceria afetiva pública para demonstrar, também, esta ascensão é o relacionamento com mulheres brancas. Isto ocorre mais em relação a homens negros do que em relação a mulheres negras, porque temos aí a intersecção com a opressão machista.
Ou seja, esse seria mais um exemplo e consequência desta “vantagem”, e não privilégio, que o homem negro tem em relação a mulher negra na pirâmide das desigualdades.
Pois bem, e por que, então privilégios são diferentes de vantagens?
Segundo a definição em dicionário, “privilégio” está mais acompanhado de uma denotação “coletiva”. Ou seja, seria a prerrogativa de um grupo em relação a outro; riqueza ou conforto de uma minoria política, étnica, social em detrimento de uma maioria; uma superioridade determinada, amparada ou não por leis que, ainda segundo o dicionário, seria “decorrente da distribuição desigual de poder político e/ou econômico”.
Se formos a raiz etimológica da palavra, “privilégio” vem de privilegium no sentido de excepcionalidade, inclusive garantida em lei, para poucas pessoas. É como se a “graça”, ou a “sorte”, no sentido clássico destas palavras, fosse atribuída a um grupo de escolhidos. Aliás, é dessa ideia toda que há conflito entre os conceitos e ideias de “diferença” e “desigualdades”, papo para outro artigo.
Já “vantagem” aparece, normalmente, com um viés mais individual. Seria o “adiantamento” de um indivíduo em relação a outro; algo que beneficia quem tem a vantagem. A raiz etimológica é francesa, de “avantage”, que significa “estar à frente”.
Se pensarmos estes conceitos de modo sociológico, político, filosófico, antropológico, podemos estabelecer, portanto, estas diferenças importantes para tratarmos de um sistema de desigualdades baseado em hierarquias raciais. Com isso, “privilégio” seria o conceito para o campo sistêmico-estrutural, posto que envolve controle de poder econômico, político, cultural, institucional e uma utilização das diferenças como desigualdades, ao passo que se constrói um nivelamento e relação entre superiores e inferiores nas sociedades.
Já o conceito de “vantagem” seria utilizado para denotar estas vantagens, no interior destas desigualdades e experiências diferentes neste sistema de opressão. Para se aprofundar mais sobre isso, há importante literatura sobre o que se costumou chamar “teoria do privilégio” (Du Bois, 1935; Ignatin; Allen; 1967; Bourdieu, 1989; etc.).
Neste sentido, o vídeo das “rappers” brancas que objetificam e aprofundam os estereótipos que são utilizados para manter em plena e efetiva execução o genocídio da população negra, prioritariamente de homens negros é um case importante, porque retoma que mulheres brancas podem oprimir e que se beneficiam dos privilégios, agora sim!, da branquitude.
Um vídeo que se pretende feminista, se utiliza do racismo para, sem o menor pudor, afirmar “empoderamento” (sic) de mulheres brancas. Angela Davis, em “Mulheres, Raça e Classe”, tem capítulos inteiros em que exemplifica e conceitua como se realizam estas relações e como, com isso, se consolida a pirâmide político-econômico-sócio-racial que, posteriormente, Michelle Alexander chamará, muito bem, de sistema de castas raciais.
Recentes estudos do IPEA explicitaram o sistema de castas raciais em nosso país. Mesmo em períodos de ampla expansão econômica, geração de trabalho, emprego e renda, acesso a bens de consumo, a pirâmide racial não se moveu no país. Homens brancos seguem no topo; seguidos de mulheres brancas; seguidas de homens negros; seguidos de mulheres negras – e é cada vez mais preciso que estudos passem a visibilizar em qual lugar desta pirâmide sócio-racial encontram-se os homens e mulheres indígenas.
Isto, contudo, não significa apagar que homens negros podem e são machistas. Isto não apaga que homens negros seguem com um padrão comportamental que pretere e exclui mulheres negras.
Contudo, homens negros, machistas ou não, seguem não detendo os meios de produção e poder.
Nisso, as estruturas de opressão interseccionadas garantirão o privilégio à branquitude. Homens negros seguem sendo os mais assassinados, como já disse, são o alvo preferencial da violência policial. Por isso que Patricia Hill Collins afirmará que o Feminismo Negro, necessariamente, defende liberdade para mulheres e homens negros, dado que o sentido de luta de liberdade relacionada a liberdade coletiva é um princípio de ser e existir do feminismo negro.
Ou mesmo retomando Angela Davis, ao dizer que nunca se afirmou feminista, que é uma mulher negra revolucionária não porque nega o feminismo, mas porque luta contra estruturas de opressão e por libertação radical nas sociedades – isso, sem antes esquecermos de pontuar que ao fazer esta afirmação, a filósofa faz questão de pontuar que é o feminismo interseccional que tem mais garantido esta visão de construção das diferenças como potências de transformação radical.
Ao feminismo liberal, e necessariamente branco, conforme alerta Davis, cabe reflexão e se enxergar e racializar. Às parcelas consideráveis de homens negros também cabe a reflexão de até que ponto se pode continuar em negação interna contínua, preterimento de mulheres negras sob o argumento de “gosto” como se não fossemos seres políticos e, portanto, condicionados socialmente.
As relações sociais também são políticas.
Não se trata aqui de defender ou não a negação de um padrão comportamental para estabelecer outro. Mas de fazermos reflexões mais profundas das nuances e da profundidade do racismo discriminatório em nosso país. Lutar contra o racismo passa também por nos repensarmos não apenas como sociedade do ponto de vista econômico, político e institucional, mas também cultural, comportamental, psíquico.
Infelizmente, “ a regra é clara”, a matemática explícita e o racismo implacável.
–
Juliana Borges estuda Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP); foi Secretária-Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (gestão Haddad, 2013); escritora e autora do livro “O que é encarceramento em massa?”da série Feminismos Plurais pelo selo Letramento/Justificando.