“Heróis” não precisam de auxílio-moradia, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

Após a polêmica causada pelas denúncias de recebimento de auxílio-moradia por juízes e políticos que possuem imóvel próprio no município em que residem, muitos saíram em defesa daqueles que chamaram de ”heróis da nação”.

Publiquei uma análise sobre a garantia desse benefício diante de um país com milhões de brasileiros que veem seu direito fundamental à moradia ignorado. Recebi mensagens – de uma minoria em relação ao total, ressalto – defendendo a continuidade desse pagamento a determinados agentes públicos como os juízes Marcelo Bretas e Sérgio Moro e o deputado federal Jair Bolsonaro. Segundo esses leitores, isso é justo dada à ”contribuição que dão ao país”.

O mesmo raciocínio se aplicaria, acredito, ao procurador da República Deltan Dallagnol, de acordo com informação trazida por Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo desta segunda (5), que também se enquadra nessa situação.

A remuneração base desses profissionais já é suficiente para cobrir uma vida para lá de confortável. Bolsonaro chegou até a reunir um conjunto de imóveis, que valorizou acima de seus rendimentos como deputado, diga-se de passagem. E há meses em que Moro e Bretas, como tantos outros magistrados, recebem um montante acima do teto do funcionalismo público, considerando os benefícios agregados ao seu salário. O que não é ilegal, mas questionável.

É inconcebível a justificativa usada por seus fãs de que eles merecem um ”bônus” em dinheiro por fazerem o seu trabalho. Quem afirma isso acaba, na prática, defendendo o oposto do que se espera de um funcionário público ou de um representante político.

Se isso não é válido para professores da rede pública, que desenvolvem uma das atividades mais importantes para o nosso futuro, porque seria para qualquer outra pessoa que recebe do Estado?

O que continua me intrigando, contudo, é quem chama juiz ou político de herói. E antes que alguém reclame, pode incluir os apoiadores de qualquer político que se afirma à esquerda também, como Lula.

Ao ser transformado em símbolo de algo maior por uma parcela da sociedade, uma figura pública acaba sendo alvo da projeção de muitas qualidades e nenhum defeito. Construção que ocorre de forma espontânea ou dirigida, acaba tornando a pessoa, mais do que referência em uma certa área, bandeira de toda uma ideia. Claro que a construção desses mitos, não raro, passa pela ação da própria pessoa – atendendo ao seu desejo de poder ou por pura vaidade.

Quando um desses ”heróis” é criticado, seus fiéis encaram isso não como uma discussão sobre falhas de um indivíduo, mas como um ataque ao conjunto dos valores que a figura passou a representar. Questiona-la, portanto, equivale, a colocar em dúvida as crenças pessoais dos que o seguem cegamente. Dessa forma, muita gente age como cão de guarda da biografia alheia, interditando qualquer debate, inclusive os saudáveis, que envolve seus ídolos.

Como já disse aqui, particularmente acho que herói é Antônio. Ele acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas e, com duas conduções, sai da periferia da periferia e vai até o bairro de Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, começa a trabalhar no serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês e, sinceramente, não vale a pena. Mas como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois como não tem acesso a hospitais de ponta, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender ”churrasquinho de gato” no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Um dia, pôs sua churrasqueira para conseguir algum em um final de semana lotado de corrida perto do autódromo de Interlagos. A Guarda Civil Metropolitana, contudo, levou tudo embora. Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Heroísmo.

É claro que nenhum de nós quer ter a vida de merda de Antônio. Ele nunca sentirá o glamour das recepções internacionais com caros vinhos e, sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro. Não adianta dizer que ele é feliz, que tem Deus no coração, que a família o ama. Isso é apenas jogar purpurina em cima da tragédia. A sua atuação profissional, muito provavelmente, não terá um final feliz para ser levada às telas do cinema. É Antônio, mas podia colocar aqui uma relação de nomes, grossa como uma lista telefônica, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia a dia porque, se desistirem, morrem – e nunca ganharão uma medalha por isso.

Porém, na hora em que o nome de Antônio ou qualquer um desses milhões, cuja desgraça é apenas um detalhe, for retirado das entranhas da sociedade e tratado com o respeito que merece, não precisaremos mais eleger heróis. Nem procurar salvadores.

Porque teremos percebido que os grandes exemplos a serem seguidos e as histórias que nos inspiram estão ao nosso lado e não acima de nós. Nesse momento, o país vai deixar de acreditar que precisa de alguém que o salve porque já estará em estrada segura, caminhando para um lugar melhor.

Boneco inflável do ”Super-Moro”. Foto: Thoe Marques/ Framephoto/ Estadão Conteúdo

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