Em eventos sobre a intervenção militar, uma conclusão: moradores de favelas serão os prejudicados

Por Edmund Ruge, no Rio On Watch

O Rio de Janeiro esteve nas manchetes globais novamente na última sexta-feira, quando o Presidente Michel Temer emitiu o decreto declarando a intervenção militar, delegando todas as questões da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro ao general Walter Braga Netto. O decreto imprevisto –atribuído ou à preocupação com o aumento de crimes violentos na cidade, ou à manobras políticas, dependendo da fonte consultada– deixou igualmente chocados ativistas comunitários e acadêmicos. Mobilizadores se organizaram para abordar a intervenção, realizando pelo menos três eventos separados nas noites de segunda e terça-feira.

O Museu do Amanhã havia organizado um painel sobre segurança pública meses atrás, como parte de sua série “Brasil do Amanhã”. O evento ocorreu após a o decreto de Temer apenas por coincidência.

Não estava claro como ou por que foi tomada a decisão de convidar o General Marco Aurélio Costa Vieira, diretor executivo de operações durante as Olimpíadas do Rio 2016, que não estava listado entre os convidados para o painel do evento. No entanto, o general abriu o painel da segunda-feira, oferecendo uma justificativa para a intervenção federal dos militares, declarando-a “totalmente amparada pela constituição”.

Ilona Szabó do Instituto Igarapé, um centro de estudos sobre segurança pública, e o curador do museu Luiz Alberto Oliveira apresentaram o evento. Luiz Alberto afirmou que o Museu do Amanhã realizará uma avaliação de 30 dias da intervenção através do “Observatório do Amanhã” do museu no decorrer do mês seguinte.

O integrante do painel, MV Bill, rapper celébre da Cidade de Deus, disse ao público que tinha presenciado os altos e baixos da política de segurança do Rio em primeira mão. “Eu vi de perto a criação do projeto das UPPs. Eu já sabia que aquela sensação de segurança era uma coisa momentânea”. Quanto à intervenção militar, ele disse: “Vejo com muita reticência”.

Enquanto o evento do Museu do Amanhã apenas abordava passivamente o tema da intervenção militar, dois eventos na noite seguinte procuraram abordá-lo de frente.

O primeiro foi o debate da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ) sobre a intervenção militar. A mesa redonda reuniu mais de 100 moradores de favelas e aliados, com mais de 50 favelas diferentes representadas.

A FAFERJ, uma entidade que traça sua história desde o início da década de 1960 –quando se opôs às remoções de favelas sob a administração do Governador Carlos Lacerda e à implantação da mais recente ditadura militar do Brasil– publicou uma nota no sábado condenando a intervenção militar. A nota destaca o fracasso e os altíssimos custos da ocupação de 14 meses dos militares do Complexo da Maré em 2014 e 2015, mas observa que as forças armadas poderiam potencialmente fazer parte de uma “intervenção social” para atender às necessidades das favelas de “escolas, creches, hospitais, projetos de geração de emprego e renda e políticas voltadas, principalmente, para juventude“.

Entretanto, convidados do evento estavam menos propícios a aceitar ideias de qualquer tipo sobre a presença militar nas favelas. O historiador e ativista de direitos civis Fransérgio Goulart, ele próprio da favela de Manguinhos, chamou a atenção para as ações recentes do exército –que nem esperou pela autorização do Congresso, e já realizou duas operações desde o decreto de Temer na sexta-feira. O elemento mais perigoso, advertiu ele, “é a questão de mandados coletivos de busca. Isto tem que ser importante para a FAFERJ”.

A advogada Ana Paula Longa disse à platéia do evento que tais mandatos de busca coletivos –que Temer irá pedir ao Poder Judiciário– são ilegais. Ana Paula foi mais longe, declarando que “o decreto é inconstitucional. A intervenção é inconstitucional”. Ela lembrou ao público que a última vez que houve uma “intervenção”, os militares permaneceram no poder por 21 anos.

Os convidados da noite admitiram que testemunharam um amplo apoio à intervenção em suas respectivas favelas. Fransérgio observou que “hoje têm muitos a favor dessa intervenção… Dizem, ‘vamos experimentar’”. Ele exortou os líderes comunitários presentes a conscientizar suas comunidades das potenciais consequências da intervenção.

Enquanto isso, o ativista de longa-data Itamar Silva, do iBase e morador do Santa Marta, afirmou: “Eu abro a janela e vejo um monte de pessoas defendendo e apoiando essa intervenção… Mas é um Cavalo de Tróia. Não podemos cair na ilusão que isto vai funcionar”.

A poucos quilômetros, naquela mesma noite, ONGs e organizações comunitárias realizaram outro evento com objetivo similar. O Fórum Cívico da Segurança foi organizado pela ONG Observatório de Favelas em colaboração com Redes da Maré, Casa Fluminense, Agência de Notícias das Favelas, Instituto Onikoja, Festa Literária das Periferias (FLUP), Agência de Redes para Juventude e Cine & Rock na Praça.

O fórum reuniu-se com a intenção de “defender uma política pública de segurança como direito social e pautada na preservação da vida” e iniciou com a leitura e revisão de um documento oficial escrito coletivamente pela equipe organizadora do evento. Os organizadores esperavam que o documento consolidasse a posição oficial do grupo de criar uma “Rede de Monitoramento” para rastrear e denunciar abusos de direitos humanos cometidos sob a intervenção militar.

No entanto, o documento rapidamente ficou sob fogo, por não denunciar a intervenção militar tão fortemente quanto os participantes sentiam como necessário. “Do jeito que está escrito, parece que está ditando como a intervenção vai acontecer”, disse o ativista Renam Brandão. “Precisa de um posicionamento mais claro de repudiação à intervenção militar”, concordou um representante da ONG LGBT Arco-Iris.

Jailson de Souza e Silva, fundador e diretor do Observatório de Favelas tentou esclarecer, afirmando: “Esse documento não pode ter ganhadores… Precisamos um mínimo de consenso… O nosso desafio fundamental é construir um monitoramento. Nós vivemos a experiência de intervenção militar na Maré, nós vivemos os 14 meses, e sabemos o risco que é em relação aos direitos. Esse documento aqui é muito claro…. Não estamos defendendo, só estamos tentando trabalhar com ela como realidade, e daí criar um mecanismo para enfrentá-la”.

A discussão dominou o evento a partir desse momento, até que o antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares convenceu a multidão de que eles estavam “divididos só pelas palavras. Pessoalmente não gostei do documento… A palavra ‘monitorar’ implica cooperar, reconhecer…” Luiz Eduardo propôs que o grupo, ao invés de criar uma Rede de Monitoramento, criasse uma “Rede de Resistência”.

Pouco depois, o grupo votou quase unanimemente a favor de destituir o documento original e, em vez disso, trabalhar em direção à “resistência à violação de direitos humanos”.

O que os participantes e os integrantes dos painéis dos três eventos concordaram foi que os moradores da favela arcarão com o pior desta intervenção. No Museu do Amanhã, Silva Ramos, da Fiocruz, clamou: “Se as forças armadas vêm para dar tiro nas favelas, então é o fim do mundo. A polícia já tá dando tiro nas favelas”. No debate da FAFERJ, o morador de favela João Ricardo gracejou: “Para o rico, tudo. Para o pobre, a lei”. E como um morador da Maré resumiu no Fórum Cívico da Segurança, “quem vai sofrer por isso são os favelados… Você não vai ver fuzis e tanques circulando na Avenida Presidente Vargas”.

Exército na Rocinha, 2017. Foto: Mauro Pimentel, AFP

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