Vazamento de soda cáustica no rio Gramame afeta ribeirinhos e quilombolas do litoral sul da Paraíba

Por Patrícia Pinheiro e Aline Paixão*

Na inquietante frequência de tragédias ambientais que têm acontecido em todo Brasil, um grande vazamento de soda cáustica no rio Gramame, estado da Paraíba, se soma a esse cenário já preocupante. A Bacia do rio Gramame, que drena uma área de 59 mil hectares, é uma das principais fontes de abastecimento da Grande João Pessoa a partir da barragem Gramame-Mamuaba e também de onde muitos ribeirinhos e quilombolas tiram seu sustento.

Piorando um quadro já desanimador, essa foi a mais recente contaminação desse rio, com o vazamento de 40 mil litros de soda cáustica da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba, a Cagepa, responsável pelo tratamento de água na Paraíba, no dia 09 de fevereiro de 2018, sexta-feira de carnaval. Esse evento causou mortandade generalizada de animais, agravando a dramática situação do rio. Com o pH chegando a zero após a contaminação, “os peixes se desmanchavam”, como relata Nalva, uma pescadora e quilombola da comunidade quilombola de Mituaçu, que é uma das principais localidades afetadas por essa contaminação, dada sua estreita relação com o rio.

Mituaçu está localizado na zona rural do município de Conde, litoral sul da Paraíba, na parte baixa da bacia do Gramame, já próxima ao mar, onde o rio faz a divisa entre o município de João Pessoa e do Conde, e deságua no oceano na Barra de Gramame.  Com terras férteis e protegida pelo rio Gramame e rio Jacoca, a comunidade, que tem cerca de 225 famílias e uma população de aproximadamente 1.200 habitantes (segundo dados do INCRA), tem suas principais atividades locais voltadas para a pesca, para a agricultura familiar, para a coleta de frutas e para o artesanato, itens que são usados para subsistência e comercializados em feiras livres. Porém, estas atividades têm sido prejudicadas, ao longo do tempo, por poluição industrial, agrícola e urbana que incidem diretamente no seu território.

Apesar de sua importância, o rio é diretamente alvo de despejos não tratados de indústrias de grande porte que se instalam ao longo de sua bacia, do escoamento de agrotóxicos de lavouras e de outras atividades que afetam diretamente a vida aquática e as populações próximas. Podem ser mencionadas grandes plantações de cana de açúcar associadas a indústrias sucroalcoleiras, fábricas de cimento e têxteis, criatório de animais e plantações de abacaxi. Como consequência, o rio Gramame, que outrora tinha abundância de todo tipo de peixe, além de camarões e caranguejos nos mangues, têm apresentado quantidade muito menor desses animais devido à poluição. Para os quilombolas de Mituaçu, um evento em especial é trazido como um demarcador das mudanças ambientais operadas pela ação externa na comunidade: a expressiva morte de mangueiras que abundavam no local, associada a uma grande praga que teria chegado a partir da inserção de espécies exóticas e que trouxe consigo um modo de fazer agricultura vinculado à monocultura e ao uso de agrotóxicos.

Porto de Biino, no rio Gramame. Comunidade Quilombola de Mituaçu, Conde, PB. Fonte: acervo do projeto de extensão Histórias de Quilombo (UFPB).

Há cerca de 70 pescadores de Mituaçu cadastrados na colônia de pescadores de Jacumã, a mais próxima da comunidade, porém a relação da população local com o rio vai muito além. Muitas pessoas tomam banho no rio, fazem pesca para consumo próprio etc. Quando falta água em suas casas, ainda recorrem ao rio. Dada a estreita conexão entre as práticas sociais e culturais estabelecidas pela comunidade a partir deste curso d’água, a poluição do rio implica em perdas de importantes referências no interior do território, que afetam elementos que conferem significados e orientam suas práticas. Assim, mesmo quando não há uma perda física de terras, há uma perda de controle dos recursos e expressões do território.

No dia do vazamento, no início da tarde, a comunidade foi alertada pela Defesa Civil Municipal e Secretaria de Meio Ambiente do município do Conde que evitasse qualquer contato com a água. Segundo o informe, divulgado em redes sociais, “O vazamento aconteceu por conta do rompimento de um cilindro que armazenava o componente na estação de tratamento da Companhia de água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), localizada no município de Conde”.

Inicialmente, a água adquiriu tons avermelhados e passou a ter um cheiro forte, os peixes, sem ar, buscavam oxigênio na superfície da água, até morrerem, situação que durou três dias. Além destes, camarões, cágados, jacarés e outros animais apareceram mortos. Passadas duas semanas do ocorrido e diversos dias de chuva intensa que aumentaram a vazão da água, o rio permanecia impróprio para qualquer atividade e os pescadores ainda não podiam voltar a suas atividades: “não tem o que fazer no rio”, diziam. Mesmo urubus que comeram os animais mortos após o derramamento também teriam morrido, segundo o mesmo relato. Os animais que sobreviveram pareciam fracos, caso dos camarões, que morriam logo após sua retirada da água, fato incomum relatado pelos pescadores.

Registro de peixes mortos, feito por pescadores um dia após o vazamento de soda cáustica.

Alguns órgãos já estiveram na comunidade, a pedido do MPF, fazendo coleta de água para análises e informaram aos quilombolas já estarem fazendo tratamentos de remediação para neutralizar a soda cáustica. Alguns cadastramentos de pescadores da comunidade foram realizados, porém os pescadores permanecem desassistidos. A multa foi estabelecida pelo Ibama, que fez vistorias e análises de água no rio, no valor de 12 milhões de reais. A Cagepa, porém, contesta que houve impactos significativos, e posteriormente indicou que de fato haviam sido derramados “apenas” 8 mil litros de soda cáustica. A Sudema, por sua vez, teria informado que fará a recomposição de fauna, após uma mínima recuperação das águas. Reuniões foram feitas, os pescadores e quilombolas buscaram a Cagepa e os órgãos responsáveis, uma petição online pode ser acessada, mas a grande maioria dos pescadores ainda não havia recebido qualquer ressarcimento ou sequer uma ajuda imediata, com exceção de pescadores da localidade de Engenho Velho, no município de João Pessoa, que receberam apenas cestas básicas da prefeitura daquele município.

Um histórico

E a degradação da qualidade da água no rio Gramame já é um tema recorrente. Uma avaliação da qualidade da água foi realizada pelo Centro de Ciências Exatas e da Natureza da Universidade Federal da Paraíba (CCEN/UFPB), por solicitação do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público Estadual (MPE) em 2008, para realização de um Termo de Ajustamento de Conduta, no qual as empresas poluidoras se comprometeriam com medidas de controle. Os dados resultantes já indicavam contaminação por agrotóxicos (em especial herbicidas) e poluentes vindos das empresas, com a presença de diversos metais pesados e resíduos de agrotóxicos acima do permitido em lei. Em especial em Mituaçu foram encontradas altas quantidades de Alumínio e Sílica nos moradores, como descrito no livro O que você precisa saber sobre a água de João Pessoa, de 2014.

Em 24 de novembro de 2015, foi criado o Fórum Permanente de Proteção ao Gramame, composto pelo MPF, MPE, Ministério Público do Trabalho (MPT), Cagepa, UFPB, Secretaria de Meio Ambiente de João Pessoa (Semam), Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), ONG Evot e indústrias. Dias antes, um episódio de grande repercussão reforçaria a importância de ações concretas no rio Gramame: em 22 de novembro de 2015 a contaminação de empresas instaladas no Distrito Industrial modificou a cor da água do rio e causou a mortandade de peixes e camarões.

Diante desses recorrentes casos de contaminação, foi acordado que seria feito um projeto de diagnóstico e monitoramento ambiental das bacias dos rios Gramame e Abiaí, coordenado pela UFPB, em parceria com o MPF e MPE. Previsto para ter início em janeiro de 2016, esse diagnóstico possibilitaria a formação de uma base de dados comum, com análises de água e estudos sobre os impactos socioambientais junto às populações ribeirinhas, aprofundando estudos realizados desde 2009. Porém, para os moradores de Mituaçu, já desesperançosos, ainda não foi possível perceber nenhuma ação efetiva.

Após o último vazamento, poucas pessoas se encorajam a adentrar o rio, deixando assim temporariamente abandonados os inúmeros covos que são usados para a captura do camarão e as canoas usadas para a pesca.

*Patrícia Pinheiro e Aline Paixão integram o Programa de Pós-graduação em Antropologia da UFPB.

Foto: Nalva, pescadora e quilombola de Mituaçu, observa o rio 13 dias após o vazamento de soda cáustica. Fonte: acervo do projeto de extensão Histórias de Quilombo (UFPB).

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