Matar, castigar, perdoar. A escolha do verbo depende da ‘raça’ e da ‘classe’

Aqueles que o Brasil castiga e mata não são os mesmos que o país afaga e perdoa. Essa é a síntese de nossa biografia

Por Conrado Hübner Mendes, na Época

O Brasil é o país que mais mata no mundo: são 60 mil homicídios por ano. A cada 100 assassinatos no mundo, 13 acontecem no Brasil, 71% deles contra a população negra. Matamos um negro a cada 13 minutos. Somos o país que mais mata LGBTs (um a cada 25 horas) e também o que mais mata ambientalistas. No ranking de homicídio de jornalistas, estamos em 4º lugar. No de feminicídio, em 5º. A polícia brasileira é a que mais mata e mais morre: mata e morre cinco vezes mais que a americana, a terceira mais violenta.

O Brasil ainda castiga. Possui a terceira maior população carcerária do mundo, sobretudo jovem (62% de “negros, pretos e pardos”). Presos provisórios correspondem a 40% e não raro permanecem na cadeia por mais tempo do que exige sua eventual condenação definitiva. Para prendê-los, basta a palavra policial. Com superlotação aguda, a pena de prisão tornou-se motor tanto de violações de direitos quanto do aumento da insegurança no país. O encarceramento em massa catalisou o crime organizado. A guerra às drogas responde por 30% do encarceramento no país e por mais de 60% do encarceramento feminino, que desestrutura famílias pobres e ajuda a multiplicar a criminalidade. Somos o povo que mais teme a tortura no mundo, não sem razão.

A política de combate ao trabalho escravo tem sido atacada pelos setores que praticam a escravidão contemporânea, que integram o governo. A organização da Copa e da Olimpíada, a construção da usina de Belo Monte e o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, não são apenas evidências de um Estado capturado por agentes econômicos parasitários, mas representam o maior conjunto de violações programadas de direitos de nossa história democrática. Nas periferias urbanas, a polícia tem licença social e institucional para revistar, arrombar, invadir e matar. Das 50 cidades mais perigosas no mundo, 17 são brasileiras. Registramos 175 estupros por dia (12 coletivos), 70% de garotas adolescentes.

O Brasil faz sofrer e deixa morrer, mas também perdoa. O perdão fiscal aprovado pelo governo Temer (feito em busca do apoio à reforma da Previdência, que não veio) isentou grandes empresas do pagamento de R$ 62 bilhões. Medida rotineira, o programa já perdoou R$ 176 bilhões nos últimos dez anos e criou o grupo dos “viciados em Refis”. Perdoamos periodicamente o agronegócio que pratica o desmatamento e aos poucos, diz a ciência, conduz a Amazônia à savanização. Anistiamos os grileiros e tornamos a apropriação privada de grandes áreas de floresta um bom negócio. Concedemos, por inércia do stf, o benefício da prescrição a atores políticos como Aécio Neves, José Serra e Romero Jucá. Eliseu Padilha acaba de solicitar ao stf seu prêmio também.

Aqueles que o Brasil castiga e mata não são os mesmos que o país afaga e perdoa. Essa é a síntese de nossa biografia.

Nossa dívida com grupos vulneráveis e marginalizados é irreparável. Interditamos qualquer noção de culpa coletiva pela violência do passado e do presente. A culpa está sempre no outro, e cada um que cuide de si mesmo. Operamos pela noção de mérito ou culpa individual. Não entendemos as engrenagens estruturais dessa história, a mão invisível da tragédia brasileira. Criminalizar e prender, com carta branca à brutalidade policial (ou do Exército), gera sensação de segurança. Parece funcionar melhor que uma biblioteca pública ou um centro cultural de bairro, um posto de saúde ou uma escola com professores bem remunerados. Juízes não conseguem entender como suas decisões no varejo produzem um Poder Judiciário discriminatório no atacado. Tudo que veem é um criminoso presumido (jovem e negro) de cada vez. A soma das partes lhes escapa.

Reduzir o sofrimento humano mais elementar e propiciar a segurança física, moral e material de cada cidadão deveria ser um projeto suprapartidário. As soluções são conhecidas, mas complexas. A onda perene de miopia coletiva, contudo, nos apresenta soluções simplórias e pautadas pelo fígado, não por evidências. O fígado é a isca dos bolsonaros. Nessa onda surfa a baixa política. O mercado das balas de prata, que consumimos dia após dia, estará em alta nas eleições que se aproximam. A raiva e o medo também.

Foto: Bruno Itan. Fotógrafo e morador do Complexo do Alemão

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