A ética social da origens cristãs x a mentalidade da direita contemporânea

Por Rodrigo Souza, no Voyager

No Reino de Deus os pobres serão ricos, mas os ricos estarão envoltos em sofrimento. Revisores tardios tentaram abrandar as palavras de Cristo contra os ricos, das quais a versão mais completa e vigorosa é encontrada no Evangelho de Lucas, mas resta um bocado suficiente para apoiar aqueles que encorajam o mundo a sentir ódio, a se vingar a assassinar e a queimar os ricos. Até a época do Socialismo moderno nenhum movimento contra a propriedade privada que se originou no mundo cristão falhou em buscar autoridade em Cristo, nos Apóstolos, e nos Padres Cristãos, para não mencionar aqueles que, como Tolstoi, fizeram do ressentimento evangélico contra os ricos o próprio coração e alma de seu ensinamento.

(…)
Seria estúpido sustentar que o Iluminismo, ao arruinar gradativamente o sentimento religioso das massas, abriu caminho para o Socialismo. Ao contrário, foi a resistência que a Igreja ofereceu à disseminação das ideais liberais que preparou o solo para o rancor destrutivo do pensamento socialista moderno. A Igreja não apenas não fez nada para extinguir o fogo, mas ela até mesmo tocou fogo na brasa…
Ludovico de Mises [1]

***

O medievalista Jacques Le Goff aponta que na Idade Média europeia, a partir do século XII especialmente na região sul e sudeste, os ambientes intelectuais começaram a se debruçar e debater a respeito do significado sociocultural da pobreza e da riqueza. Primeiro, a preocupação foi com a pobreza, enxergando nuances e graus variados nos quais ela chegava à categoria de virtude. Perante aos pobres, os ricos eram vistos como “poderosos”, e não meramente ricos. Mais do que ressaltar simplesmente a dotação monetária, o sentido visto era do poder derivado do acumulado material. Levou muito tempo para se poder enxergar virtudes nesta posição, que ficaram sempre limitadas com o senso de desonra que acompanhava a usura, ostentação, egoísmo e perda de senso do compartilhamento comum com a sociabilidade dos semelhantes [2].

Com a emergência do capitalismo, houve uma reviravolta, uma virada do avesso e de ponta à cabeça. Com esse sistema histórico, não somente houve a disruptura dos constrangimentos institucionais à lógica inexorável do acúmulo de capital para mais acúmulo de capital. Pois passou a ser algo tal qual um “caráter social”, que nas palavras do psicólogo Erich Fromm, “é o intermediário entre a estrutura sócio-econômica e as idéias predominantes numa sociedade”, cuja função é “canalizar a energia humana dentro de determinada sociedade, com o objetivo de manter o funcionamento ininterrupto dessa sociedade”. [3]

A ideóloga plutocrata Ayn Rand, em entrevista para Playboy – março de 1964

A tônica passou a ser de naturalizar a disparidade social, concebendo-a não como um problema, mas como algo positivamente funcional para a sociedade. Sobre os pobres pesava cada vez mais estigmas de indolência, demérito, menor capacidade, fontes potenciais de caos e disfuncionamento social. Dentro em breve, malgrado diferenças de teor e ênfases, conservadores sociais e liberalistas econômicos encontrariam neste fulcro uma ênfase comum, juntamente com a total aversão à ideia de que ações políticas deveriam enfrentar a disparidade social. E a necessidade, colocada mais contemporaneamente na lembrança da “escassez”, seria o motor a governar a vontade das camadas da base da pirâmide; forças políticas impingidas no sentido contrário tolheriam o desempenho dos melhores indivíduos.

Degrada-se aí o senso que perpassou por muitas instituições sociais. A ideia de que o vínculo entre os membros e o senso de pertencimento levavam a que uma situação de abundância de uns com privação de muitos fosse uma vergonha. A organização e horizonte da ação social deveria visar o conjunto, a alteridade, a partilha; o egoísmo individualista sendo institucionalmente intimidado.

O escritor inglês Joseph Townsend, na obra “Dissertações sobre a lei dos pobres” inaugurou a forma mais cáustica de expor a questão, “De uma forma geral, só a fome pode incentivar e incitar [os pobres] ao trabalho; mas as nossas leis já estabeleceram que eles não podem passar fome. (…) a fome não é apenas uma pressão pacífica, silenciosa e incessante, mas, como motivação mais natural para a diligência e o trabalho, ela se constitui no mais poderoso dos incentivos”. A privação era um gerente mais capaz do que qualquer administrador.

Figuras tais como desde liberais econômicos de Jeremy Bentham a David Ricardo, passando por Bastiát, conservadores sociais como Edmund Burke a Thomas Malthus, nadavam juntamente nestas águas. Bentham respondia à indagação “o que pode fazer a lei em relação à subsistência” com “diretamente nada”. Defendendo o primado da lógica de mercado sobre a democracia, pontuava que “a autoridade mais persistente e mais minunciosamente detalhada do empregador” deveria assumir o lugar do poder público. [4] Burke igualmente arguia que “quando fingimos lamentar como pobres aqueles que precisavam trabalhar, do contrário o mundo não poderia existir, estamos brincando com a própria condição da humanidade!” [5]

Estas concepções norteiam muitas das racionalizações do “ethos” do que se conhece como direita no espectro sociopolítico, com matizes variantes. Ela pode ser muito bem expressa novamente por Ludovico de Mises na correspondência à Ayn Rand, autora de “A Revolta de Atlas”: “A senhora teve a coragem de dizer para as massas aquilo que nenhum político jamais teve: vocês não seriam nada sem os capitalistas, e todas as melhorias nas suas condições de vida, tudo aquilo que vocês simplesmente assumem como coisa corriqueira, como fato consumado, vocês devem unicamente aos esforços de homens que são melhores do que vocês” [6].

É conhecido que uma parte expressiva da militância de direita é composta por religiosos, com destaque para fundamentalistas ou ultraconservadores cristãos. Mas este choque de racionalidades marcou uma batalha moral vital entre o cristianismo das origens e o ethos do Império Romano, da sociedade maior circundante naquele contexto. Quais alternativas e respostas o movimento cristão nascente ofertava para as pessoas, de forma a verem-se numa situação de tomada de decisão envolvendo toda sua existência para algo que lhe estigmatizaria e deixaria sua posição na respeitabilidade social dolorosamente comprometida? Como elas se situariam diante dessas visões sociais discutidas acima?

A ética do cristianismo das origens é compatível com os valores sociais da direita?

Nos tempos do Novo Testamento, a predominante escola estoica de filosofia tinha elevado a estima [do valor da glória] a um nível muito alto, ao que parece em resposta ao culto da gloria na nobreza romana. Acreditava-se que a conquista da gloria era a única recompensa adequada para o mérito na vida pública, e que, dada a incerteza sobre o estado do homem após a morte, era a efetiva garantia da imortalidade. Tornou-se, por isso, um objetivo primário e admirado das pessoas públicas cultuarem-se a si mesmas, definindo realmente sua própria glória, na memória imortal da posteridade. Mais ainda, era considerado inferior aquele que não se empenhasse nessa procura da glória. [7]

Vasos de barro

É muito intrigante refletir sobre como os cristãos foram delineando sua identidade. Delineando diante das clivagens inerentes da sua crença com os modos de vida, os apelos e mesmo o caráter social do sistema histórico em que viveram, considerando a necessidade de sobreviver e obter seu mínimo de convivência civilizatória e inserção social.

Quais seriam as “pontes” para alcançar “gentios” que não fossem próximos da fé judaica, conseguindo suas conversões e os mantendo no ambiente comunitário da fé que até então lhes era estranha e lhes causava agora certos transtornos sócio-políticos, com implicações econômicas? Afinal, passaram a professar que a honra, confiança e lealdade a César deveria ser dada não a ele mais, mas a um judeu chamado Yeshua, de uma província nada destacada, que morrera crucificado como subversivo [8]? E que não mais deviam conceber a “paz” como derivada do poder e estabilidade imperial, mas a uma aliança exclusiva com esse Messias, assumindo o risco que corriam por essa nova lealdade…

Sendo que era óbvio que suas necessidades econômicas e sociais, a segurança pessoal, direitos, dependiam diretamente de César, mesmo (ou sobretudo) entre os pobres (que pareciam ser menos pobres do que os pobres dentre os cristãos judeus [9]. Aderir ao cristianismo naquele contexto significava experimentar um choque com a aglutinação religiosa-sociológica do ambiente, em que alguém se situava para se estabelecer. Os ritos e confraternizações tinham uma função conspícua para os jogos de respeito, solidariedade e competições sociais. E há muito abandonou-se a ideia de que a vivência espiritual comunitária estava em declínio do período do emergir do cristianismo.

Quero enfatizar quanto a prática da religião era diversificada, proeminente e generalizada, provavelmente para um grande número de pessoas. (…) Talvez a primeira coisa a ressaltar seja a penetração da religião no mundo romano. Na verdade, é difícil apontar algum aspecto da vida naquele tempo que não fosse explicitamente relacionado à religião. Nascimento, morte, casamento, a esfera doméstica, civil, a vida política em geral, o segmento militar, a vida social, o entretenimento, as artes, a música – tudo estava carregado de significado e associações religiosas. [10]

Fica-se com isso longe de superestimar o temor da queda no ostracismo, desprestígio e o risco da anomia para indivíduos e famílias cristãs. A angústia gerada ante a necessidade humana de busca por reconhecimento, por uma abertura de um horizonte de possibilidades melhor. Diante do medo de perder-se o que tem, por parte dos que têm relativamente uma condição melhor, além do pavor da exposição vexaminosa, censura social e violência moral, em que termos podemos pensar uma reação por parte dos convertidos à nova religiosidade?

“Quero ser considerado !!”

O estudo histórico é um “conhecimento através de vestígios”, nas palavras de Paul Ricoer, que completa que “a aparente sujeição do historiador de nunca estar perante seu objeto passado, mas somente do seu vestígio, não desqualifica a história como ciência” [11].

Para poder estudar um fragmento no amplo tema do sentido de valor próprio nas comunidades cristãs originais, buscaremos uma aproximação pelas “Cartas aos Coríntios”, mostrando como um missionário cristão, Paulo, atenta sensivelmente para tal dilema e trabalha com as pessoas a quem se vê incumbido de evangelizar e pastorear. Não cabe aqui, por espaço e foco, a discussão acadêmica se a “segunda” carta na verdade contém mais outra.

O recorte na comunidade dos coríntios se dá pelo contexto histórico da cidade, a composição da comunidade predominando “gentios” de classes mais baixas, mas também com presença de classes de maior status. As fontes das cartas neotestamentárias proporcionam uma vívida e rica fonte de recursos para vermos o debate das pessoas com os temas presentes e o conflito delas com o pregador, em que o mesmo teve que fazer valer todos os recursos que fosse capaz para confrontar o reflexo das dissonâncias sociais e culturais nas ameaças que sacudiam a comunidade. Falam também de reconhecimento e dignidade, de senso de estima e busca de ter algum valor diante de algo ou alguém importante e considerado.

Honra e valor próprio: “o valor de uma pessoa a seus próprios olhos (…) mais o valor dela no seu grupo social. Honra é uma pretensão de valor junto com o reconhecimento social do valor”[9]. Assim o proeminente professor de Novo Testamento e Cristianismo Nascente da Universidade de Creighton, Bruce J. Malina, autor de importantes estudos neotestamentários sob o enfoque antropológico e dos estudos culturais, apresenta a questão da significância da honra no mundo do Novo Testamento como um dos “valores culturais fundamentais”. Ele levanta questionamentos como fios metodológicos a quem se propor a discutir, no tocante ao papel da honra:

  • O que é vem a ser honra?

  • Como a honra pode ser ganha ou perdida?

  • O que é considerado honroso ?

  • O que se espera de uma mulher ou homem honrado, de classe baixa, ou membro da elite?

  • Que tipo de exemplos na história demonstram a honra e vergonha em ação?

Honra e Glória, Vexame e Desprezo

Um proeminente filósofo e expert reconhecido em estudos culturais trabalha sob o enfoque do quanto o peso da noção de “honra” pode mexer com os comportamentos, padrões e sensos comuns das sociedades. O ponto nevrálgico levantado por Kwame Anthony Appiah, professor de filosofia no Centro Universitário para Valores Humanos da Universidade de Princeton e de Estudos Afro-americanos da Universidade de Harvard, é que o conceito de honra envolve as propriedades consentidas e motivacionais para atribuir e/ou retribuir dignidade e respeito, auferindo status social e plasmando a imagem da auto-avaliação pessoal no contexto cultural vivido.

Como tenho senso de honra, também quero preservar meu direito ao respeito. Desse modo, tenho mais uma razão para abster, isto é, preservar minha honra. Quero ser digno de respeito, quer efetivamente me respeitem ou não. Assim, o dever e a honra me fornecem, ambos, razões que não têm nada a ver com as reações efetivas de qualquer outra pessoa a mim – razões que, neste sentido, são internas. [10]

O conceito possui uma carga de relevância para podemos tratar das motivações externas relacionadas com os impulsos interiores das pessoas. Pessoas que estão inseridas no bojo de um sistema social em que buscam se imprimir e viver, que lhes oferece padrões de valores os quais são assimilados e individualizados, agindo a partir de fora e ressoando as respostas subjetivas, dado o prestígio que contém sua representação. “A psicologia da honra tem uma ligação profunda com a autoconfiança e com olhar o mudo nos olhos”. [11]

“Psicologia da honra”? Sim, pela força interna que impele a pessoa para além de um mero “ajustamento social”, mas mais além, para o senso de estima própria e valor. “Uma forma de garantir que você está mantendo corretamente sua honra talvez seja lembrar aos outros de que você conhece seu valor”. [12]

Justamente em cima do senso e escalas de valores, que entretecem os atores sociais, é que funcionam os mecanismos de designação daquilo que atribui honra e desonra, o que é digno de se exaltar e o que é digno de humilhar, no ambiente social. Falei mais acima sobre “dispositivos compartilhados internamente”. Isso é o que se observa na dinâmica do Bullying. “(…) Se você quebra os códigos, a resposta apropriada dos outros é, em primeiro lugar, deixar de respeitá-lo, e, em seguida, tratá-lo ativamente com desrespeito.” [13]

O impacto do bullying só existe porque há um “acordo” implícito, subentendido entre expectadores, vítimas e agressores quanto a expectativas, aceitações, símbolos, conotações e códigos de linguagem que significam e projetam sentimentos e diferenciações de humilhação e exaltação, orgulho e ridicularização. Se não fosse assim, chamar alguém constantemente de apelido ou expô-lo publicamente não faria efeito, pois não haveria o subentendimento mútuo do que é vexaminoso.

É preciso que a linguagem expresse a carga conotativa que transmita a comoção emocional. As vítimas possuem expectativa de aceitação social, e estigmatizações a inferiorizam e isolam ou infligem conflito interno, desprezo e auto-flagelação. Pois a pessoa sente os efeitos da aviltação mesmo quando não mais presente entre os agressores e expectadores, pois a maneira de se enxergar passa a refletir a sua vexação, à medida que compartilha dos códigos de honra e se vê fracassando em conseguir afirmar sua dignidade. [14]

É importante entender que, embora a honra seja um título de direito ao respeito – e a vergonha surge quando você perde esse título – uma pessoa de honra se preocupa em primeiro não em ser respeitada, mas em ser digna de respeito. Alguém que só quer ser respeitado não se importa se esta realmente vivendo de acordo com o código; quer apenas que pensem que vive conforme o código. (…) Você sente vergonha quando não atende aos critérios do código de honra; e se sente envergonhado […] mesmo que ninguém mais saiba que você falhou. [15]

Nossa necessidade de dignificação nos reflexos das relações com aqueles a quem desejamos obter reconhecimento, recai em nossa autoestima. Ela está ligada aos arranjos socialmente legitimados de recompensa e punição para aqueles que se saem mais habilidosos em trafegar nas vias dos códigos de honra.

Como o filósofo Charles Taylor acentua, “ninguém adquire as linguagens para autodefinição por si mesmo. Somos apresentados a elas através das trocas com outros que importam para nós – o que George Herbert Mead chamou de ‘outros significativos’. A gênese da mente humana, neste sentido, não é ‘monológica’, não é alguma coisa que cada um conquista sozinho, mas dialógica” [16]. “A projeção de uma imagem inferior ou degradante sobre outrem pode realmente distorcer e oprimir, na medida em que é interiorizada”.[17]

Eis, então, o quadro: ter honra significa ter direito ao respeito. Em decorrência disso, se você quiser saber se uma sociedade se preocupa com a honra, primeiro procure ver se essas pessoas pensam que alguém tem direito a ser tratado com respeito. A próxima coisa é ver se esse direito é dado com base num conjunto de normas compartilhadas, um código. Um código de honra diz como as pessoas de certas identidades podem ganhar direito ao respeito, como podem perdê-lo e ainda, como o fato de ter e perder a honra muda a maneira como elas devem ser tratadas.”

(…) Seja qual for a maneira como chegou à sua honra – pelo êxito que levou à estima ou pelo reconhecimento de algum fato saliente que lhe concerte -, você pode perdê-la caso deixe de atender ao código. Se você se atém a um código de honra, não só reagirá com respeito àqueles que o cumprem, como também reagirá com desprezo àqueles que não o cumprem. [18]

Há também a situação do conflito entre exigências morais que a pessoa acredita, aceita e se orienta, que podem se firmar em convicções da consciência individual ou dos consensos e motivações de grupos em que o indivíduo faz parte e divide esperanças e sentidos de vida. A pertença a esses grupos não implica necessariamente em rebelião aberta junto a autoridade política maior, mas reivindicações de direitos e reconhecimento de modos de ser, junto a ela. Podem ser grupos de origens de vida, étnicos, religiosos, filosofias de vida, dentre outros. Um exemplo clássico recente deste conflito fora a desobediência civil dos movimentos negros estadunidenses, que sofriam discriminação e estigmatização generalizada de segmentos mais amplos da sociedade. Entra em choque aí a legitimidade da exigência de lealdade e serviço.[19]

Aceitação Social, Distinção e Opróbrio no Sistema Histórico dos Coríntios

Corinto é chamada ‘próspera’ por causa de seu comércio, em razão de estar situada no istmo e de controlar dois portos, dos quais um leva diretamente para a Ásia e o outro, para a Itália; isso torna fácil o intercâmbio de mercadorias entre duas nações assim distantes uma da outra. (…) Os Jogos Ístmicos ali realizados regularmente atraíam multidões. (…) E o templo de Afrodite era tão rico, que possuía mais de mil escravos e cortesãs. (…) Os capitães de navios esbanjavam desenfreadamente seu dinheiro, e daí o provérbio: ‘Não é para qualquer um a viagem para Corinto’. [20]

No estudo clássico do autor português Júlio Baroa sobre a configuração sociocultural da honra e vergonha no mundo antigo, ele apresenta que na tônica geral, a fama e a infâmia eram as expressões socialmente configuradas do que, com a honra e a desonra, se era produzido nas subjetividades. “A honra tem a sua expressão social naquilo a que se chama fama e a desonra, na infâmia”. [21] A consequência é que o caráter do zelo pela honra impelia à apreensividade com a reputação, que balizaria também as sanções sociais, fomentando a competição pelo renome e fuga de se recair em má reputação e por conseguinte, no desprezo da sociedade.

A incorporação da lógica social do estigma: funcionalidade para o desigualitarismo

Em Corinto, tais fenômenos se manifestavam num contexto de uma cidade em ascensão econômica dinâmica devido à localização estratégica para o fluxo comercial, pouco mais de duzentos anos após ser assolada pelo general romano Mummius; extremamente desigual, cosmopolita, religiosamente pluralista, centro de diversas imigrações, desde o envio de pobres urbanos de Roma após o começo de sua reconstrução, até pessoas atraídas de toda a bacia mediterrânea devido ao comércio.

A cidade tinha engendrada uma sólida organização de sistemas de patronato. Tais sistemas atuavam para conter os conflitos inerentes a advir dessa formação social, fazendo com que subgrupos situados nos níveis inferiores da hierarquia social conferissem legitimidade à estrutura de autoridade – enxergando a necessidade disto para sobreviver dada a coerção. Almejava-se, graças às propagandas ideológicas, possíveis oportunidades de longo prazo de alguma mudança de condição dentro da pirâmide hierárquica.

Os grupos e subgrupos eram constituídos desde camponeses a proprietários de terras, de soldados a oficiais e magistrados, de almoxarifes, comerciantes a agiotas, de mascates a artesãos a coletores de impostos, a sacerdotes e burocracia governamental. “Uma adequada atividade de relações públicas era um importante fator de sucesso na busca da fama e poder”.[22]

Em suma, o patronato era uma das maneiras por meio das quais se organizava a sociedade de Corinto. Devido a essas relações, pessoas de diferentes níveis, do imperador ao cidadão de uma dada cidade, achavam-se ligados, ainda que seus interesses pudessem não ser os mesmos.[23]

As relações sociais desenvolvendo-se no cotidiano, dinamizadas pela criatividade das pessoas, suas ambições e disputas, criavam uma simbiose entre lados opostos do poder, o que estabilizava o status quo. “Para sobreviver, a pessoa precisa desenvolver capacidades a fim de maximizar a possibilidade de ajuste bem-sucedido, fazendo uso de aptidões naturais ou adquiridas e de treinamento adequado.(…) Como deviam associar-se adequadamente com outros de posição social diferente? As barreiras criadas pela função social da pessoa não deviam ser superadas levianamente. Essas barreiras não se limitavam ao status social, mas se aplicavam também à estatura moral” [24].

Conflitos e Desintegração – “Não vou me adaptar”

Não entendemos o culto cristão primitivo se não mantivermos diante dos olhos o fato de que, para o cristão gentio, o cristianismo era um culto substituto. Ele era, ao mesmo tempo, uma renúncia, um posicionamento devocional firme e exigente com profundas repercussões. [25]

Dentre os elementos integradores e de coesão social, os sistemas de culto desempenhavam um papel vital. A interligação da estrutura política, as regulações sociais e as práticas ritualísticas conferiam uma estabilidade dentro de um equilíbrio oscilante entre a coerção social e compulsão a partir de dentro dos atores sociais – no papel prestigioso das representações, crenças e práticas, agindo a partir de dentro cada um, das famílias e comunidades cultuais, interrelacionando-se com as imposições político-sociais que agem partir de fora.

(…) Ou seja, o culto ao imperador formou uma grande parcela da rede de poder que constituía o tecido da sociedade.
O culto ao imperador estabilizou a ordem religiosa do mundo. O sistema do ritual era cuidadosamente estruturado; o simbolismo religioso evocava uma representação do relacionamento entre o imperador e os deuses. O ritual também tinha um caráter estruturante; ele impunha uma definição do mundo. O culto imperial, junto com a política e a diplomacia, construiu a realidade do império romano. [26]

Desta forma a reverência e o culto imperial, centrado na imagem do imperador, mas moldado junto às estruturas de poder de sua sustentação, permeavam e se entranhavam na vida social com vigorosa capilaridade.

Pode-se apenas imaginar o vulto do confronto que resultaria com os cristãos, tendo entregado-se a um apelo e visão de mundo em que se comprometiam a um monoteísmo marcado pela rejeição a todas as formas de culto que não ao seu Deus Criador. Divindade na qual unicamente depositavam sua adoração e esperança; um perigoso sinal a ser interpretado pela sociedade, a elevada devoção e dedicação de vida prestada a um crucificado pelo Império – ou seja, visto como subversivo. [27]

Em 1 Co 8 e 10, Paulo lida detalhadamente com algumas questões inevitáveis para os cristãos que viviam em cidades romanas, questões sobre sua participação em atividades religiosas pagãs; e suas orientações exigem evitar essas atividades completamente. (…) Em 10,14-22, Paulo novamente exige que seus convertidos evitem completamente a participação no “culto aos ídolos” ( eidõlatria) e insiste que a participação na refeição sagrada cristã ( ‘o cálice do Senhor […] a mesa do Senhor’) é incompatível com misturar-se nas festividades religiosas dedicadas a essas outras deidades que ele chama aqui de ‘demonios’ (10,20-21). [28]

Abre-se o palco para o acionamento de todas as sanções sociais e culturais possíveis e imagináveis – além das políticas. Para os mais bem educados e prósperos, minoria, a exclusão dos ambientes de prestígio, a ridicularização intelectual (haja vista que com os pobres esta era dispensável). Aos de condições economicamente exploradas, portas de mudança de status fechadas, imputação de maior desonra, estigmatização, ostracismo.

Em face de se tornarem párias sociais, os cristãos se sentiam pressionados a responder à situação; anomia, abandono do mundo urbano, cooptação, capitulação, confronto aberto ou… rearranjar a hierarquia de valores com uma reorganização, ou mesmo subversão, da lógica interna das representações do que seria importante e significativo para a constituição da identidade, das motivações de vida e esperança que alimentam por sua vez reinterpretações dos elementos constituintes da integridade, importância e estima.

A subversão do ideal aristocrático

Na Antiguidade, o papel do indivíduo na sociedade era determinado pelo seus status. Os opulentos e poderosos, em matéria de religião, filosofia e política, preferiam as ideologias que dessem sustentação à base de seu poder. [29]

Em relação à Antiguidade, não faz sentido pensarmos em “religião” tal qual se pensa hoje. Como um escopo próprio do pensamento e vida à parte, em paralelo mas separado da “economia”, “sociedade”, “política/relações internacionais”, “natureza”, etc. Ela era o colágeno dos ossos e o sangue do corpo de toda a vida, permeando e entrelaçando todas as outras dimensões.

A evidência arqueológica e histórica sugere a existência de associações em Corinto na virada do século I d.C., se não antes, um monumento erigido pela associação das divindades tutelares da casa imperial no começo do século II.

Membros dessa associação coríntia, sob a liderança de dois de seus membros mais destacados, reuniram-se para prestar culto às divindades tutelares da casa imperial. (…) A estrutura da associação era hierárquica. Havia as divindades, os patronos ou líderes e os membros. Não por acaso, a estrutura de base de muitas outras associações lembra a de uma hierarquia patronal. [30]

Na formação da comunidade cristã, em contraste, conforme a passagem de I Co. 12 -14, a direção era descentralizada e mais como coordenadora do que hierárquica. Como vemos em 11,17-37, havia uma espontaneidade com certa lógica de organização, pautada pela ideia do Espírito (o sopro divino) – I Co. 12,28, sem subordinação diretiva. Aos que faziam o papel de coordenação, o senso de legitimação era dado pelo abnegação em prol do crescimento do outro – I Co 8,13, sendo este o rumo também ao qual a comunidade deve aspirar para seu crescimento, como mostra a incisividade de Paulo na coleta para os “pobres de Jerusalém” – como em II Co capítulos 8 e 9.

Um processo de reversão de valores fora impulsionado. Agora, o “gloriar-se” era despojado de arrogar de autossuficiência ou brilho pessoal próprio; era o “gloriar-se no Senhor” – I Co. 1,30. O esplendor agora não era mais na jactância pessoal, mas na participação comunitária na humilhação e vindicação perpassadas pelo Messias. II Co. 4,7: “Trazemos, porém, esse tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós.”

Respostas compensatórias e auto-afirmativas nas comunidades cristãs

Os cristãos daquele contexto reimaginavam-se e se redefiniam-se enquanto um povo, com raiz histórica e esperança para o culminar da história. Já não sendo apenas cidadãos de Corinto, mas “Povo de Deus” – com uma referência de identidade transfronteiriça – têm o caminho aberto para reimaginar os valores de importância pessoal a partir de novas bases e fundamentos.

Destaca-se então discussão paulina quanto aos “charismas” – especialmente em I Co. 12,1-11. No contexto, as ideias quanto aos dotes e qualidades eram fundadas em termos aristocráticos de nascimento, ou plutocráticos de conquista de riquezas, ou em termos de subjugação do outro, legitimando-se uma visão essencialista da desigualdade e hierarquia. A exibição de dotes e qualidades era para realçar os valores emuladores de poder e rivalidade. A pressão para aqueles que não se destacassem em preponderar e causar inveja era por demais intensa, sempre pairando a guilhotina da “ninguendade”, do sentimento de inferioridade e desfuncionalidade. A pressão era dupla pois cumpria a função de estimular competências na competição tanto para a vanglória pessoal, quanto uma plenamente utilitarista na valia da pessoa para a sustentação do poder imperial.

1 Coríntios 1:26-29 – “Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma carne se glorie perante ele.”

As novas referências e reimaginações que se incitava e reivindicava em Coríntios colocava os dons e competências como somente tendo valor em edificar a comunidade, no bem de todos, em referência a união de cada um com o Messias que, por sua vez, os unia através do Espírito com o Criador. Eles não tinham do que se vangloriar, pois nenhum destes dons fora adquirido ou era essencial à pessoa, mas via de participarem na eleição histórica e cósmica da Divindade Criadora e Redentora.

Vendo assim, a visão moral da comunidade se referenciava no entendimento de serem vocacionados, convocados, não mais para buscarem a glória dada pela funcionalidade ao status quo, mas uma vocação comunicada pela “Doxa” Glória de Deus. Paulo entendia que isto era um substrato compartilhado pela comunidade por fazer parte do anúncio da evangelização a qual aceitaram, e ratifica isto neles lembrando que estava no núcleo da sua concepção quanto a fonte de sua honra e autoridade: 2 Co 3, 1-7:

Porventura começamos outra vez a louvar-nos a nós mesmos? Ou necessitamos, como alguns, de cartas de recomendação para vós, ou de recomendação de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens. Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração. E é por Cristo que temos tal confiança em Deus; não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus. O qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.

Dela brota a esperança ante a desalentos presentes: 4,17 – “Pois vossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso de glória que elas nos preparam até a abundância”.

De onde vêm então os laços de fraternidade, não enxergados enquanto membros de um clube que conjuga interesses e afinidades em comum. Se concebiam agora como irmãos, hoi adelfoi, por terem o mesmo Pai Celeste, a quem deviam se reportar para manterem sustentada a unidade na diversidade. Paulo enxerga e combate o perigo de não se compreender a natureza da ecclesia, seja como uma unidade provinda de Deus, seja como uma fraternidade articulada em variedade de comportamentos.

A necessidade de assumir comportamentos coerentes com a qualidade de ‘irmãos’ aparece no epistolário com as denúncias de comportamentos específicos que contrastam com o amor recíproco. [31]

A noção de honra então amplia-se para a coletividade; deviam se pautar não apenas pela honra pessoal, mas em honrar a comunidade, evitando a vergonha dela ante “os de fora”. I Co 5, 9-13. Depunham contra os laços fraternos reais, transformando-os apenas em efeito de retórica, se a auto-organização da comunidade não fosse capaz de mediar suas contendas internas e suscitar um espírito de alteridade : I Co. 6, 1-8.

A atitude da comunidade então se expressava com uma inversão da hierarquia de valores; mas não eram convocados a desconsiderar os valores. Não cabia ignorar o discurso romano da virtude, diligência e valor, o que implicaria em desintegração social. II Co. 1,12: “Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que em santidade e sinceridade de Deus, não em sabedoria carnal, mas na graça de Deus, temos vivido no mundo, e mormente em relação a vós”.

Também, em “Porque, ainda que eu me glorie mais alguma coisa do nosso poder, o qual o Senhor nos deu para edificação, e não para vossa destruição, não me envergonharei”. II Co.10,8, ou em II Co 3,10 – “uma glória não passageira, mas perene, da ‘aliança do Espírito’ – [dentro do contexto em que retoma-se a tradição de Moisés, a glória aí significa expressão visual extraordinária da honra dada a pessoa]”; apenas os princípios de importância e consideração tinham sua carga conotativa reimaginada, reelaborando as proporções de méritos e considerações a partir do fundamento no Messias Crucificado. Os termos ainda possuíam indispensável relevância para a ética e moral, inclusive provocando estímulos para manterem a fidelidade aos seus princípios identitários.

Paulo nega o valor da opinião dos não cristãos com os termos mais veementes, erigindo um tribunal alternativo da fama, formado por Deus, Cristo, a Igreja supra local e a comunidade cristã local. Ele reafirma sua credibilidade e fidedignidade dos membros de sua equipe, de modo que as atribuições de honra e a censura deles terão o peso necessário para guiar a comunidade. [32]

Indignamente

Mas a situação estava longe de ser configurada como a ideal. Os apelos da sociedade não são desconsideráveis. As tentações recaiam onde as formas de se relacionarem socialmente estavam acomodadas, no que era mais propício a, intuitivamente, encontrar mais estabilidade e previsibilidade à vivência cotidiana e, por serem incutidas ao longo da vida de forma difusa, intensiva e expressiva, estavam introjetadas no inconsciente as fórmulas e processos de recompensa, submissão, satisfação e dependência. Poderia acontecer dos cristãos serem cooptados e com formatos particulares à sua religião, reproduzirem as lógicas de aspirações, dilecções e deferências nobiliárquicas imperiais.

Isto estava subjacente e permeando as divisões em facções na comunidade de Corinto: I Co. 1,1-4,9. O caráter desses partidos era articulado em torno de identificação com status de classe e afinidades com hierarquias de valorizações intelectuais em Corinto. Desta forma perdia-se de vista o discernimento da fonte do valor próprio brotando da união com o Messias Crucificado, dos dons serem outorgados por Deus por meio do Espírito para edificar a comunhão plena dos vocacionados, independente de qualquer reivindicação de mérito inato ou conquistado.

I Co.4, 7: “Pois quem te distingue? Que possuis que não tenhas recebido? E se recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não tivesses recebido?”

Na sociedade greco-romana, os patronos acomodavam os membros de sua própria classe social elevada no triclinium (cômodo especial, o melhor da casa), ao passo que os demais eram servidos bem à vista do triclinium, isto é, no atrium (os divãs que podiam acomodar, sentados, até quarenta pessoas). Aos convidados acomodados na sala mais espaçosa eram servidos comida e vinho inferiores, e com frequência se queixavam da situação. [33]

A expressão máxima da assimilação dos motivos e medidas de valor, do discurso de legitimação dos poderes imperiais e modus operandi desigualitário romano se dava no encontro de principal significação para a comunhão cristã nascente, a “Ceia do Senhor.” – I Co. 11,17-34. Nela se vê engendrada a estruturação dos tratos interclassistas. Se incorporava as representações e sentidos de status, dignidade de estima, valor humano, nos jogos de posições, ostentações, classificações, de acordo de como se dispunham os membros das comunidades, e os comes e bebes do encontro sagrado.

Os papeis de cada indivíduo eram distribuídos segundo estereótipos estabelecidos nas convenções sociais, assim como simbolicamente, as porções e usufrutos daquilo que deveria ser partilha de boa-vontade e alegria para expressar a novidade de vida.

Embora fosse o lugar de o patrono exibir sua riqueza, elogiar a si mesmo e recompensar o serviço de seus clientes, a mesa do jantar era o lugar em que os clientes tinham de cumprir seu dever, ainda que lhes causasse inconvenientes. O alimento era o primeiro testemunho de suas posições desiguais. Não era incomum que os satiristas protestassem contra o oferecimento a clientes de comida e vinhos inferiores, enquanto se serviam comida e vinho superiores ao anfitrião e seus honoráveis amigos.

A distribuição dos lugares contava a mesma história. O lugar de honra ou a terceira posição na mesa do meio, às vezes próximo do anfitrião, era reservado ao principal convidado. Os clientes comuns teriam compreensivelmente de ocupar lugares menos honrados, o mesmo ocorrendo com os libertos. Os escravos e os pobres tinham simplesmente de jantar sobre um tapete ou encostados na parede. Mas a diferença entre o patrono e seus clientes ia além disso. Porque para ser um cliente bem-sucedido, era preciso seguir a regra de ouro, ou seja, agradar o patrono e tentar adaptar-se à sua opinião. [34]

Reproduzindo essas relações oligárquicas, o Encontro se deslegitimava como espaço de culto, de comunhão com o sagrado – 11,20, se convertendo em profanação – 11,27, 29. Incorporando os critérios de sucesso do discurso do status quo, incorriam em fracasso com a santidade, fraternidade e honra sob o prisma de serem um novo povo, 11, 28-30.

“Não se alegra com a injustiça”: uma postura radicalmente oposta ao que hoje se proclama “politicamente incorreto”

Grupos diferenciados na sociedade, como essas comunidades cristãs e outras que surgem como contestadoras e proponentes de um novo modo de vida, acaso ocorra de irem se disseminando em todas as esferas das sociedades ao longo de processos históricos, agregando e sendo agregadas, passando de uma situação de perseguição para aceitação e mesmo de utilidade para a estabilidade social, acabam passando por metamorfoses.

A grande tentação, no caso das formas tais quais as que se apresentou neste pequeno ensaio, é a de capitular, fazendo o inverso da orientação do evangelista: instrumentalizar signos, termos, símbolos e retóricas cristãs para legitimar e saudar discursos de valores pessoais, méritos, dignificações, superioridade, influência, supremacia, elitismo soberbo. “Naturalizações” de poderes hierárquicos que incitam estigmatização, soberba, exploração, humilhação, inveja, a primazia em sobrepujar e levar vantagem sobre o próximo para conquista de conveniências, para o orgulho ostentatório, para sobrepujar social e economicamente, para adquirir privilégio e preponderância de classe.

Quando se diversifica a composição das condições econômicas e de “status” social, entre os membros, as posições na sociedade se ramificam e capilarizam, e seu poder de influenciar e de afetar a feição política se amplia. Os que sinceramente se inspiram na ética do movimento cristão nascente deveriam se pôr no lugar de grupos estigmatizados e marginalizados e entender sob o prisma do que os antepassados já sofreram, não simplesmente pensando “agora nós podemos” e descontando em outros. Considerar se estão sendo pautados pela sede de brilho e destaque elitista. Se pautam-se mais pela sede de acúmulo do que alegria da partilha. Se reforçam as estratificações sociais baseadas em estereótipos. Sem ceder aos apelos que predominam de chauvinismo e acepção de pessoas. Isto é adorar “o Deus deste mundo”, pois é a lógica de poder, representação e estima do sistema histórico vigente.

A vontade de dominar, estigmatizar, bem como uma configuração social desigualitária e inequânime estruturada neste direcionamento, muitas vezes é travestida, paradoxalmente, de “defesa dos valores e da tradição cristã”, quando acaba sendo realmente uma negação do que se constituía a grande subversão da mensagem evangélica ante ideais sociais assim. Se o cristianismo antes virava o discurso de legitimação imperial contra si mesmo, pode ocorrer de cristãos inverterem a coisa.

Do anelo em participar de um projeto renovador da criação (II Co. 5,17), pautando desta forma a compreensão igualitária, empática, diferencia-se da lógica da sociedade oposta a isto  -na compreensão própria da “santidade”, nas subversivas noções de honra e vergonha opostas as que eram usadas pra justificar a desigualdade da sociedade patriarcal e plutocrática romana. Perdendo-se isto de vista, acarreta em despedaçar o “Corpo” do Messias no espírito corporativo da comunidade.

O exemplo de Corinto é vigoroso; infelizmente mostra como transigir com a busca de poder e honra competitiva se torna uma tônica. No final do século I, algumas poucas décadas após a morte de Paulo, novamente se escrevera uma Carta aos Coríntios, desta vez por parte de Clemente, um dos presbíteros da igreja em Roma:

Capítulo 1, vs 1:

Por causa das desgraças e calamidades que repentina e continuamente se abateram sobre nós, talvez estejamos a tratar tardiamente dos acontecimentos que se deram entre vós, meus caros, e daquele motim, não conveniente a eleitos de Deus, iniciado por algumas pessoas irrefletidas e audaciosas, de uma forma sórdida e ímpia, surgido de tal ponto de loucura, que o vosso nome, dantes estimado, acatado e celebrado por todos, fosse seriamente desacreditado.

Capítulo 46:

5 – Por que entre vós existem disputas, ódios, contendas, cismas e guerras?
6 – Acaso não temos um só Deus, um só Cristo e um só Espírito da graça derramado sobre nós e uma só vocação em Cristo?
7 – Por que insistimos em separar e despedaçar os membros de Cristo, nos revoltando contra o próprio corpo, chegando a uma loucura tal que nos esquecemos que somos membros uns dos outros? Lembrai-vos das palavras de Nosso Senhor Jesus,
9 – Vosso cisma perverteu a muitos, atirou muitos no desânimo, colocou muitos na dúvida, entristeceu-nos a todos. E vossa revolta se prolonga…

47:

7 – E tal rumor não chegou apenas até nós, mas atingiu também a outros que possuem as mesmas convicções que nós, a ponto de se proferirem blasfêmias ao nome do Senhor por causa da vossa insensatez, por armar perigo para vós próprios.

Lázaro e o Rico – museu de Nuremberg

Referências

[1] Do capítulo 29 de “Socialismo” (http://mises.org/books/socialism/part4_ch29.aspx)

O trecho maior é este:

1. A pregação de Jesus de um Reino vindouro destrói todos os laços sociais:
A expectativa da reorganização por parte do próprio Deus quando chegou o tempo, e a transferência exclusiva de toda ação e pensamento para o futuro reino de Deus tornou o ensinamento de Jesus Cristo completamente negativo. Ele rejeita tudo quanto existe, sem oferecer nada para repô-lo. Ele chega a dissolver todos os laços sociais existentes…
2. Jesus é como os bolcheviques:
…Seu zelo pela destruição dos laços sociais não conhece limites. A força motriz por trás da pureza e do poder de tal completa negação é uma inspiração extática e uma esperança entusiástica de um novo mundo. Daí seu ataque apaixonado a tudo quanto existe. Tudo pode ser destruído porque Deus, em Sua onipotência, vai reconstruir a futura ordem. É desnecessário examinar se alguma coisa pode ser reaproveitada na passagem da velha para a nova ordem, porque essa nova ordem erguer-se-á sem auxílio humano. Ela não demanda de seus partidários, portanto, nenhum sistema ético, nenhuma conduta particular em qualquer direção positiva. Fé, e apenas fé, esperança, expectativa – isso é tudo o que é necessário. Ele [o homem] não precisa contribuir em nada para a reconstrução do futuro, Deus Ele mesmo o sustentou. O mais claro paralelo moderno à atitude do cristianismo primitivo de completa negação é o bolchevismo. Os bolcheviques, igualmente, desejam destruir tudo quanto existe porque eles o consideram algo desesperadamente mau. Mas eles têm em mente planos – por mais indefinidos e contraditórios que eles possam ser – para uma futura ordem social. Eles exigem não apenas que seus seguidores devem destruir tudo quanto exista, mas também que eles adotem uma linha de conduta definida, que conduz em direção ao Reino futuro com o qual eles sonharam. O ensinamento de Jesus a esse respeito, por outro lado, é somente negação.
3. Jesus despreza os ricos, incitando o mundo à violência contra eles e suas propriedades; e Seu ensinamento espalhou “semente maligna”:
Naturalmente, uma coisa está clara e nenhuma interpretação habilidosa pode ocultar isso. As palavras de Jesus estão cheias de rancor contra os ricos, e os Apóstolos não são menos brandos a respeito disso. O Homem Rico é condenado porque ele é rico, o Mendigo é louvado porque ele é pobre. A única razão por que Jesus não declara guerra contra os ricos e não aconselha vingança contra eles é que Deus disse: “A vingança é minha”.
No Reino de Deus os pobres serão ricos, mas os ricos estarão envoltos em sofrimento. Revisores tardios tentaram abrandar as palavras de Cristo contra os ricos, das quais a versão mais completa e vigorosa é encontrada no Evangelho de Lucas, mas resta um bocado suficiente para apoiar aqueles que encorajam o mundo a sentir ódio, a se vingar a assassinar e a queimar os ricos. Até a época do Socialismo moderno nenhum movimento contra a propriedade privada que se originou no mundo cristão falhou em buscar autoridade em Cristo, nos Apóstolos, e nos Padres Cristãos, para não mencionar aqueles que, como Tolstói, fizeram do ressentimento evangélico contra os ricos o próprio coração e alma de seu ensinamento.
Este é um caso no qual as palavras do Redentor espalharam semente maligna. Mais dano tem sido causado e mais sangue tem sido derramado por conta delas do que pela perseguição aos heréticos e queima das bruxas. Elas sempre tornaram a Igreja indefesa contra todos os movimentos que almejam destruir a sociedade humana…
4. A Igreja, e não o liberalismo Iluminista, abriu caminho para o Socialismo:
…Seria estúpido sustentar que o Iluminismo, ao arruinar gradativamente o sentimento religioso das massas, abriu caminho para o Socialismo. Ao contrário, foi a resistência que a Igreja ofereceu à disseminação das ideais liberais que preparou o solo para o rancor destrutivo do pensamento socialista moderno. A Igreja não apenas não fez nada para extinguir o fogo, mas ela até mesmo tocou fogo na brasa…
5. A doutrina cristã destrói a sociedade, proíbe a preocupação com o sustento e o trabalho, prega o ódio à família e até mesmo endossa a castração:
…É por isso que a doutrina cristã, uma vez separada do contexto no qual Cristo a pregou – expectativa do iminente Reino de Deus –, pode ser extremamente destrutiva. Nunca e em lugar algum um sistema de ética social que abraça a cooperação social poderá ser construído a partir de uma doutrina que proíbe qualquer preocupação com o sustento e o trabalho, enquanto expressa um feroz ressentimento em relação aos ricos, prega o ódio à família e defende a castração voluntária.

[2] LE GOFF, J. A Idade Média e o Dinheiro – Ensaio de antropologia histórica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

[3] FROMM, E.  O Medo à Liberdade. Apêndice: O Caráter e o Processo Social. 1974. P.223.

[4] BENTHAM, J. Princípios do Código Civil, Cap. 4.

[5] Citado por POLANYI, K. “A Grande Transformação: as origens de nossa época”, Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, capítulo 10, pg 131

[6] Reproduzido em https://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=816

[7] E. A Judge, citado por JEWETT, R, “Paulo, a vergonha e a honra”, em SAMPLEY, J. Paul (org.), Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008. Pg. 488

[8] O estudo mais proeminente sobre a crucificação e sua carga no imaginário dentre os povos no império romano continua sendo o clássico: HENGEL, Martin. Crucifixion in the Ancient World & the Folly of the Message of the Cross. Philadelphia, PA. Fortress Press, 1977

[9] HENGEL, M. Property and Riches in the Early Church: Aspects of a Social History of Early Christianity, Philadelphia Fortress Press, 1974.

[10] HURTADO, L. As Origens da Adoração Cristã: o caráter da devoção no ambiente da igreja primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2011. pgs. 18 e 23.

[11] RICOER, P. History of Truth, Northwestern University Press, 1965, p. 123

[12] MALINA, B J. The New Testament World: Insights from cultural Anthropology.  Louisville: Westminster John Knox Press, 1981 (3rd Revised Edition, 2001). pg 27.

[13] APPIAH, K. A. O Código de Honra: Como ocorrem as revoluções morais. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. pg 185

[14] – ibid, pg 17.

[15] – ibid, pg. 35

[16] – ibid, pg. 34

[17] SILVA, Ana B. B. Bullyin: Mentes perigosas na escola. São Paulo: livraria da Folha, 2010.

[18] APPIAH, op. cit., pg. 34

[19] TAYLOR, C. A Ética da Autenticidade. São Paulo: Realizações Editora, 2011. pg. 43

[20] – ibid, pg. 58

[21] APPIAH, op. cit., pgs. 181, 182, 183

[22] WALZER, M. Das Obrigações Políticas: Ensaios Sobre Desobediência, Guerra e Cidadania. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. pgs 20-27.

[23] Estrabão, Geografia 8, 6-19.

[24] BAROJA, J. C. 1971 [1965]. “Honra e Vergonha: exame histórico de vários conflitos”. In J.G. Peristiany (org.). Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

[25] SHIPLEY, G. 2000. The Greek World After Alexander 323-30BC. London: Routledge pg 384-385

[26] CHOW, J. K. “Patronato na Corinto Romana”, em HORLSEY, R. H. (org.) Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. pg. 122

[27] GLAD, C. E. “Paulo e a Adaptabilidade”, em SAMPLEY, J. P. (org.), Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008.

[28] HURTADO, op. Cit., pg 18

[29] PRICE, S.R.F. “Rituais e Poder”, em HORLSEY, R. H. (org.) Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. pg. 76.

[30] Em uma passagem escrita no século I a.C. Pelo o filósofo e advogado Marco Túlio Cícero, podemos ver a expressão máxima de vergonha e horror que representava ser crucificado: “um castigo muitíssimo cruel e repugnante”. (…)”Atar um cidadão romano e crime, chicoteá-lo e abominação, matá-lo e quase um ato de assassínio: crucificá-lo e — o que? Não ha palavras que possam descrever ato tao horrível”.

Em um discurso advogando pelo senador Gaio Rabirio, acusado de homicídio: “a própria palavra cruz deve ser removida para longe não apenas da pessoa do cidadão romano, mas também de seus pensamentos, olhos e ouvidos. Pois não e somente a ocorrência destas coisas ou a capacidade de suportá-las, mas a possibilidade delas, a expectativa, deveras, a mera menção delas, que e indigna de um cidadão romano e de um homem livre”. Em: “Contra Verres” tomo II. V. 64, paragrafo 165. e V. 66, paragrafo 170. Observa-se que a preocupação condenatória se restringiu a cidadãos romanos.

[31] HURTADO, Larry. Senhor Jesus Cristo: devoção a Jesus no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2012. pg. 82

[32] KEENER, Craig. S. Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte: Atos. 2004. pg. 469.

[34] CHOW, op. cit. pg. 123

[35] DESTRO, A. e PESCE, M. Formas Culturais do Cristianismo Nascente. Aparecida: Editora Santuário, 2010. pg. 85

[36] DeSILVA, D. A. A Esperança da Glória: Reflexões sobre a honra e a interpretação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2005. pg. 237

[37] KEENER, op. cit., pg 494.

[38] CHOW, op. cit. pg. 127

A atriz transexual Viviany Beleboni. Foto no Voyager

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