A OMS completa 70 anos dependendo mais de doações voluntárias do que das contribuições obrigatórias dos países-membros. A fundação de Bill Gates arca sozinha com mais de 13% do orçamento total — e essa filantropia não vem de graça
Por Raquel Torres, no Outra Saúde
O ano era 2005, a cidade era Genebra, o evento era a 58ª Assembleia Mundial da Saúde e o palestrante na abertura era o homem mais rico dos Estados Unidos: Bill Gates. Co-fundador e então diretor da Microsoft, ele foi convidado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para falar a ministros dos quase 200 países membros. Seu interesse particular na saúde global havia despertado havia pouco mais de cinco anos, mas Gates já se tornara uma figura importante, distribuindo centenas de milhões de dólares a programas pelo mundo todo. E, embora a Assembleia de 2005 tenha sido a primeira em que a família Gates teve destaque, não foi a última. Bill também abriu o evento em 2011 e, em 2014, foi a vez de sua esposa, Melinda, discursar.
Desde o dia 7 de abril de 1948, quando a OMS foi criada formalmente, até hoje, 70 anos depois, muita coisa mudou. E uma das mudanças mais marcantes é o peso de atores não estatais no orçamento e na definição de prioridades da Organização. São fundações filantrópicas, organizações não governamentais, instituições acadêmicas e mesmo empresas privadas, como as farmacêuticas GlaxoSmithKline, Eli Lilly, Bayer e Sanofi. Mas, hoje, um desses atores se destaca sobre todos os demais: é justamente a Fundação Bill & Melinda Gates, cuja contribuição atual representa nada menos que 13% do orçamento geral da OMS.
Isso é mais significativo ainda quando se pensa no volume representado pelas contribuições fixas dos estados-membros. “Na realidade, elas são hoje a menor parte do orçamento da OMS”, nota Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). De fato, o site da organização mostra que só cerca de 20% do orçamento da OMS vem das contribuições obrigatórias — os outros 80% vêm de doações extras feitas tanto por atores não estatais como por países que contribuem além de sua cota mínima.
Imenso emaranhado
Não foi Bill Gates quem inventou a moda de doar recursos financeiros para alavancar programas de saúde em outros países. Há mais de cem anos — antes mesmo de a OMS existir —, a Fundação Rockefeller fazia isso. “As discussões sobre essa participação nasceram junto com a própria OMS. Sua constituição já previa parcerias e formas de atuação conjuntas”, conta Mariana Martins, que faz parte do Movimento pela Saúde dos Povos e pesquisa a relação entre o organismo internacional e atores não estatais.
Mas ela diz também que essas formas foram ampliadas ao longo dos anos através de emendas nas diretrizes e nos princípios que regem a Organização. “E os anos 2000 apresentaram ao mundo as Parcerias ou Iniciativas para a Saúde Global, que a OMS define como ‘uma relação colaborativa e formal entre organizações múltiplas’ com um órgão de governança separado. Então você vai debater um tema como nutrição e um dos atores vai ser a Global Alliance for Improved Nutrition, uma iniciativa que inclui a indústria alimentícia, o Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] , a OMS, o Banco Mundial e outras entidades. É uma teia, um emaranhado no qual é difícil até mesmo mapear todos os atores envolvidos direta e indiretamente, imagina evitar por completo que obtenham benefícios”, pontua.
Mariana dá uma ideia do tamanho dessa rede: “Na última Assembleia Mundial da Saúde estavam registradas 186 organizações, o que significa que, no ano passado, esse era o número de organizações que mantinham relações oficiais. Mas em 2014, um relatório apontou que 729 organizações mantinham algum tipo de envolvimento com a OMS. Agora se você imagina que, por exemplo, uma parceria envolve uma iniciativa, que envolve mais um grupo de entidades… Já dá para ter uma ideia do quão complicada é a tarefa de garantir que os recursos destinados à OMS sejam usados com o fim único de melhorar a saúde das populações”.
Filantrocapitalismo
As diferenças entre a filantropia praticada por grandes capitalistas hoje e aquela que faziam no início do século passado, inclusive em outras áreas além da saúde, não são irrelevantes. Foi em 2006 que, em um artigo para a revista The Economist, o jornalista Matthew Bishop inventou a palavra filantrocapitalismo para se referir à então nova onda de bilionários que destinavam grandes somas a projetos sociais esperando, necessariamente, um retorno em forma de lucro. “Por um lado, este termo quer demonstrar que capitalismo não é só exploração, tem também uma face mais ‘beneficente’, generosa. Por outro, tenta colocar as ideias do setor privado, do lucro e da eficiência, dentro da filantropia”, diz Anne-Emanuelle Birn, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Toronto, no Canadá.
A saúde global não estava de fora. “E uma diferença fundamental entre a atuação da Fundação Rockefeller há cem anos e a da Fundação Gates hoje está na relação com a saúde pública”, nota, por sua vez, Deisy Ventura. Não que o trabalho de Rockefeller fosse exatamente gratuito: naquele tempo a fundação já usava a filantropia como forma de marketing e veiculava seus próprios interesses, os dos Estados Unidos e os daquela fase do capitalismo, ajudando a manter a mão de obra mais saudável e a expandir mercados consumidores.
E essa transformação começou a se insinuar nos anos 1960 e 70. Anne-Emanuelle conta que houve um movimento internacional importante por parte dos países então chamados de Terceiro Mundo no sentido de trazer as Nações Unidas e a OMS mais para perto de suas necessidades, e começou a aparecer um esforço do organismo em relação à atenção primária em saúde. A Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978 na antiga União Soviética, foi um marco nesse sentido.
Sua declaração final reafirmava a definição — já presente na Constituição da OMS — de saúde como “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”, defendendo-a como direito fundamental e como “a mais importante meta social mundial”. Ela também criticava a desigualdade social, dizia que era “direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde” e colocava a atenção primária como sendo fundamental para melhorar a saúde das populações.
Birn conta que, nesse momento, a Fundação Rockefeller, que havia se afastado um pouco da saúde, retornou, mas já com uma outra posição, porque começou a achar aquelas ideias muito ‘radicais’: “Ver a saúde como um direito, algo que vinha do contexto socio-político… Diziam que aquilo era muito bonito, mas muito difícil de alcançar. E que, em vez de ter um enfoque mais amplo, seria melhor ter um enfoque mais técnico e com resultados mais rápidos”, explica a pesquisadora, notando que, anos mais tarde, esta fundação participaria ativamente do processo de criação das parcerias público-privadas. (Ela também observa que a Fundação Rockefeller passou a se concentrar em outras áreas, e foi quando os Gates chegaram à saúde, no ano 2000, que a nova ‘cara’ da filantropia ficou bastante óbvia).
Os anos que se seguiram a Alma-Ata foram de disputa. À atenção primária à saúde, defendida pela OMS, se opunha a atenção seletiva, com programas focados na sobrevivência infantil que foram capitaneados pelo Unicef, com o apoio de outros parceiros. E, como ressalta Anne-Emanuelle, já nessa época o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) orientavam que os países cortassem seus gastos, não apenas em saúde, mas nas políticas sociais como um todo, como condições para o recebimento de empréstimos de ajuste estrutural.
Como as contribuições obrigatórias são proporcionais ao tamanho e ao PIB dos países, a suspensão, ainda que temporária, foi muito significativa, e as doações voluntárias preencheram cada vez mais os espaços. “No final da década de 1980, os fundos extraorçamentários já haviam ultrapassado o orçamento regular, e os doadores podiam controlar no que esses recursos seriam utilizados, pois eram recursos marcados”, narra Mariana.
Recursos marcados?
A expressão usada por ela explica por que os doadores voluntários interferem tanto nas decisões sobre a saúde global. É que a imensa maioria dessas doações chega ‘carimbada’ para uso em programas e ações específicos escolhidos pelos doadores.
O site da OMS mostra que, entre as doações voluntárias sem ‘carimbo’, a maior parte vem atualmente dos governos da Suécia e do Reino Unido, que colocam pouco mais de US$ 30 milhões cada. Mas é o volume das que vêm com destino certo (classificadas como “contribuições voluntárias específicas”) que mais impressiona: também de acordo com o site, dos US$ 4,7 bilhões que a OMS teve de orçamento total no último biênio, US$ 3,6 bilhões — ou 76% do total — estavam nessa condição.
Há vários anos, os Estados Unidos e a Fundação Bill & Melinda Gates se revezam no topo dessa lista. Hoje, ela é encabeçada pela Fundação, com US$ 618,7 milhões, e os EUA estão um pouco abaixo, com US$ 618,2 milhões — isso sem contar a sua cota obrigatória de US$ 227 milhões (o que reforça também o papel daquele país nas decisões). É mais fácil entender o significado desses números comparando-os com a soma das contribuições obrigatórias de todos os 193 países-membros, que é US$ 929 milhões. Isso quer dizer que o volume doado pela Fundação Gates equivale a dois terços do montante formado pelas contribuições fixas — só que todo o seu dinheiro chega com destino certo.
Deisy Ventura resume o problema: “O doador altera a ordem de prioridades de quem recebe a doação. E leva, por meio do financiamento, a Organização a trabalhar em áreas que talvez não sejam prioritárias para a saúde mundial, mas são prioritárias para esses doadores”.
Ela observa ainda que, normalmente, programas priorizados são aqueles cujos resultados são mensuráveis no curto ou médio prazo. “São intervenções com custo-benefício aferível facilmente. Por exemplo, eu consigo dizer que dei tantos milhões de dólares para campanhas de vacinação, e que tantos milhões de pessoas foram vacinadas”. De fato, a fundação Gates informa em seu site que a maior parte do seu dinheiro vai para erradicação da poliomelite e programas de vacinação.
A questão é que ações importantes do ponto de vista da saúde pública acabam ficando de fora. “Acesso à água potável, acesso a banheiros — parece elementar, mas há centenas de milhões de pessoas no mundo sem acesso a banheiros —, saneamento básico de forma geral, esses são elementos essenciais, mas é mais difícil mensurar a eficiência desses programas, fazer marketing com essas iniciativas”, avalia Deisy.
Além de não ser facilmente mensurável, esse tipo de iniciativa ainda é menos lucrativa e, como já vimos, na versão explicitamente capitalista da filantropia as doações têm o lucro como finalidade. A pesquisadora avalia que a Fundação Bill e Melinda Gates preconiza ao mesmo tempo uma determinada visão sobre a economia e sobre a saúde, defendendo que as iniciativas para o combate à pobreza — e para o desenvolvimento da saúde global — sejam boas, mas também gerem negócios.
De acordo com Deisy, isso não é nenhum segredo. “Eles falam sobre isso abertamente. Melinda, por exemplo, ao discursar na abertura da Assembleia Mundial de Saúde de 2014, disse que ‘salvar recém-nascidos é um ato bondoso de amor que também tem significado empresarial’”, lembra. Na ocasião, Melinda citou um estudo que relacionava saúde e crescimento econômico, mostrando que cada dólar investido gerava nove dólares em benefícios econômicos. “Isso sem contar as enormes vantagens econômicas de uma força de trabalho mais saudável e produtiva”, acrescentou a filantropa em seu discurso.
Este relatório publicado em 2014 pelo Global Policy Forum mostra ainda que existe uma ‘porta giratória’ entre a Fundação Gates e a indústria farmacêutica, com vários diretores ligados à Fundação tendo feito carreira nas maiores empresas. O estudo também cita que ela criou uma janela de financiamento chamada Programme Related Investments, onde todo o dinheiro é usado para investir diretamente em companhias privadas como a CureVac, uma biofarmacêutica alemã voltada para a fabricação de vacinas.
E um dos mantenedores da Fundação Gates é o magnata Warren Buffett, o maior investidor norte-americano (que, como Bill Gates, está sempre na lista de homens mais ricos do mundo). Ele doa ações da sua holding Berkshire Hathaway, que investe em diversas companhias. Entre as empresas que concentram os maiores investimentos de Warrent estão a Coca-Cola, o Walmart (que tem milhares de farmácias nos Estados Unidos e estuda entrar no ramo de seguros de saúde) e a DaVita HealthCare (uma companhia norte-americana de assistência à saúde). Segundo a revista Forbes, Buffett tem aumentado seus investimentos na Monsanto, e a CNN mostra seu particular interesse na farmacêutica israelense Teva.
“Não precisamos eliminar a pobreza, precisamos produzir uma vacina”
A atuação da Fundação Gates na OMS levanta questionamentos há algum tempo. Em 2005, Anne-Emanuelle escreveu no Lancet uma das primeiras críticas nesse sentido. O artigo Gates’s grandest challenge: transcending technology as public health ideology analisava uma iniciativa lançada pela Fundação em 2003 que listava 14 grandes desafios da saúde global — pesquisadores do mundo todo eram convidados a estudar e solucioná-las. Em seu texto, Birn denunciou o enfoque pura e excessivamente tecnicista da iniciativa, que deixava de lado questões sociais e políticas em vez de integrar o técnico ao sócio-político, e demonstrou o quanto justamente essas questões haviam sido importantes para melhorar as condições de saúde nos países desenvolvidos.
Um ponto emblemático dos 14 desafios dizia respeito à melhora da nutrição da população mundial, que se daria por meio do desenvolvimento de uma única planta que contivesse todos os nutrientes necessários (coincidência ou não, em 2010 um relatório demonstrou que a Fundação Gates investia pesadamente em ações da Monsanto, gigante produtora de sementes transgênicas).
O artigo de Birn teve enorme repercussão e a resposta de Gates não tardou. Veio em seu primeiro discurso na Assembleia, dois meses depois: “Alguns apontam para a saúde melhor no mundo desenvolvido e dizem que só podemos melhorar a saúde quando eliminarmos a pobreza. E eliminar a pobreza é um objetivo importante. Mas o mundo não teve que eliminar a pobreza para eliminar a varíola — e não precisamos eliminar a pobreza antes de reduzir a malária. Precisamos produzir e entregar uma vacina — e a vacina salvará vidas, melhorará a saúde e reduzirá a pobreza”, sentenciou.
Para Deisy, a lógica de Gates “diz tudo”. “Quando se produzem e vendem remédios e vacinas, tem sempre alguém enriquecendo com a venda. Eliminar a pobreza seria uma mudança estrutural que levaria à menor necessidade de remédios e vacinas. Para quem enriquece, é interessante, em lugar de melhorar as condições de vida e diminuir a incidência de doenças, oferecer remédios. Não tenho nada contra remédios, óbvio, mas não adianta muito tê-los se mantemos as condições que geram um determinado padrão de doença”, diz, ressaltando que o raciocínio não se aplica apenas a países pobres: “Países de porte médio já têm despesa pública elevada por conta de problemas muito relacionados a comportamento, como diabetes e pressão alta”.
Uma tentativa de regular
Não há limites previstos para a fatia do orçamento que pode ser preenchida por doadores voluntários. Mas dois anos atrás foi aprovado o Marco para Colaboração com os Atores Não Estatais (Fensa, na sigla em inglês). “O Fensa traz, entre outros elementos, diretrizes que buscam evitar esse conflito de interesse, proibindo a contrapartida por doações financeiras ou de medicamentos, por exemplo”, explica Mariana Martins, com a ressalva: “Na prática, acho bastante difícil evitar isso completamente, por causa das dificuldades de aplicar os mecanismos em uma rede de atores tão complexa”.
Ela afirma que o Marco proíbe a OMS de manter relações com as indústrias do tabaco e armamentista, mas não há restrições específicas a empresas de saúde, desde que as diretrizes não sejam violadas e que não se caracterize um desvio de função do organismo. “A Federação Internacional de Indústrias e Associações Farmacêuticas está entre as organizações que mantêm relações oficiais com a OMS”, destaca.
Deisy Ventura afirma que ainda é cedo para avaliar os resultados da Marco, ainda em fase de implementação, mas que há uma grande discussão sobre seus possíveis efeitos. “Alguns argumentam que o Fensa aumenta a transparência e evita conflitos de interesses, mas outros acreditam que ele pode acabar legitimando a influência dos grandes financiadores”.
Há críticas, por exemplo, à própria noção de conflitos de interesse no documento: “O conflito é definido como a ocasião em que um interesse secundário predomina e pode ser percebido como influência indevida na independência e na objetividade de alguma ação, como pareceres ou definições de padrões. Mas o Fensa fala em gestão dos conflitos de interesses e afirma que a existência de um conflito não prejudica, em si, a relação entre um ator não estatal e a Organização. O que existe são critérios que devem ser aferidos para ver se há ou não uma situação de risco de comprometimento da idoneidade da OMS. Isso tem sido apontado como algo que ficou aberto demais. A questão é saber como isso vai ser aplicado”, explica.
Mudança de papel
Em sua Constituição, escrita ainda em 1946, a OMS aparece como tendo função de coordenar os trabalhos internacionais relativos à saúde mas, segundo Deisy, nesse ponto ela “perdeu muito terreno” — e pode-se dizer que a crise tem origens financeiras. “Na segunda metade do século 20 começa a crescer uma certa visão de desenvolvimento muito ligada à captação de investimentos internacionais que, por sua vez, tinham base na imposição de condicionalidades. O Banco Mundial, por exemplo, passou a impor condições como a diminuição dos investimentos públicos em saúde e mesmo a demissão de trabalhadores”, diz a professora, lembrando que o FMI e o BM influenciaram reformas em Serra Leoa e na Libéria, recomendando a demissão de trabalhadores da saúde nesses países um pouco antes da eclosão da epidemia de ebola. “A OMS passou a ter ‘rivais’ pela via do financiamento”, resume.
Para as pesquisadores ouvidas pelo Outra Saúde, uma das principais consequências disso é a perda de autonomia por parte da Organização. “E ela perdeu também autoridade, porque, além dos 80% do orçamento da OMS que são controlados pelos doadores, há muito dinheiro para a saúde global que passa por fora do organismo”, diz Anne-Emmanuelle. Para ficar no exemplo da Fundação Gates: enquanto as doações para a Organização ficaram em torno de US$ 600 milhões no último ano, seu site mostra que, em 2016, US$ 1,1 bilhão foi destinado destinado à saúde global, e houve outros 2,2 bilhões na rubrica ‘desenvolvimento global’, em que grande parte das ações envolve saúde (vacinação e erradicação da pólio estão aí).
A entidade também está no H8, um grupo informal criado em 2007 para formular estratégias para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, pactuados pelos países das Nações Unidas no ano 2000. As outras sete participantes são o Banco Mundial, a OMS, o Unicef, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), o Fundo Global de Luta contra Aids, Tuberculose e Malária (GFATM) e a GAVI Alliance (uma aliança pela vacina impulsionada pelo casal Gates em 1999). A esse respeito, diz o relatório do Global Policy Forum: “Uma das reuniões de alta cúpula em 2009 foi realizada em Seattle, local da sede da Fundação Gates. O conteúdo da reunião não foi tornado acessível ao público, bem como nenhuma agenda, nem houve qualquer publicação de declarações após o encontro, indicando o modo pouco transparente pelo qual as decisões estratégicas sobre políticas de saúde globais são feitas”.
Mas a Organização mantém um papel bem relevante: o de estabelecer recomendações e padrões internacionais relativos à saúde, como a classificação internacional de doenças. “Há um conjunto de normas da OMS que seguem como grandes referências e, nesse aspecto, ela ainda é muito influente”, diz Deisy, mas pondera: “O que é pouco falado em relação a isso são as batalhas campais travadas na Organização quando da produção desses padrões. Nos que dizem respeito à nutrição, por exemplo, a indústria de alimentos tem um poder forte. A OMS convive o tempo inteiro com essa disputa interna que é pouco visível, e os mesmos atores que ajudam no seu financiamento são interessados nos padrões que ela produz”.
A crise da OMS é apontada há décadas, e não parece haver realmente uma solução no horizonte. “A questão que se coloca é: sem OMS, como seria?”, provoca Deisy, afirmando que já existem algumas pistas sobre a resposta. Em 2014, foi criada a Agenda da Segurança da Saúde Global, uma aliança que hoje conta com mais de 50 países, além de ONGs e organizações internacionais, focada em evitar a propagação de doenças infecciosas.
Segundo a professora, trata-se de uma aliança “claramente coordenada pelos Estados Unidos e que tenta substituir o regulamento sanitário internacional”: “Ela oferece recursos para tomar providências específicas que permitam aos Estados Unidos saber sobre determinados surtos em determinados países, ao mesmo tempo em que oferece pacotes de ajuda para conter esses problemas”, explica, apontando que há o risco de se erodir cada vez mais o multilateralismo presente na OMS e abrir campo para “iniciativas claramente capitaneadas por grandes potências”.
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Saúde para todos
Neste dia Mundial da Saúde (comemorado em 7 de abril, junto ao aniversário da OMS), o tema é “Cobertura universal de saúde: para todos, em todos os lugares”, embora, no Brasil, o termo “cobertura universal de saúde” tenha sido substituído por “saúde universal”. A mudança parece singela, mas os significados podem ser bem distantes.
A cobertura universal é uma bandeira que vem sendo defendida, já há vários anos, pelo Banco Mundial e pela Fundação Rockefeller (como mostra esta reportagem) e faz parte da ‘Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável’, um plano de ações aprovado em 2015 pelas Nações Unidas.
Só que ela deve ser atingida não necessariamente por sistemas públicos robustos, mas por seguros privados. O caderno com um ‘kit de ferramentas para a defesa de direitos’ lançado pela OMS para esta data repete o termo o tempo todo: “#SaúdeParaTodos é uma campanha para promover a cobertura universal de saúde até 2030 — nosso objetivo é apoiar formuladores de políticas, organizações da sociedade civil, indivíduos e a mídia na jornada para levar cobertura universal de saúde para todos, em todos os lugares”, anuncia o documento.
Anne Emanuelle-Birn chama atenção para o fato de que o diretor da OMS vai estar no Sri Lanka hoje (7/4), justo para falar sobre isso. “É muito irônico que este aniversário da OMS seja celebrado no Sri Lanka, que ao menos historicamente é um bom exemplo de sistema público de saúde em um país de baixos ingressos. Nos últimos anos, ele vem sendo afetado pela privatização, mas havia resultados incríveis, por exemplo na baixa mortalidade materna e na redução da mortalidade infantil. Mas tudo isso foi fruto de um sistema público, universal e equitativo, e não só da cobertura universal. É problemático falar em cobertura universal lá, onde o modelo histórico é o de sistema universal público de saúde. A palavra “cobertura” tenta ofuscar a realidade, que não é a de saúde equitativa, nem pública, nem integral”.
Para Deisy Ventura, o risco é justamente o de que esse conceito, “baseado essencialmente no seguro e numa cesta de serviços”, rivalize com grandes sistemas já estabelecidos. “É evidente que, para quem não tem nada, onde não há um sistema público de saúde consolidado, um seguro faz a diferença. Mas é preciso cuidado. Aqui no Brasil, vejo um risco de confusão entre a cobertura universal e os planos acessíveis, a ilusão de que a saúde das pessoas vai melhorar por conta dos planos”, alerta.
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O Outra Saúde solicitou, por e-mail, entrevistas com representantes da OMS e da Fundação Bill e Melinda Gates. A OMS não retornou a mensagem até a publicação desta matéria. Já a Fundação respondeu declinando do pedido.
Melinda Gates na Cúpula sobre Planejamento Familiar em Londres. Foto: Department for International Development
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