por Patricia Fachin, em IHU On-Line
A busca de novos caminhos para a evangelização, especialmente das comunidades indígenas que vivem na Amazônia, mote que orienta o Sínodo Pan-Amazônico a ser realizado em outubro de 2019, significa a “busca de um novo paradigma para a evangelização”, “porque, mesmo depois de 500 anos, nos caminhos da primeira evangelização ainda há entulho teológico-pastoral da época do império e da colonização impedindo que se forje uma Igreja autóctone”, diz Paulo Suess à IHU On-Line, ao comentar o sentido da convocatória feita pelo papa Francisco.
Segundo ele, atualmente “os povos indígenas no Brasil são, basicamente, atendidos por uma Igreja missionária que encaixa a pastoral indigenista na missão ad gentes”. Entretanto, adverte, “a bússola dos ‘novos caminhos’, que o papa Francisco propõe em seu discurso de Puerto Maldonado, aponta para ‘uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena’, que os destinatários desse discurso, em sua soberania autodeterminada, deveriam construir. Essa Igreja autóctone não se constrói de fora para dentro: ‘Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas’. Os ‘novos caminhos’ exigem ‘avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária’ (EG 25)”.
Na avaliação de Suess, apesar do apoio que a Igreja manifesta às comunidades indígenas no Brasil, elas “estão longe de uma plena participação nos processos de evangelização. Uma ‘reserva’ ou restrição ministerial é mantida através de padrões culturais, na formação. Para o acesso aos ministérios de liderança eclesial mais decisiva, como a dos presbíteros ou bispos, a Igreja exige, além do celibato, formação acadêmica, culturalmente inadequada e, economicamente, inacessível aos povos indígenas. (…) Para os povos indígenas, o problema de uma Igreja alienígena não é a cor branca dos seus representantes, mas a incapacidade deles, de falar a sua língua, conhecer seu passado, comer a sua comida e compreender seu pensamento”, relata.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Suess também comenta a reunião da Comissão Pré-Sinodal, realizada nos dias 11 e 12 de abril deste ano, em Roma, que discutiu a primeira versão de um documento preparatório para o Sínodo. “Segundo comunicado divulgado pela Secretaria do Sínodo dos Bispos, no debate destacou-se a importância da região amazônica para todo o planeta. Em especial, os membros e os especialistas se confrontaram sobre a situação pastoral do território e sobre a necessidade de iniciar novos caminhos para uma inculturação do Evangelho mais incisiva junto às populações que o habitam. Em segundo lugar, refletiram sobre a crise ecológica que toca a região e destacaram a exigência de promover uma ecologia integral, na linha traçada pela Encíclica Laudato si’. O papa Francisco esteve presente durante os trabalhos desses dois dias, agradeceu aos participantes, mas não interveio nas discussões”, informa.
Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia.
Entre suas últimas publicações estão Introdução à Teologia da Missão(Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia – A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017) e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).
Paulo Suess estará no XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, que ocorre de 21 a 24 de maio de 2018 na Unisinos, campus Porto Alegre. Na ocasião ministrará o minicurso A teologia da missão à luz da Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, no dia 22 de maio, das 16h às 17h30min, e participará da mesa-redonda O futuro da virada profética do Papa Francisco: desafios e perspectivas para a Igreja do Brasil, juntamente com a Profa. Dra. Bárbara Pataro Bucker e com Ivo Poletto, no dia 24 de maio, das 10h30min às 12h.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste a proposta de fazer um Sínodo Pan-Amazônico? Por que e em que contexto surgiu essa proposta?
Paulo Suess – O papa Francisco justificou a convocação do Sínodo Pan-Amazônico com o pedido de algumas Conferências Episcopais da América Latina e de Pastores e fiéis de outras partes do mundo. Faz tempo que Amazônia está na agenda da Igreja, porque na defesa da Amazônia está a defesa do futuro do planeta Terra. No ambiente eclesial latino-americano, foi a Conferência de Aparecida (2007) que lembrou a “importância da Amazônia para toda a humanidade” (DAp 475). A floresta amazônica, por vezes chamada de “pulmão do mundo”, aponta para uma pneumonia do nosso planeta. Essa pneumonia, com suas dimensões socioeconômicas e pastorais, não é uma fatalidade. Ela tem causas, envolve interesses e pode ser curada.
O Sínodo Pan-Amazônico é dedicado à preservação de um bioma com seus habitantes e tem como ponto de partida o imenso território do qual fazem parte novepaíses: Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa e Brasil, que ocupa aproximadamente 68% do território amazônico. Esse território corresponde praticamente à metade do solo brasileiro. Já tivemos outros sínodos não propriamente temáticos e destinados a territórios-continentes, como África (1995, 2009), América (1997), Ásia (1999), Austrália/Oceania (1998), Europa (1991, 1999) e Oriente Médio (2010).
A Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam foi encarregada para articular os países amazônicos na organização do Sínodo. Essa Rede foi criada num processo, animado pelo Departamento de Justiça e Solidariedade do Celam e pela Comissão Episcopal para Amazônia – CEA da CNBB e acompanhado pelo Secretariado Latino-Americano e do Caribe da Cáritas (Equador), e da Confederação Latino-Americana e do Caribe de Religiosos e Religiosas – CLAR, num encontro organizado em Brasília (09 a 12-9-2014). Apesar de sua temática regional, esse Sínodo será um sínodo da Igreja universal. A região amazônica servirá como ponto de partida para refletir sobre o futuro não só dessa região, mas do planeta Terra e da humanidade.
IHU On-Line – Como é, atualmente, a participação dos povos indígenas nos processos de evangelização na Pan-Amazônia? Qual é sua contribuição?
Paulo Suess – Há diferentes graus de proximidade entre povos indígenas e Igreja Católica. Pelas distâncias geográficas e por opções históricas, nem todos esses povos pertencem a uma Igreja. Vivem sua religião ancestral que os mantêm unidos e preparados para viver em seu território. Com a proximidade do chamado processo civilizatório, uma religião regional não dá mais conta de um mundo globalizado que ameaça todos os espaços regionais. Nesta situação, os povos indígenas podem “globalizar” sua própria religião ou assumem uma religião que lhes permita permanecer indígenas e cidadãos do mundo. É um processo difícil de autoafirmação e participação em novas circunstâncias históricas.
Os povos indígenas, que pertencem à Igreja Católica pelo batismo, estão longe de uma plena participação nos processos de evangelização. Uma “reserva” ou restrição ministerial é mantida através de padrões culturais, na formação. Para o acesso aos ministérios de liderança eclesial mais decisiva, como a dos presbíteros ou bispos, a Igreja exige, além do celibato, formação acadêmica, culturalmente inadequada e, economicamente, inacessível aos povos indígenas.
IHU On-Line – Na crise da Floresta Amazônica, como os povos indígenas podem ser os guardiães dessa floresta para a respiração sadia do mundo inteiro, sendo excluídos da liderança religiosa decisiva de sua Igreja? Como podem viver politicamente autodeterminados e eclesialmente tutelados?
Paulo Suess – Em suas comunidades de batizados sem Eucaristia, encontram-se líderes da Palavra, responsáveis por alguns ritos e, sobretudo, por cultos dominicais, que substituem a Missa, catequistas que preparam a visita esporádica de um sacerdote, e, às vezes, diáconos que podem administrar o batismo e, em alguns casos, com a licença do respectivo bispo, assistir aos casamentos. Contudo, o conjunto da Igreja não tem um rosto amazônico, nem seus sacerdotes, nem seus missionários, nem suas doutrinas, nem, onde ocasionalmente acontecem, suas celebrações eucarísticas. Para os povos indígenas, o problema de uma Igreja alienígena não é a cor branca dos seus representantes, mas a incapacidade deles, de falar a sua língua, conhecer seu passado, comer a sua comida e compreender seu pensamento.
IHU On-Line – O tema do Sínodo Pan-Amazônico é “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. O que a escolha dessas questões revela sobre as preocupações do papa Francisco com a Igreja da Amazônia?
Paulo Suess – A defesa do território Pan-Amazônico não tem outra finalidade senão a defesa da vida dos seus habitantes e do futuro da humanidade: “Quando (os cristãos) anunciam um Evangelho sem conexões econômicas, sociais, culturais e políticas”, trata-se de uma “mutilação” e de um “conluio — embora inconsciente — com a ordem estabelecida” (DP 558). Entre o Sínodo sobre a Nova Evangelização (XIII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos), de 2012, e o Sínodo Pan-Amazônico, em busca de “novos caminhos”, houve uma mudança de visão e de método. Trata-se da transformação de uma evangelização dedutiva de reanimação pastoral para uma evangelização indutiva e sinodal de recriação e participação. Em sua homilia de conclusão do Sínodo de 2012, em 28 de outubro, o papa Bento XVI sublinhou as três dimensões dessa reanimação enfocada pela Nova Evangelização:
— Primeiro, a “pastoral ordinária […] dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade”;
— Segundo, a “missão ad gentes” como dever “de anunciar a mensagem da salvação aos homens que ainda não conhecem Jesus Cristo”; e
— Terceiro, a recondução ao seio da Igreja das “pessoas batizadas”, que “não vivem as exigências do Batismo”.
Os “novos caminhos” do Sínodo da Amazônia são descritos no discurso do papa Francisco durante o “Encontro com os Povos da Amazônia”, em Puerto Maldonado (19-1-2018), construído sobre os três pilares do ver, julgar-discernir e agir. Ao dirigir-se diretamente aos povos da Amazônia, o Papa constata que, “provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora”. Estão em perigo de perder seus territórios “por novos colonialismos” […] mascarados de progresso” e “pelo paradigma histórico que considera a Amazônia como uma despensa inesgotável dos Estados, sem ter em conta os seus habitantes” (ver).
Em seguida o Papa propõe a ruptura com esse paradigma e seus pressupostos institucionais. É imprescindível “fazer esforços para gerar espaços institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os povos nativos, assumindo e resgatando a cultura, a linguagem, as tradições, os direitos e a espiritualidade que lhes são próprios”. “O melhor caminho para transformar as velhas relações marcadas pela exclusão e a discriminação” será balizado pelo “reconhecimento e o diálogo”. Sob o ponto de vista da ação pastoral, os “novos caminhos” partem do reconhecimento de que “a visão do mundo” e a sabedoria dos povos amazônicos “têm muito para nos ensinar”.
Finalmente, o Papa faz um apelo à autodeterminação dos habitantes da Amazônia: “É bom que agora sejais vós próprios a autodefinir-vos e a mostrar-nos a vossa identidade. Precisamos de vos escutar”, escutar a leitura histórica do seu passado e a explicação antropológica de sua visão do mundo, dos seus costumes e suas tradições milenares. E isso vale para todos os campos sociais, para a saúde, a educação, a política, como também para a pastoral da Igreja. O Papa confessa que a Igreja necessita dos povos amazônicos, que precisam plasmar “culturalmente as Igrejas locais amazônicas” e assim forjar uma “Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena”.
IHU On-Line – Como o Sínodo Pan-Amazônico está sendo elaborado? Quem está participando da sua organização?
Paulo Suess – Por sugestão do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), Paulo VIinstituiu o Sínodo dos Bispos com o Motu proprio “Apostolica sollicitudo”, de 15 de setembro de 1965. O Sínodo, que é um órgão consultivo do Papa, deveria dar continuidade ao dinamismo da colegialidade do Concílio e “favorecer a união e a colaboração dos Bispos de todo o mundo com a Sé Apostólica” (Paulo VI, Angelus, 22-9-1974).
Para a realização de um Sínodo, distinguem-se três períodos: o tempo preparatório, que serve para produzir um documento a ser enriquecido pelas igrejas locais; o tempo de realização do Sínodo; e o período pós-sinodal, no qual o Papa escreve uma Exortação Apostólica, sendo livre para assumir as propostas apresentadas pelos delegados sinodais. Até outubro de 2019, estaremos no tempo preparatório do Sínodo.
IHU On-Line – Quais são as decisões, as instâncias, os atores, as atividades em torno desse Sínodo?
Paulo Suess – No dia 15 de outubro de 2017, o Papa Francisco anunciou sua intenção de realizar em 2019 uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica. Como finalidade principal, ele indicou a busca de “novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, sobretudo dos indígenas” e uma responsabilidade eclesial partilhada com outras organizações humanitárias na solução da crise da floresta Amazônica, “pulmão de importância fundamental para o nosso planeta”.
No dia 19 de janeiro, por ocasião de sua visita ao Peru, Francisco se encontrou em Puerto Maldonado com os habitantes da Amazônia, fez um discurso programático sobre a missão do Sínodo, o protagonismo dos habitantes da região e os “novos caminhos” da Igreja, cuja pastoral exige uma inculturação mais decidida. Nesse dia se reuniu pela primeira vez a Comissão Pré-Sinodal do Sínodo para a Amazônia. No dia 8 de março foram divulgados o tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, e os nomes dos 18 membros do Conselho Pré-Sinodal, que deverá colaborar com a Secretaria-Geral do Sínodo na preparação. Entre eles, o secretário-geral da Repam, Mauricio López, e cinco brasileiros: o cardeal D. Cláudio Hummes, presidente da Comissão Episcopal para Amazônia – CEA da CNBB e da Repam; o arcebispo de Porto Velho (RO) e presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, D. Roque Paloschi; o bispo de Juína (MT), D. Neri José Tondello; além de D. Erwin Kräutler, secretário da CEA e coordenador da Repam-Brasil, e a Ir. Maria Irene Lopes, como representante da Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas – CLAR. Foram também nomeados cinco peritos-assessores que acompanham os trabalhos do Sínodo, sem ser membros dele: Peter Hughes (Peru), Fernando Héctor Roca Alcázar (Peru), Márcia Maria de Oliveira (Brasil), Justino Rezende (Brasil) e Paulo Suess (Brasil).
Nos dias 11 e 12 de abril, os membros da Comissão Pré-Sinodal e os assessores discutiram em Roma a primeira versão de um “Documento Preparatório”. Segundo comunicado divulgado pela Secretaria do Sínodo dos Bispos, no debate destacou-se a importância da região amazônica para todo o planeta. Em especial, os membros e os especialistas se confrontaram sobre a situação pastoral do território e sobre a necessidade de iniciar novos caminhos para uma inculturação do Evangelho mais incisiva junto às populações que o habitam. Em segundo lugar, refletiram sobre a crise ecológica que toca a região e destacaram a exigência de promover uma ecologia integral, na linha traçada pela Encíclica Laudato si’. O Papa Francisco esteve presente durante os trabalhos desses dois dias, agradeceu aos participantes, mas não interveio nas discussões.
Neste momento, a equipe do secretário-geral do Sínodo, cardeal Lorenzo Baldisseri, introduz as emendas no documento, pede a aprovação oficial do Papa e cuida das traduções. Para não antecipar o trabalho do próprio Sínodo, aos colaboradores do texto foi pedido certo silêncio sobre seu conteúdo. Logo mais, provavelmente até o fim do mês de maio de 2018, o “Documento Preparatório” irá aos delegados do Sínodo, e estes, com as Igrejas locais que representam, deverão discutir as questões candentes para uma próxima versão do “Documento Preparatório”. O questionário, que acompanha o texto, foi pensado para facilitar essas discussões nas bases. A discussão das Igrejas locais, que reflete o espírito de sinodalidade é a fase mais importante para o Sínodo. Para não esvaziar o método da sinodalidade, na redação da primeira versão do “Documento Preparatório” teve-se o cuidado de não antecipar propostas ou levantar questões que deveriam ser encaminhadas pelas Igrejas locais. Ainda estamos nos prolegômenos do Sínodo. A pauta real só pode ser estabelecida após o retorno do questionário das Igrejas locais. Isso não impede que cada um que conhece a realidade amazônica e, sobretudo, os seus habitantes comece a construir a sua agenda pessoal.
IHU On-Line – Que questões estarão em discussão na Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia no ano que vem?
Paulo Suess – Quem tem a experiência de vida na Amazônia carrega, desde os primeiros dias desta convivência, uma agenda pastoral consigo. Essa agenda perpassa, por opções pessoais, vários estágios entre um silêncio solitário, discussões com amigos em altas horas da noite, diálogos atormentados com instâncias eclesiais e uma discussão pública, por causa de sua novidade considerada heterodoxa. Com o Sínodo convocado pelo Papa Francisco, um Sínodo sobre e desde a Amazônia, chegou o momento que indica a possibilidade de se colocar essas questões na mesa da Igreja universal, já que os problemas sociais e pastorais da Amazônia não são mais meramente “locais”. No mundo globalizado se tornaram universais.
Mas, mesmo não sendo em todos os casos universalmente reconhecíveis, o que deve prevalecer é o princípio da subsidiariedade, que delega, num mundo plural, a solução de certos problemas, às instâncias e regiões diretamente atingidas por esses problemas e aos seus autênticos interlocutores regionais (cf. LS 196). Nesse caso, não se trata de uma terceirização, inventada para se livrar de responsabilidades sociais, mas do reconhecimento do saber local e da necessidade de uma escuta recíproca na qual, por tudo estar interligado, coincide o princípio de subsidiariedade com o da solidariedade (cf. LS 196, 240).
IHU On-Line – Qual seria a sua agenda pessoal para esse Sínodo? Como se podem pensar os “novos caminhos” e as múltiplas ressonâncias de uma agenda para uma Igreja com rosto amazônico?
Paulo Suess – Uma reflexão indutiva, que parte das carências pastorais e ameaças sociais (escassez ministerial, distâncias, diversidade, ideologia do progresso, colonização), me levaria a propor sete núcleos para uma agenda em busca de “novos caminhos”:
1. Articular a opção pelos pobres/outros com a grave crise socioecológica, já que a natureza se encontra “entre os pobres mais abandonados e maltratados” (LS 2).
2. Integrar o paradigma da inculturação em todas as dimensões pastorais como o melhor antídoto contra tendências de uma nova colonização.
3. Assumir expressões das culturas locais para que na celebração dos sacramentos seu caráter de mistérios, que é de natureza teológica, não seja desfocado pelo revestimento e pela normatização de culturas estranhas para a população local.
4. Repensar com audácia a admissão aos ministérios consagrados, em particular ao sacerdócio, para que sejam aptos a atender às reais necessidades do povo de Deus. Muitas soluções pastorais já se encontram na Igreja primitiva. O apóstolo Paulo, quando partiu para a missão numa nova comunidade, nunca deixou uma comunidade atrás sem Eucaristia. Não encontrou nesse cuidado pastoral nenhuma dificuldade teológica.
5. Descentralizar, simplificar e sinodalizar as estruturas organizacionais, diocesanas e paroquiais, para que, pela sua “sobriedade feliz” (LS 224s), sejam mais próximas às comunidades, suas alegrias, dores e esperanças.
6. Aprofundar pastorais diferenciadas a partir dos seus contextos rurais e urbanos, e específicas, em vista dos seus destinatários (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, operários etc.).
7. Reconhecer, organizar e assumir a pastoral amazônica como uma pastoral estruturalmente profética, missionária e pascal que pode inspirar toda a ação pastoral da Igreja.
IHU On-Line – O Papa declarou que “o objetivo principal desta convocação é encontrar novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, especialmente dos indígenas”. O que está sendo discutido sobre a evangelização de comunidades remotas, especialmente as indígenas? Como o Sínodo pretende tratar esses pontos?
Paulo Suess – As palavras-chave, no anúncio do Sínodo, me parecem apontar “novos caminhos”. Depois dos diferentes empreendimentos da “Nova Evangelização”, que não interditou os trilhos paralelos à colonização, a busca de “novos caminhos” é a busca de um novo paradigma para a evangelização. Por que “novos caminhos”? Porque, mesmo depois de 500 anos, nos caminhos da primeira evangelização ainda há entulho teológico-pastoral da época do império e da colonização impedindo que se forje uma Igreja autóctone. Os povos indígenas no Brasil são, basicamente, atendidos por uma Igreja missionária que encaixa a pastoral indigenista na missão ad gentes. A bússola dos “novos caminhos”, que o papa Francisco propõe em seu discurso de Puerto Maldonado, aponta para “uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena”, que os destinatários desse discurso, em sua soberania autodeterminada, deveriam construir. Essa Igreja autóctone não se constrói de fora para dentro: “Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas”. Os “novos caminhos” exigem “avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária” (EG 25).
Não é tarefa da Comissão Pré-Sinodal nem dos assessores antecipar as discussões do próprio Sínodo. Cada um dos nove países pan-amazônicos acumulou muitas experiências válidas de uma pastoral indigenista. No Sínodo precisa-se dar o passo para uma pastoral indígena, para que a missão ad gentes junto aos povos indígenas se torne uma evangelização descolonizada e com estruturas eclesiais amazônicas, com ministérios e teologias progressivamente assumidos pelos próprios povos indígenas. Assumir esse novo paradigma no seio da Igreja universal e nas comunidades indígenas não vai ser fácil. Mas o papa Francisco diz que confia “na capacidade de resistência” dos povos indígenas e na sua “capacidade de reação perante os momentos difíceis”. O Sínodo terá de assumir linhas claras de ação no horizonte dos “novos caminhos”.
IHU On-Line – Quando se trata de evangelização de comunidades indígenas, que questões fundamentais precisam estar presentes no debate, na sua avaliação?
Paulo Suess – No Plano Pastoral do Cimi, objetivos, fundamentos teológicos, desdobramentos pastorais com suas mediações foram bem elaborados. O Cimi se antecipou com a máxima do papa Francisco, em Puerto Maldonado: “A defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida”. Mas também o Cimi, com todos os seus méritos na defesa dos povos indígenas, vai se deixar provocar pelos “novos caminhos” propostos por Francisco. Em muitas dioceses ainda não existe uma pastoral indigenista específica. De quem é a responsabilidade? Poucas vezes aparece um padre nas aldeias e, se aparece, é por pouco tempo. No Brasil, praticamente nenhum agente de pastoral diocesana fala, razoavelmente, uma língua indígena. Depois de 500 anos de presença católica entre os povos indígenas, a maioria daqueles indígenas, que fazem parte do universo religioso cristão, não pertence ao catolicismo. O impulso dos “novos caminhos” que se deve desdobrar em “uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” e no aprofundamento do diálogo inter-religioso pode — no interior de uma ampla aliança socioecológica e anticolonial — acrescentar novas energias aos diferentes cenários da luta indígena.
IHU On-Line – Como o Sínodo Pan-Amazônico tem repercutido na Igreja brasileira? Que tipo de manifestações o senhor tem percebido?
Paulo Suess – Ainda estavam começando as preparações para a XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre os “Jovens, a Fé e o Discernimento Vocacional”, que se realizará em outubro de 2018, o Papa Francisco já anunciou o Sínodo Pan-Amazônico, para outubro de 2019. A impressão de alguns bispos: o pastor cansa as ovelhas. O fato de que todos os bispos têm jovens em suas dioceses, mas nem todas as dioceses pertencem à Amazônia, cria um interesse diferenciado para este Sínodo. Por outro lado, a maioria dos bispos da Amazônia espera uma “adaptação” pastoral que, por sua vez, pode servir para muitas outras regiões. Não só na Amazônia a colonização deve ser combatida com a inculturação. Creio que depois deste Sínodo sobre os jovens vai aumentar o empenho no Sínodo sobre a Amazônia.
IHU On-Line – Como foi a reunião entre a Comissão Pré-Sinodal e especialistas em questões amazônicas, que ocorreu nos dias 11 e 12 de abril em Roma? Quais destacaria como sendo os três pontos mais importantes do encontro?
Paulo Suess – Os “especialistas” são auxiliares dos membros da Comissão Pré-Sinodal. Ambos juntos estão torcendo para nomear os “novos caminhos” e, o que é mais importante, segui-los com coragem. Para mim, pessoalmente, destacaria essas três alegrias e luzes do encontro: a simplicidade que permite a proximidade e, ambos, simplicidade (1) e proximidade (2) respeitam, em seu empenho solidário, a alteridade (3).
Primeiro, a presença simples, silenciosa e sinodal do papa Francisco durante os dias de trabalho. A simplicidade cordial do Papa irradia aquela “sobriedade feliz” que precede a redistribuição equitativa dos bens.
Segundo, o paradigma de “novos caminhos” implica com a rejeição radical a todas as formas de colonialismo. “Evangelização”, “inculturação” e “diálogo inter-religioso” não são três disciplinas ou atividades distintas, sendo a primeira “pastoral”, a segunda “antropológica” e a terceira “ciência da religião”. Desde a encarnação do Verbo, também a Boa-Nova é encarnada nas culturas humanas. E sem a encarnação do Verbo não haveria Boa-Nova nem evangelização nem Igreja autóctone ou diálogo inter-religioso. Haveria uma evangelização fundamentalista, Igrejas coloniais e “culturas do desencontro” em busca de alguma forma de hegemonia.
Terceiro, a evangelização em condições pós-coloniais é a evangelização em condições do reconhecimento da alteridade como um bem do Criador e dom do Espírito Santo. Esse reconhecimento exige proximidade e empenho solidário, exige presença e passos concretos de uma conversão pastoral.
Hoje há um acúmulo de saberes científicos sobre a Amazônia. Não precisamos novas análises. Precisamos decisões para sustentar uma nova presença na região e novos horizontes teológicos que justifiquem essas decisões. Portanto, nessa nova proximidade aos povos não se trata de uma adaptação ritual ou doutrinal. Neste Sínodo, os povos da Pan-Amazônia esperam se encontrar com uma Igreja em busca de sua pós-colonialidade, uma Igreja solidária, vulnerável e vulnerada pelos grandes interesses do Capital, com uma Igreja povo de Deus que constrói o Reino a partir dos pequenos e sua unidade na diversidade do Espírito Santo.