Peixe raro

Por Antônio Claret Fernandes, no MAB

Birra é menino mimado da Casa Grande. Cercado de proteção, ele cresce dependente de Andador. Não se firma sobre os próprios pés. Não sabe o custo de vida. Não trabalha. Sua mente é forjada nesse ambiente.

Do ponto de vista religioso, adepto da teologia da prosperidade e da dominação, sua riqueza acumulada e propriedades são bênção de deus. É grato por isso. Do ponto de vista sociológico, seu enricado é sorte e habilidades inata, uma extensão da materialidade de seu corpo. Algo quase biológico.

Desde tenra idade aprende a ter dó dos ‘desafortunados’, sem sorte na vida ou preguiçosos.

Não lhe passa pela cabeça a acumulação de riqueza enquanto apropriação do trabalho alheio. Por isso sua consciência de homem branco da classe dominante, eivada de preconceito contra o negro, contra o indígena, contra o empobrecido, contra o povo, está em paz.

Além de ir-se tornando um capitalista-padrão, exemplar, Birra se destaca na pirraça. Poucos se igualam a ele. O que lhe vale esse apelido, desde o primeiro dia de escola.

Os opressores o têm por profissional enérgico, mas muitos desconfiam de que ele é, antes de tudo, um imbecil. Justamente por não largar o andador enquanto caminha. É como se a completa comodidade, na meninice, sem nenhum sacrifício, tivesse desenvolvido nele um espírito imaturo. Pra ele, viver é fazer pirraça e brincar de dominador!

No seu viver pirracento, duas birras se destacam. Uma ocorre na infância. Na propriedade da família existe um campo de futebol. Ele, o único enricado entre os demais garotos, é o dono da bola. Então escala os times. Quando grita gol ou qualquer coisa, sua vontade tem que ser feita, do contrário pega a bola e vai embora, correndo.

Ele funciona como um juiz sem sê-lo, por força da Casa Grande, no seu sangue.

As crianças, a maioria filha de agregados da Fazenda, ficam, às vezes, divididas. Umas ensaiam reação. Mas, loucas por futebol, e temendo represálias contra a mãe e o pai, cedem à imposição de Birra. Esse comportamento por conveniência acaba desenvolvendo nas crianças o sentimento de inferioridade e, nele, de superioridade: classe dominante, cujo apito interfere e determina o tempo e o resultado do jogo. Quase um demiurgo.

Birra alimenta tanto esse sentimento de dominador que passa a pensar-se o todo poderoso. Seu apito lhe parece o divisor de águas entre o certo e o errado, o legal e o ilegal. Depois percebe que não é tanto assim, pois, mesmo sendo o dono da bola, seu apito fica completamente desafinado e fraco sem os fortes ventos do Norte, que lhe dão o tom. Alguém mais poderoso manda no seu apito!

Se a primeira pirraça de Birra o acompanha no máximo até à juventude, a segundo lhe penetra até à medula e o segue pela vida toda. Ela está associada à sua ‘paixão’ por peixes, especialmente os menorzinhos.

Birra torna-se um dos maiores proprietários de aquários espalhados por toda a Bacia de Reserva de Águas e Solares das Ilhas Lindas, uma região imensa, incluindo terras, águas doces e salgadas a qual, segundo estudos preliminares, abriga 205 milhões de peixes das mais variadas espécies, inclusive alguns violentos tubarões, embora poucos.

A Bacia de Reserva de Águas e Solares das Ilhas Lindas tem uma beleza incomum e bem natural à vontade, cobiçados pelos barões do Mundo.

Talvez por ter desenvolvido o sentimento de classe opressora, Birra, conforme já notado, tem especial preferência por peixes pequenos. Seus aquários estão, todos, superlotados de lambaris minúsculos, espremidos uns aos outros. A maioria fica, ali, invisível a olho nu. Só se pode vê-los com aparelho especial chamado, genericamente, de sensibilidade,  reflexão e dialética histórica.

Birra não tem esse aparelho e, por isso, sabe apenas por informação de terceiros que esses peixinhos minúsculos existem.

O gosto de Birra por peixes rompe o círculo mais íntimo de sua convivência quando passa a demonstrar uma paixão doentia por uma espécie singularmente rara. Dispõe-se a tudo para tê-la em seu aquário.

A primeira coisa que Birra faz é associar-se a duas famílias poderosas, conhecidas por Bicos de Ferro e Plimplim Abutres. Esta, particularmente, constrói-lhe ilusão de tamanho agigantado através de sofisticado sistema de imagens, que cobre toda a Bacia de Reserva de Águas e Solares das Ilhas Lindas, chegando ao esconderijo de cada qual dos 205 milhões de peixes, gerando, também neles, efeitos ilusionistas.

Entre os acordos, Bicos de Ferro, Plimplim Abutres e Birra decidem esconder suas reais intenções na busca ao peixe particularmente raro, passando, subliminarmente, a mensagem de que sua condução ao aquário é uma vontade dos cardumes maiores, aqueles compostos de peixes miúdos. Uma artimanha cautelar para desestimular revolta nas águas.

A segunda coisa que faz, unido à sua Turma, é tecer rede-armadilha com restos de leis de linha de carretel. Embora muito frágeis, entrelaçam-se umas às outras e, no seu conjunto, passam a impressão de unidade e resistência.

Dos Estados Unidos, de onde vem o vento forte que define o tom do seu apito, aonde vai amiúde, Birra encomenda uma tinta especial, um verde-amarelo fechado, e, em pano semelhante à bandeira – mas sem noção de Pátra – escreve: ‘ o peixe raro é culpado pela sujeira da água até que prove o contrário’. Em seguida, pede aos Plimplim Abutres para divulgá-la nas águas, doces e salgadas, igarapés, rios, açudes e sobre as terras, repetida, centenas e milhas de vezes, feito mantra. Assim, Birra busca trocar o princípio do Direito Romano, segundo o qual todo peixe é inocente até que se prove o contrário, pelo princípio Norte Americano. O ônus da prova fica com o acusado.

Com essas providencias, Birra cria a possibilidade real de prender o peixe especialmente raro. Sente, por antecipação, aquela relíquia-prêmio em suas mãos. Alegra-se tanto a ponto de não conter-se, iniciando adaptação de sala de 15 metros quadrados (3×5) para servir de aquário no Sul da Bacia de Reserva de Águas e Solares das Ilhas Lindas.

Algumas piabinhas e lambaris, inebriados pelo ilusionismo da família Plimplim Abutres e pelo tamanho da sala, em adaptação para aquário, chegam a pensar que é espaço de Tubarão. Mas descartam logo essa ideia. Pela biografia de Birra, sabem que ele não prende Tubarão. Ele sempre ‘adorou’ peixes miúdos e, no caso específico da caçada ao peixe raro, sua ‘paixão’ traz algo de doentio.

Concomitantemente, aproveitando valorosa ajuda dos Plimplim Abutres, realiza minucioso estudo do ‘modus vivendi’ do peixe raro. Sabe-se, por antecipação, que ele migra do Nordeste para o Sudeste da Bacia de Reserva de Água e Solares das Ilhas Lindas e, aí, adquire uma robustez incomum. A razão principal seria a presença, nessa região, de um elemento novo conhecido por operariado. Mapeiam-se, em detalhes, todos os diferentes ambientes por onde o peixe raro costuma passar ou estar.  Vê-se, por seu ‘modus vivendi’, que é um peixe idiossincrático, ora pelos ares ora por terra ora por água, salgada ou doce.

Um grande desafio de Birra é, agora, após vasculhar a vida pública e privada do peixe raro, encontrar o local mais adequado para armar a rede. Novamente ele conta com a preciosa ajuda dos Plimplim Abutres. Após minuciosa análise do Comando das tramoias (alguns chamam de golpe), tida por certeira, Birra opta por colocar a armadilha em dois locais: no tríplex do Guarujá e no Sítio de Atibaia, ambos localizados no Sudeste da Bacia de Reserva de Água e Solares das Ilhas Lindas. A razão principal é que, ali, foi possível afixar ganchos para atar a rede.

Outra providência de Birra é encomendar, do exterior, uma substância chamada Cinismo-drogas, elemento capaz de hipnotizar a presa e atraí-la. Essa substância é inventada a partir da observação de certo tipo de cobra venenosa que, mirando o sapo com seu olho morto, o faz pular na direção do Predador até cair em sua boca escancarada.

O uso dessa substância – aparentemente desnecessária, já que o peixe raro está entrelaçado na rede armada com esse fim – justifica-se para evitar uma revolta entre cardumes das mais diferentes espécies. Não se sabe a razão cabal, mas é fato que existe uma empatia entre centenas de milhares de peixinhos miúdos e o peixe raro. Se alguns deles reagem, coloca em risco a segurança da rede, feita de resto de leis extremamente frágeis de tecido podre.

Há várias teorias para explicação dessa empatia entre o peixe raro e a imensa maioria dos peixinhos miúdos. Há quem ache que é só porque, por alguns anos, lhes deu ração. E continuam nessa expectativa. Os filhotes de Tubarão, por sua vez, orientados por seus pais, insinuam que a ração foi roubada. Outros pensam que é pelo fato de ter encontrado alimento farto em mar aberto, numa profundidade de 7 mil metros; um tipo de óleo milagroso que, usado de forma adequada, melhora a pele e é muito bom para o cérebro, principalmente de lambaris e piabinhas. Existem algumas agremiações de cardumes que vêm no peixe raro seu líder nato e único, com possibilidade real de tornar-se Presidente da Bacia de Reserva de Águas e Solares das Ilhas Lindas, com 40% das intenções de voto.

Entre as agremiações, algumas não descartam essa corrida à Presidência, mas se colocam na disputa, principalmente, pelo óleo milagroso, capaz de suprir diferentes necessidades e abrir caminho à soberania. Nesse caso, a leitura é que Birra, um aparente apaixonado por peixinhos miúdos, é usado para fraudar o óleo.

Muitos, porém, se sentem atraídos pelo peixe raro; não por isso ou por aquilo, mas, simplesmente, pelo seu brilho, parecido, segundo dizem, ao de uma estrela.

O certo é que, com tantas artimanhas, o peixe raro chega, finalmente, ao aquário, no Sul da Bacia de Reserva de Águas, Solares e Ilhas Lindas, e Birra, com fome leonina sobre presa abatida, oferece-lhe, além de água para nadar, marmita e pitada diária de sol.

Apesar da substância hipnotizante e da mensagem segundo a qual a condução do peixe raro ao aquário é uma vontade dos peixinhos, em geral, o peixe raro enfrenta dificuldade para desvencilhar-se de piabinhas e lambaris, que o cercam, o protegem e o carregam sobre as costas, desconfiados.

Birra, apoiado pelas famílias dos Plimplim Abutres e Bicos de Ferro, ligados a tubarões assassinos, mantem seus planos, embora comece a pressentir algo errado. Nenhuma dominação é eterna! A imbricação empática entre o peixe raro e imensos cardumes é mais enraizada do que poderia imaginar. Por isso sua aposta, então, é na máxima restrição de visitas e na habilidade dos Plimplim Abutres em esconder o peixe raro no aquário, distraindo os telespectadores com coisas triviais e, ali, deixá-lo esquecido, pois o que não é visto não existe.

Mas o plano da ‘inexistência do invisível’ para o completo esquecimento começa a ruir. Primeiro porque peixinhos miúdos de toda a Bacia de Reserva de Águas e Solares das Ilhas Lindas começam a descer e fazer vigília perto do aquário. Muitos deles com nadadeiras avermelhadas, feito bandeiras. Depois porque, não se sabe a razão, o peixe raro, ao contrário da expectativa de Birra, vai crescendo, crescendo dentro do aquário, com vida saudável, apesar do alimento restrito e da pequena pitada de sol diária. Diz-se, mas sem confirmação, que essa energia, tão forte, chega a estralar os vidros da parede do aquário, à prova de bala. Juntem-se a esses complicadores a solidariedade internacional ao peixe raro e a pirraça de Birra, transformada em prepotência, impedindo visita de peixinhos famosos, entre eles um Nobel da Paz.

O plano inicialmente exitoso de Birra e das famílias Plimplim Abutres e Bicos de Ferro corre risco. Os comentários, verdadeiros ou não, multiplicam-se nas redes sociais e nos bastidores do poder. O Comando central da tramoia não sabe o que fazer com o peixe raro: do aquário, parece que sua luz se espalha mais fortemente, clareando o tempo de longas noites, com novas estrelas no céu e na terra, e unindo cardumes de diferentes águas; mas devolvê-lo ao mar aberto seria, no mínimo, uma temeridade.

Dizer que o Comando da tramoia não sabe o que fazer com o peixe raro não significa que está perdido em sua estratégia de dilapidar os mais belos recifes construídos pelo suor e sangue de peixinhos miúdos, o cardume trabalhador. O óleo preto tido por milagroso é prioridade dele. Nesse intento faz o que for necessário. Por isso, peixinhos de nadadeiras vermelhas, aos milhares, reluzentes feito estrelas, tendem a tornar-se constelações: ocupando igarapés, rios grandes e pequenos, o mar aberto e suas profundezas.

O mar não está para peixe pequeno! Então os peixinhos percebem, nesse acirramento de classe, o movimento das águas precisa ir muito além da onda eleitoral.

Esse clarão de imensas constelações, de tantos peixes raros que se multiplicam, tornando-se comuns, e de luzes que se ascendem, provoca um ardume insuportável aos olhos de Birra, das famílias Plimplim Abutres, Bicos de Ferro e aos impérios a que servem. Eles têm dúvida: não sabem se apenas fecham os olhos para evitar o ardume lacrimejante ou declaram-se deuses para sempre, pois não suportam a força do sonho e o brilho das estrelas.

Antônio Claret Fernandes é militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana (MG).

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