Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2015, o professor Roberto Leher é um intelectual respeitadíssimo no mundo acadêmico. Graduado em Licenciatura em Ciências Biológicas pela UFRJ em 1984, é professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade e servidor da instituição desde 1988. De 1997 a 1999, foi presidente da Seção Sindical dos Docentes da UFRJ (Adufrj-Ssind) e, de 2000 a 2002, do Andes-SN, sindicato nacional dos docentes das instituições de ensino superior.
Em entrevista exclusiva ao Bafafá, Leher faz uma radiografia da UFRJ e expressa opinião sobre a importância do racionalismo para enfrentar o irracionalismo na sociedade. “O irracionalismo na história é a antessala do fascismo. É a barbárie”, garante o professor. Ele revela que de 15 anos para cá, mudou completamente o perfil dos alunos da universidade. “Hoje 66% dos estudantes têm renda per capita familiar de até 1,5 salário mínimo”. Apesar de um déficit de R$ 160 milhões em recursos não repassados pelo Governo Federal à instituição nos últimos três anos, ele assegura que a UFRJ está conseguindo excelentes resultados, sendo inclusive apontada como a melhor universidade pública do país.
Como é gerir uma instituição como a UFRJ prestes a comemorar 100 anos?
A UFRJ é uma instituição com história, trajetória acadêmica importantíssima para o país, pioneira em diversas áreas do conhecimento, além de ter enorme contribuição social. Isso traz muita confiança e expectativa de futuro. Estamos falando de um lugar que resulta de uma construção e dedicação de várias gerações de professores e servidores. Isso torna a UFRJ muito respeitada na sociedade. De outra parte, é uma instituição muito complexa, pois é uma comunidade de quase 100 mil pessoas divididas em 175 cursos de graduação, 129 programas de pós-graduação, centros de pesquisas, 1000 laboratórios e vários campus (Praia Vermelha, Fundão, Macaé, prédios no Centro e um polo em Duque de Caxias). Com o REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades) nós incorporamos à UFRJ o equivalente ao número de alunos da Universidade Federal de Santa Catarina. Nossa opção agora é consolidar o sistema.
Confere que estudantes com baixa renda hoje predominam?
Se por um lado temos toda essa potencialidade e energia criadora, é forçoso reconhecer que os cortes orçamentários este ano são significativos. Mesmo tendo conseguido mudar o perfil social de nossos estudantes ainda não temos políticas de assistência estudantil compatível com essa mudança social. A juventude pobre e negra que chegou à universidade precisa deste apoio para concluir a graduação. O decreto que criou o plano nacional de assistência estudantil prevê que estudantes com renda per capita familiar de até R$ 1.500 sejam contemplados. No entanto, na UFRJ só conseguimos atender quem tem renda de até R$ 320. Acima disso não temos como ajudar. Isso obviamente nos preocupa. Nós temos um levantamento que aponta que 66% dos estudantes das universidades federais têm renda per capita familiar de 1,5 salários mínimos. Desses, 80% tem renda de um salário mínimo.
A faixa de renda de estudantes que podem ser considerados de classe média alta hoje não passa de 15%. Nos últimos 15 anos mudou completamente o perfil. Isso se deve à mudança na forma de ingresso, das cotas, do Enem e também da mudança no acesso ao ensino médio. Hoje, muito mais estudantes oriundos das classes trabalhadoras estão tendo acesso ao ensino médio. Com isso já podem sonhar em estudar numa universidade pública. Neste sentido causa preocupação o fato de não termos uma política de assistência estudantil compatível com esse desafio, que é um compromisso moral e ético que a sociedade brasileira tem com a sua juventude. Essas pessoas, certamente, serão referências no campo da arte, da cultura, da tecnologia. Infelizmente, corremos o risco de termos perdas enormes de estudantes que não poderão concluir a universidade em função de condições adversas. Para você ter uma ideia, ¼ de nossos estudantes são de fora do Rio. Ao chegar ao Rio de Janeiro se deparam com uma cidade extremamente desigual e cara. Neste sentido, a assistência estudantil é imprescindível.
Como está sendo o rendimento desses estudantes?
São jovens que se caracterizam por um espírito de luta muito grande. O desempenho tem sido muito bom. Nós estamos aferindo isso de forma objetiva. Seguramente eles contribuem para a renovação espiritual da UFRJ.
Tem muitas obras paradas na UFRJ?
Desde 2013 temos muitas obras paradas sim. Já tentamos diversas pactuações com o Ministério da Educação para concluirmos essas obras. Isso gera uma expansão inconclusa. Não temos moradias estudantis suficientes, restaurantes universitários suficientes, salas de trabalho para os professores, etc. Temos laboratórios muito importantes com as obras interrompidas. Isso causa muita preocupação, mas nos interpela para que a gente busque soluções.
Qual é o déficit da UFRJ?
Eu diria que o déficit hoje é de R$ 160 milhões. Esse é o valor do que nós rolamos de dívidas anualmente na universidade. O cobertor fica curto e desorganiza. Este ano nós ficamos sem recursos para investimentos. Tínhamos R$ 55 milhões por ano para esse fim e em 2018 temos apenas R$ 6 milhões.
Existe interlocução como o Governo Federal?
Existe, mas a maior dificuldade é a inexistência de políticas públicas que assegurem o orçamento, linhas de investimentos, recursos para a área de ciência e tecnologia. A nossa interação é apenas para resolver problemas pontuais. São iniciativas isoladas e não sistemáticas. Isso é um fator que dificulta o cotidiano das administrações das universidades federais.
E como o senhor faz para lidar com o orçamento?
Para não permitir que essa dívida vire uma bola de neve, nós temos adotado medidas de reorganização estrutural. Em 2014, antes de assumirmos, teve um corte de R$ 70 milhões na UFRJ, no ano seguinte de R$ 50 milhões e no posterior cerca de R$ 40 milhões. Com isso chegamos ao déficit atual. Como temos trabalhado para enfrentar essa dificuldade? Primeiro revisamos toda a metodologia de cálculo de serviços de limpeza e segurança na universidade. E iniciamos uma campanha muito forte de redução de consumo de energia que é a maior despesa individual. Nós pagamos energia como se fossemos um consumidor doméstico. Quando você lê no jornal que a conta passou para a tarifa vermelha, isso significa que a nossa despesa será de R$ 8 milhões a mais dos atuais R$ 55 milhões que pagamos mensalmente. O certo seria trocarmos todos os aparelhos de ar condicionado, todas as lâmpadas, modernizar as subestações de energia, mas não temos recursos para isso. Com essas medidas que citei a redução foi muito significativa. Nós tínhamos 5.200 trabalhadores terceirizados, hoje são 2.600. Com isso conseguimos uma economia da ordem de R$ 60 milhões que impede o aumento de nossa dívida.
Qual é sua principal prioridade?
Pode parecer pouco, mas a principal prioridade é manter a UFRJ aberta e funcionando. É triste vermos prédios com obras abandonadas. Ainda assim, a qualidade não caiu. A UFRJ continua muito pulsante e viva e garantimos, por exemplo, a assistência estudantil e a operação de nosso hospital universitário com recursos próprios.
Qual é o segredo para vocês estarem em primeiro lugar no país?
O ranking universitário da Folha de São Paulo aponta que estamos entre as instituições estratégicas do Brasil. Tenho convicção de que a maior fortaleza da UFRJ é o cuidado com a graduação. Nós temos a tradição de formar bem. Nenhum professor trabalha só na pós-graduação. Todos trabalham na graduação. Isso faz uma diferença enorme. Essa é a nossa maior fortaleza. Por isso, nossos cursos são sempre muito bem avaliados. As pessoas saem daqui e vão para o mundo. Outro ponto forte da UFRJ é o engajamento na pesquisa. Toda a nossa comunidade está de maneira direta ou indireta envolvida em pesquisa. Temos uma produção científica muito alta em todas as áreas de conhecimento.
Apesar de tudo, o senhor está entregando as obras do campus da Praia Vermelha, na Urca?
Estamos muito felizes. Usamos verba de custeio e reformamos todo o telhado dos prédios que vazavam água em qualquer chuva e reconstruímos a igreja destruída por um incêndio. Pintamos também a parte interna e externa e vamos reestruturar a rede elétrica. Pretendo entregar as obras ainda na nossa gestão. No Museu Nacional, que pertence à UFRJ, iniciamos uma reforma importante com recursos do BNDES e estamos priorizando concluir as obras que estão bem perto de ficarem prontas. Entre elas, o Instituto de Física, uma ala do Instituto de Ciências Biomédicas e a reforma estrutural do alojamento estudantil.
Vocês estão fazendo uma parceria importante com a Fiocruz que vai instalar um centro de pesquisa para doenças negligenciadas no campus do Fundão?
É um projeto muito importante que obedece a essa visão estratégica. Precisamos somar forças com instituições de referência como a Fiocruz. Fizemos um acordo de cooperação para criar um parque tecnológico que produzirá medicamentos para doenças negligenciadas, reduzindo enormemente as despesas do SUS que gasta bilhões em medicamentos. Vamos aperfeiçoar os fármacos aproveitando os conhecimentos dos professores. Entendemos que esse esforço compartilhado é uma agenda para o país. É inadmissível um país como o Brasil ser refém de corporações para manter a saúde de sua população. É fundamental que tenhamos meios tecnológicos de produzir remédios e testes diagnósticos para doenças que não interessam às grandes corporações. Isso cria uma agenda positiva para a ciência brasileira.
Como o senhor está vendo a banalização intelectual no Brasil?
Com muita preocupação. A universidade é herdeira do iluminismo, num contexto de predominância da razão. Não precisamos de nenhum pai patrão para dizer o que fazer de nossas vidas. Devemos desenvolver o conhecimento comprometido com a melhoria da vida dos pobres. Os problemas devem ser pensados cientificamente. Infelizmente enfrentamos um processo de irracionalismo que é muito perigoso. O irracionalismo na história é a antessala do fascismo. É a barbárie. No momento que isso prevalece, o ódio se difunde. Está aí o racismo, a xenofobia, a LGBTfobia, a esquerdofobia. A difusão do medo hoje é um elemento do irracionalismo.
O senhor tem alguma utopia?
Minhas utopias pensadas. Pensadas como Eduardo Galeano: Nós damos dois passos e a utopia se afasta dois passos. Para que precisamos de utopia? Para nos fazer caminhar. Utopia é poder viver numa sociedade baseada no autoconhecimento, em formas fraternas e solidárias de interação humana. Hoje os horizontes estão turvos. Precisamos de horizontes, ideias transformadoras. O pior que pode acontecer para a humanidade é ficarmos esperando um Messias.
Entrevista concedida ao editor do Bafafá, Ricardo Rabelo, maio de 2018
Foto: Paulo Cesar Bastos