Redes de agroecologia como uma alternativa à agricultura industrial. Entrevista especial com Paulo Petersen

por Patricia Fachin, em IHU On-Line

“Um dos objetivos principais da agroecologia é construir sistemas agroalimentares aproximando a produção do consumo. Isso só é possível quando os atores dos territórios se articulam em rede para retomar a autonomia sobre o processo de produção e comercialização e isso exige organizações articuladas em redes”, diz Paulo Petersen, coordenador executivo da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA, à IHU On-Line. Na avaliação dele, a expansão da agroecologia também depende de um estímulo das políticas públicas, que podem fomentar a transição de um modelo agrícola industrial para um modelo agroecológico.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Petersen chama atenção para a importância das redes de agroecologia como um modelo alternativo à agricultura industrial. “Nesta semana estamos assistindo à crise de desabastecimento, que tem muito a ver com um determinado momento de desenvolvimento que é vulnerável, porque basta uma greve de caminhoneiros para que se interrompa o abastecimento nas cidades. Essa é uma demonstração de que o atual modelo é completamente insustentável e de que é preciso relocalizar os sistemas agroalimentares. Ou seja, os territórios cada vez mais importam o que consomem e exportam o que produzem, fazendo com que as populações das grandes cidades tenham que trazer seu alimento de fora, enquanto a produção local vai sendo abandonada. A agroecologia tem esse princípio de relocalizar os sistemas agroalimentares. Isso é feito através de redes, porque não serão os grandes conglomerados de produção e distribuição de alimentos que serão capazes de dar conta disso”, afirma.

Na avaliação dele, o modelo agrícola industrial e o agroecológico são incompatíveis não somente do ponto de vista dos financiamentos que recebem, mas da própria produção. “Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos, mas o que temos avaliado, com a sistematização dessas redes e com essas experiências de agroecologia, é que essa convivência é impraticável. Isso porque quando se desenvolve um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local, junto com um outro modelo que depende, cada vez mais, de se expandir, de produzir em monocultura e usar agrotóxico, um modelo vai passando por cima do outro; isso gera conflitos territoriais.” E adverte: “Se quisermos de fato crescer com a agroecologia, precisamos reduzir o apoio ao agronegócio e encontrar alternativas, porque elas existem”.

Paulo Petersen também comenta os principais objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que ocorre entre os dias 31 de maio e 3 de junho em Belo Horizonte. “Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, essas redes de agroecologia vêm sendo construídas historicamente desde a década de 1980 até os dias de hoje. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção feita nos territórios e que ela depende muito das iniciativas dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores.”

Paulo Petersen é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa, mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural pela Universidad Internacional de Andaluzia e doutor em Estudos Ambientais pela Universidad Pablo de Olavide. Atualmente é coordenador-executivo da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia – AS-PTA, vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia – ABA-Agroecologia e editor-chefe da revista Agriculturas: experiências em agroecologia. É membro dos Conselhos Editoriais das revistas Agroecology and Sustainable Food Systems – ASFS, da Revista Brasileira de Agroecologia e da Coleção Transição Agroecológica (Embrapa). Também integra a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – CNAPO.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — O que são as redes territoriais de agroecologia? Como e desde quando elas estão sendo organizadas no país?

Paulo Petersen — Redes territoriais é um conceito que utilizamos para analisar as experiências de constituição da agroecologia. O entendimento é que a agroecologia é uma construção de baixo para cima a partir das experiências de vários sujeitos que se articulam em territórios, inovando em um conjunto de práticas, como a prática da produção e a prática da comercialização na área dos sistemas agroalimentares. Esses sujeitos, na medida em que vão se articulando, vão formando redes, que são articulações de atores em territórios, que se identificam com os princípios da agroecologia.

Agroecologia como uma construção em rede

agroecologia, nesse sentido, é uma construção em rede e em territórios. Quando falamos em redes de agroecologia, queremos dar visibilidade ao fato de que essas não são experiências isoladas de uma família ou de uma cooperativa isolada, mas se trata de uma articulação de vários atores, que fazem a constituição da agroecologia. Isso é muito pouco visível e a ideia é dar visibilidade a essas redes que existem em várias partes do país.

Essa rede envolve não só produtores de alimentos, mas também consumidores, organizações que estão na intermediação, mercados, universidades, estudantes, professores, pesquisadores, e são iniciativas que mobilizam políticas públicas que são acionadas por essas redes no sentido de fortalecer essas práticas. Essa é uma visão importante para a agroecologia porque o território é o ambiente onde a agroecologia é construída. Normalmente as políticas públicas são muito voltadas para a unidade da produção, para o estabelecimento familiar, mas sabemos que, sem a ação coletiva nos territórios, a agroecologia não ganha escala. E um dos objetivos principais da agroecologia é construir sistemas agroalimentares aproximando a produção do consumo. Isso só é possível quando os atores dos territórios se articulam em rede para retomar a autonomia sobre o processo de produção e comercialização e isso exige organizações articuladas em redes; é por isso que falamos em redes de agroecologias territoriais. Essa é a ideia que vamos procurar trabalhar no IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que será realizado nesta semana em Belo Horizonte.

Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, essas redes vêm sendo construídas historicamente desde a década de 1980 até os dias de hoje. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção feita nos territórios e que ela depende muito das iniciativas dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores. O lema do encontro é “Agroecologia e Democracia, unindo o campo e a cidade”, porque é parte da nossa constatação que as redes democratizam as relações sociais nos territórios e nas famílias, e democratizam o acesso a alimentos de qualidade, assim como o próprio Estado, que passa a reconhecer na sociedade civil um papel público que pode construir alternativas para o conjunto da sociedade. Além disso, na agroecologia se articula a produção com o consumo, e essa ideia de unir o campo com a cidade tenta exatamente demonstrar que a agroecologia não é uma agenda só rural, mas uma agenda que é do conjunto da sociedade.

Crise de abastecimento

Nesta semana estamos assistindo à crise de desabastecimento, que tem muito a ver com um determinado momento de desenvolvimento que é vulnerável, porque basta uma greve de caminhoneiros para que se interrompa o abastecimento nas cidades. Essa é uma demonstração de que o atual modelo é completamente insustentável e de que é preciso relocalizar os sistemas agroalimentares. Ou seja, os territórios cada vez mais importam o que consomem e exportam o que produzem, fazendo com que as populações das grandes cidades tenham que trazer seu alimento de fora, enquanto a produção local vai sendo abandonada. A agroecologia tem esse princípio de relocalizar os sistemas agroalimentares. Isso é feito através de redes, porque não serão os grandes conglomerados de produção e distribuição de alimentos que serão capazes de dar conta disso. É preciso democratizar também o poder nos sistemas agroalimentares, que estão cada vez mais concentrados em poucas corporações.

IHU On-Line — Em que regiões e biomas do país as redes de agroecologia estão mais estabelecidas?

Paulo Petersen — No IV ENA teremos experiências de todos os biomas e essas são iniciativas completamente diferenciadas, porque é muito diferente falarmos da agroecologia no Sul, no Sudeste e na Amazônia. Nas duas primeiras regiões a modernização e as grandes culturas avançaram mais e têm um efeito muito maior sobre os territórios em relação a regiões em que ainda existe um modelo de agricultura mais tradicional. De todo modo, do ponto de vista dos princípios, é possível demonstrar que em todas as regiões existem experiências de agroecologia, embora elas sejam diferenciadas entre si, isto é, elas têm princípios comuns, como valorizar a biodiversidade, valorizar os conhecimentos locais, valorizar a cultura alimentar regional, empoderar os produtores que constroem seus próprios mercados, reconhecer o trabalho das mulheres e dos povos tradicionais.

No encontro do ENA vamos ter tendas com experiências de todos os biomas: três tendas para discutir o Cerrado, três para a Caatinga, três para a Mata Atlântica, três para a Amazônia, uma para o Pampa e uma para o Pantanal. Depois vamos fazer uma discussão sobre agroecologia nas grandes metrópoles, sobre o desafio do abastecimento agroalimentar nas metrópoles e sobre as experiências que já temos no Brasil. Existem experiências interessantes que mostram que é possível, com políticas adequadas, romper com o monopólio dos grandes varejistas que oferecem alimentação de baixíssima qualidade para a população, e que é necessário enfrentar a questão do abastecimento para as grandes metrópoles.

Outra tenda vai discutir a situação das comunidades que vivem no litoral e como as experiências dessas populações são desenvolvidas, que desafios e que conflitos existem. Temos feito um esforço de mapear a experiência de agroecologia no Brasil e vamos relançar o mapa da agroecologia da Articulação Nacional de Agroecologia, o qual mostra que temos essa experiência de redes disseminadas pelo país.

IHU On-Line — Qual é o desafio da agroecologia nas metrópoles? Que tipos de experiências existem?

Paulo Petersen — Nas duas últimas décadas o perfil da alimentação tem mudado muito no país por conta do crescente domínio corporativo sobre a alimentação. Hoje cada vez mais temos problemas de saúde coletiva associada à alimentação. O Brasil saiu do mapa da fome e entrou de cabeça no mapa da obesidade e das doenças cardiovasculares associadas à baixíssima qualidade da alimentação, com a população comendo cada vez mais produtos ultraprocessados. Essa questão nos desafia a pensar como será possível fazer com que a população volte a se alimentar, como diz o Guia de Segurança Alimentar, com comida de verdade e não com ultraprocessados. Esse desafio vem sendo refletido e tem havido experiências em grandes cidades do país que estão se valendo de compras institucionais para enfrentar essa questão — temos exemplos de cidades que deram passos importantes em relação à alimentação escolar e ao programa de aquisição de alimentos.

Programas desse tipo permitem criar experiências que são significativas no sentido de fazer com que a produção rural de qualidade chegue para populações que, em tese, não teriam acesso a alimentos de melhor qualidade, porque hoje também se criou um nicho de mercado para alimentos de melhor qualidade, como os orgânicos. E quem tem acesso a alimentos de melhor qualidade são aqueles que pagam por eles. Isso é uma coisa inconcebível, porque alimentação é um direito humano e é preciso ter uma intervenção pública sobre os mercados de alimentos a fim de garantir que toda a população tenha direito de consumir alimentos de boa qualidade. Essa é uma questão de direitos e de saúde. Na gestão passada da prefeitura de São Paulo foi feita uma experiência bastante vigorosa no sentido de acessar a produção camponesa para a alimentação popular. Infelizmente a prefeitura não deu continuidade a esse programa e nós assistimos à prática aberrante da farinata. Nesse caso vemos duas concepções de entendimento do que é alimentação e do que é o direito à alimentação.

Outra vertente importante é a da agricultura urbana, que é a produção de alimentos nas cidades. Essa é uma prática que vem crescendo muito no Brasil e internacionalmente também. Convencionou-se entender que a produção de alimentos é uma prática rural, mas temos muitas experiências populares de produção de alimentos em grandes cidades, as quais são significativas, porque elas beneficiam a parcela da população mais vulnerável à segurança alimentar. Então, a questão do abastecimento alimentar nas cidades tem várias possibilidades, para além da produção local, porque evidentemente a produção local não dá conta de abastecer as grandes metrópoles, mas é preciso repensar as formas de mercados, que são cada vez mais concentrados. Uma alternativa seria repensar a organização das feiras, como as feiras livres, porque muitas delas são agroecológicas.

IHU On-Line — Aqueles que defendem o uso da agricultura em larga escala e o agronegócio argumentam que eles são importantes para dar conta da produção de alimentos. De outro lado, aqueles que defendem a agricultura familiar afirmam que ela é responsável pela produção de aproximadamente 70% dos produtos consumidos no país. Diante dessas posições, você diria que é possível substituir o atual modelo agrícola do agronegócio por um modelo agroecológico? Quais são os desafios nesse sentido?

Paulo Petersen — Essa é uma necessidade imperiosa porque o modelo agrícola industrial é responsável pela geração de uma série de dilemas que a humanidade está enfrentando. A agricultura convencional também é responsável pela metade dos gases de efeito estufa, então o problema da mudança climática está associado ao padrão agrícola. Essa atividade, embora também gere as mudanças climáticas, é, em contrapartida, afetada pelas mudanças climáticas. Além disso, essa é uma agricultura que consome muito petróleo, depende de muita transformação da produção, quer dizer, gera problemas de consumo de energia, transporte, resfriação, ou seja, gera um conjunto de efeitos ambientais, como a perda de solos e da biodiversidade. Esse também é um modelo de agricultura que concentra muita terra para o desenvolvimento da monocultura.

O que a agroecologia apresenta é que é preciso uma mudança estrutural desse modelo. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) acaba de realizar um simpósio internacional em Roma, que teve como tema justamente o desafio do aumento da escala da agroecologia para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS. Esse simpósio é uma constatação da FAO sobre a necessidade da mudança do padrão agrícola. Evidentemente essas constatações que estão cada vez mais presentes no meio acadêmico e nos movimentos sociais e organizações púbicas sofrem muita resistência por parte dos grandes beneficiários desse modelo, que são os poucos que ganham com a manutenção desse sistema e que têm capacidade de influenciar as decisões políticas.

Então, a questão não é se a agroecologia tem a capacidade, mas se teremos a possibilidade de iniciar uma transição, porque isso não é uma mudança de uma hora para a outra, mas uma mudança que precisa ser estimulada por políticas públicas no sentido de ir substituindo um modelo pelo outro. As experiências sistematizadas academicamente no mundo inteiro demonstram que sim, a agroecologia tem capacidade produtiva ou superior à agricultura industrial, mas ela também gera uma série de outros benefícios, enquanto a agricultura industrial só gera efeitos negativos.

IHU On-Line — Que percentual de investimentos federais é destinado para a agroecologia em comparação com o agronegócio? Quais são as principais políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da agroecologia e quais são os desafios dessas políticas?

Paulo Petersen — Uma política que é concebida em Brasília e implementada por um ministério pode ser utilizada no território tanto para apoiar a agroecologia quanto para apoiar a lógica do agronegócio. O recurso é o mesmo, e o que faz a diferença lá na ponta é a existência de uma rede. Se tivermos uma rede de agroecologia, recursos do Pronaf, por exemplo, podem ser canalizados num território para fortalecer essa rede, mas se não tivermos uma rede ou os atores no local, esse recurso pode ser utilizado para a produção de milho ou soja transgênicos. A política é a mesma, mas a mediação das relações até chegar na propriedade faz com que o recurso seja orientado para um lado ou para o outro. Por isso é muito difícil termos um dado preciso de quantos recursos públicos apoiam a agroecologia.

O que é possível dizer é que a maior parte dos recursos públicos são orientados para apoiar o agronegócio. Por exemplo: enquanto a agricultura patronal recebe 120 bilhões de reais no Plano Safra, a agricultura familiar recebe em torno de 22 bilhões, ou seja, há uma grande diferença. Isso não significa que esses 22 bilhões sejam destinados para a agroecologia, pelo contrário, boa parte dos recursos orientados para a agricultura familiar — que são recursos de créditos — terminam reforçando a lógica convencional da agricultura industrial na própria agricultura familiar, sendo destinados para a compra de fertilizantes químicos, agrotóxicos, sementes comerciais e, muitas vezes, transgênicas.

Agora, alguns programas têm tido bastante sinergia com estas práticas, como, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA. Esse programa — que existiu segundo a concepção de compra antecipada de alimentação — fortaleceu muito as iniciativas de agroecologia no Brasil inteiro. Os recursos nunca foram muito elevados, mas apontaram o caminho, e esta iniciativa serviu de inspiração para muitos países, sobretudo os países africanos e latino-americanos. É uma política que, ao mesmo tempo, apoia a segurança alimentar, fortalece a agricultura familiar e tem a característica de fortalecer e atuar na área ambiental, com a conservação de recursos naturais, biodiversidade etc. As políticas de agroecologia ganham em todos os sentidos: social, econômico, ambiental e cultural, porque se fortalecem práticas, valores e hábitos alimentares que estão sendo perdidos com a implantação da agricultura industrial.

IHU On-Line — Como o programa Ecoforte tem contribuído para o desenvolvimento de redes de agroecologia?

Paulo Petersen — O programa Ecoforte parte dessas ideias que estou falando. Essa foi uma proposição que veio da sociedade civil, de organizações vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia, que é um programa de fortalecimento de redes de agroecologia. Esta é uma das iniciativas integradas à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – Pnapo. A Pnapo é uma política que envolve vários ministérios e órgãos públicos e procura dar coerência às políticas desses ministérios e órgãos no sentido de apoiar a agroecologia. Com isso, tem-se desde políticas do Ministério da Agricultura, do antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia e, dentro da política, existe essa iniciativa de apoio às redes.

Qual é a ideia? Primeiro, o Estado reconhecer que a sociedade civil é protagonista na promoção da agroecologia e faz isso em redes territoriais. Este é o primeiro ganho da política: o reconhecimento, algo que nunca existiu antes. O programa é implementado a partir de editais públicos e as redes elaboram suas propostas; esse é o segundo ganho. Não é uma proposta que vem de cima para baixo. As próprias redes são convidadas a elaborar propostas, e isso é o que chamamos de democratização do Estado, isto é, o Estado e a sociedade coproduzindo políticas públicas. Então, as propostas que seguem para os diferentes territórios são, necessariamente, diferentes porque as realidades são distintas e essa é uma característica da agroecologia. Ou seja, não existe solução única válida para todo lugar; as soluções dependem do tempo e do espaço onde essas redes estão evoluindo.

O programa Ecoforte, a partir de editais, convida as redes, e as redes elaboram suas propostas. Existe uma série de critérios técnicos e também de caracterização das próprias redes, que devem envolver um número grande de organizações do Estado, de pesquisa, de educação, cooperativas, associações de produtores, mulheres. São alocados recursos provenientes do BNDES e da Fundação do Banco do Brasil e esses recursos, a cada edital, são distribuídos em função da quantidade de projetos que são apresentados por editais. Essa é uma experiência extremamente inovadora, inclusive temos feito o esforço de divulgá-la internacionalmente, como no simpósio da FAO, por exemplo. Ali mostramos que esse tipo de concepção não substitui as outras políticas, pelo contrário, fortalece as demais.

O que percebemos é que essas redes apoiadas pelo Ecoforte têm conseguido mobilizar as demais políticas — de crédito, alimentação escolar, núcleos de agroecologia —, ou seja, tem uma série de políticas públicas federais e estaduais que as próprias redes de agroecologia mobilizam. O programa Ecoforte talvez seja uma das maiores inovações, do ponto de vista de desenho de política pública, que a política de agroecologia trouxe.

IHU On-Line — Quais são as dificuldades das redes territoriais diante do alto consumo de agrotóxicos e de transgênicos na agricultura?

Paulo Petersen — Essa é uma questão que tem sido muito discutida, inclusive será objeto de debate no ENA e foi tema no Simpósio da FAO, que é o fato de que as redes de agroecologia não se desenvolvem sem conflitos nos próprios territórios, porque da mesma forma que existem redes de agroecologia, existem redes de agronegócio disputando os territórios e os mesmos recursos. As políticas públicas tendem a apoiar muito mais as cadeias produtivas do agronegócio, que são cadeias estruturadas verticalmente de cima para baixo e que são os empreendimentos econômicos responsáveis pela expansão da monocultura, pelo uso dos agrotóxicos e transgênicos nos mesmos territórios.

Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos, mas o que temos avaliado com a sistematização dessas redes e com essas experiências de agroecologia, é que essa convivência é impraticável. Isso porque quando se desenvolve um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local, junto com um outro modelo que depende, cada vez mais, de se expandir, de produzir em monocultura e usar agrotóxico, um modelo vai passando por cima do outro; isso gera os chamados conflitos territoriais. O agrotóxico e os transgênicos são apenas duas expressões desses conflitos que as organizações de agroecologia vivenciam dia a dia lá na ponta. O que temos afirmado é o seguinte: se quisermos de fato crescer com a agroecologia, precisamos reduzir o apoio ao agronegócio e encontrar alternativas, porque elas existem. Evidentemente isso fere interesses poderosos de corporações que querem expandir a sua expressão, inclusive territorial.

A ideia da convivência de modelos não existe, ela é impossível; temos que, de fato, começar a colocar restrições a um sistema que é extremamente predatório. Nesse sentido, temos alguns exemplos, entre eles, a própria política de agroecologia. Na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, da qual faço parte, foi elaborado um Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos – Pronara. Esse programa não foi radical, nem propôs uma ruptura com os agrotóxicos. Ao contrário, a proposta era fazer com que, se fosse preciso utilizar agrotóxicos, eles fossem utilizados segundo o receituário agronômico, porque o uso dos agrotóxicos é totalmente desenfreado. Muitos produtores têm a perspectiva de produzir orgânicos e não conseguem se adequar às normas de produção orgânica porque a vizinhança produz com agrotóxicos; isso é uma perda de direitos. Então, a proposta era começar a trabalhar com as alternativas que existem, porém não são estimuladas pelo crédito.

Portanto, é necessário formar e capacitar para o uso de alternativas, que além de serem menos danosas para a saúde e para o meio ambiente, são mais baratas. Assim, ganham os agricultores e os consumidores. Mas por que essas alternativas não são utilizadas? Essa é a questão a ser respondida. Se temos alternativas técnicas, elas precisam ser colocadas em prática e estimuladas pelo Estado. Este foi o princípio do Pronara que, infelizmente, não foi assinado pelo governo.

IHU On-Line — Quais são os objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA? Quais são os principais desafios em relação às redes territoriais de agroecologia?

Paulo Petersen — Como já disse anteriormente, o lema do IV Encontro Nacional de Agroecologia é “Agroecologia e Democracia, unindo o campo e a cidade”. Esse lema tem muito a ver com a conjuntura nacional: nós sofremos um golpe institucional, que derrubou um governo que, embora mantivesse essa narrativa da convivência dos modelos, era um governo eleito e legitimado, então isso é inquestionável. Segundo, era um governo que tinha a escuta da sociedade civil. Portanto, esse debate da democracia é fundamental, porque temos a consciência de que, sem um Estado que dialogue e crie instâncias de diálogo em diferentes espaços, dificilmente a agroecologiaprosperará.

aprofundamento da democracia é uma condição para o avanço da agroecologia. As políticas públicas de apoio à agroecologia ou para refrear o agronegócio são fundamentais. Essa é a nossa agenda principal. Assim, no encontro vamos repercutir como as comunidades das redes estão enfrentando este momento atual, porque este é um momento de grande recrudescimento da violência no campo, com assassinato de lideranças e violência contra as mulheres e povos tradicionais, que têm seus modelos territoriais ameaçados. Isso tudo se dá por conta de uma lógica econômica expansiva, violenta e antidemocrática. Nós estamos fazendo esse debate não só para denunciar o golpe, mas para pensar estratégias daqui para frente.

Temos, inclusive, que discutir com as forças de esquerda que também têm dificuldades de entender a vitalidade dessas experiências e de entender que a sociedade civil precisa ser chamada para cogerir as políticas públicas, porque não será o Estado sozinho que irá construir e fortalecer sistemas agroalimentares numa perspectiva democrática. Então, o debate, nesse sentido, propõe apontar caminhos e ver como essas redes têm enfrentado suas dificuldades e quais são suas estratégias de resistência e construção. Vamos fazer essa reflexão a partir da realidade dos territórios, porque 70% do encontro é composto por agricultores e agricultoras, quilombolas e indígenas, que vão trazer a voz dos territórios, que é a voz que tem sido menos escutada. É nesses territórios que a experiência de agroecologia é construída, e precisamos aprender com essas experiências. Esse é o grande sentido do IV Encontro Nacional de Agroecologia.

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